07 Julho 2011
"Acredito que o papa tenha razão ao considerar incompleta a razão científica, e que tu tenhas razão ao considerar incompleta a razão teológica. Mas vocês não podem dialogar, porque ambos buscam na filosofia a "completabilidade’ da sua razão."
Publicamos aqui a carta aberta do matemático italiano Luigi Borzacchini, professor da Universidade de Bari, na Itália, ao também matemático Piergiorgio Odifreddi. O texto foi publicado no jornal L`Unità, 05-07-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Caro Piergiorgio,
Está amanhecendo e recém acabei a tua "carta" ao papa e tenho que te dizer que a considero uma das suas coisas mais belas (incluindo também a Classical Recursion Theory). Entre outras coisas, me parece ser mais profunda e reflexiva, e às vezes menos polêmica do que outras coisas tuas sobre o tema. Acima de tudo, entrevejo nela a percepção da complexidade do "fato" religioso e acredito que, partindo daí, a distância entre crentes e ateus que seja tão vasta.
Por um acaso do destino, acabei de lê-la no dia seguinte ao referendo, em cujo resultado poucos observaram o papel desempenhado pelo mundo católico, pelos franciscanos ao próprio papa. Na realidade, a contraposição entre seculares e católicos sempre foi, no século XX, a sorte da direita, e Enrico Berlinguer era extremamente consciente disso, tendo sido o maior líder da esquerda italiana no século passado, quando propôs o "compromisso histórico", uma proposta, infelizmente, que logo desapareceu na esquerda, na nefasta opinião de que o substantivo "compromisso" desclassificava o adjetivo "histórico".
Contrastes evidentes?
Obviamente, o tema sempre me fascinou, enquanto matemático, cristão e "de esquerda" (mesmo que, em todas as três frentes, escasso de fé e estranho às hierarquias). E obviamente eu refleti a respeito e me perguntei por que entre religião e pensamento científico e secular eu não encontro os contrastes evidenciados nas tuas palavras (e também nas do papa): para mim, acreditar em Cristo e, ao mesmo tempo, exaltar a razão laico-científica é, senão fácil, seguramente possível, e, além disso, é uma aventura do pensamento entre as mais fascinantes.
Acho que isso acontece porque eu tenho uma ideia da matemática (e da ciência) diferente daquela sobre a qual me parece que vocês dois, papa real e aspirante a papa arrependido, acabam concordando: vocês fazem da matemática/lógica o instrumento linguístico/ideológico e o esqueleto formal da ciência, sobretudo da física. O que para ti é sinônimo de racionalidade, para o papa é cientificismo frio e formalista. Essa tese se consolidou historicamente em paralelo no campo teológico e na filosofia da ciência, especialmente em dois períodos.
O tomismo
Na escolástica média: o tomismo definiu a relação entre teologia e ciência em termos de fé e de observação empírica conectadas metafisicamente. Os mertonianos usaram a metáfora geométrica para descrever os observáveis físicos. E, depois, na passagem entre os séculos XIX e XX: o neotomismo viu o mal nascer das filosofias modernistas (o materialismo, o relativismo, o socialismo etc.), e positivismo e neopositivismo reduziram a matemática/lógica a um aspecto linguístico de uma ciência empirista.
No meio disso, o Concílio de Trento e o divórcio entre a cultura cristã e a sua "filha predileta", a ciência. E logo depois, Galileu, a sua ciência e o seu processo. Assim, hoje, os teólogos aceitam a ciência como observação da Criação, mas a rejeitam na sua forma racional totalizante. Os filósofos da ciência consideram a ciência como um empreendimento substancialmente empírico, ao qual a matemática tem deve se adequar como linguagem para expressar os resultados.
Certamente, tu notas justamente que a matemática não é só esprit de geometrie, mas me parece que, na polêmica, tu acabas, com isso, reduzindo-a para defender uma ideia de verdade de marca, no fim das contas, positivista. Proponho-te, ao contrário, uma ideia que adquire sempre mais peso nos meus cursos de história: a complexidade do "fato" matemático.
A disciplina mais antiga
A matemática é a mais antiga das disciplinas, identificada e caracterizada há pelo menos 4 mil anos. A tal ponto que um escriba babilônico que saísse da hibernação hoje poderia fazer um ótimo curso de matemática nas escolas primárias, e um matemático helênico poderia também chegar às médias inferiores. Alguém poderia fundamentar sobre o Enuma Elish sumério ou sobre a mitologia grega a formação de um médico ou de um psicólogo ou de um filósofo ou de um teólogo?
Esse fato pode ter duas explicações: ou a matemática é a mais banal das técnicas ou é a mais profunda das antropologias. Eu acredito que a segunda afirmação é a correta. Até porque, assim, se torna mais clara a profunda interconexão entre matemática e religião, que podemos encontrar desde a aurora dos tempos, dos babilônicos e hindus até Cantor.
A conexão moderna entre matemática e física remonta, ao contrário, no máximo, ao final da Idade Média, enquanto antes parecia indiscutível a observação aristotélica: como pode a matemática, que é ciência do ser, aplicar-se à "physis", isto é, ao devir? A física-matemática é, obviamente, uma das grandes criações do espírito humano, mas isso não quer dizer que ela caracteriza a natureza da obra matemática.
E a redução da matemática a instrumento linguístico da ciência me parece ser uma das piores torpezas modernas. E são estúpidas as "defesas" da matemática baseadas na sua utilidade ou na sua beleza: a matemática é bem mais do que um instrumento mais ou menos "útil" e "belo" da ciência; ao contrário, é a mais radical das antropologias. Na verdade, eu retiraria os departamentos de Matemática das Faculdades de Ciências.
Acredito, então, que o contraste entre pensamento matemático e religião (não filosófica) se deva só ao dogmatismo filosófico que caracteriza tanto os teólogos quanto os ateus: desaparecido este, desaparece também aquele. Na realidade, eu estou muito de acordo com os teus argumentos (por exemplo, sobre a mania teológica para o verbo "ser"). E acredito, como cristão, que tu, a longo prazo, poderia fazer muito bem à Igreja (mais ou menos quanto as denúncias dos padres pedófilos), a ponto de ser quase beatificável (embora eu acredite que muitas vezes tu faças polêmica por puro amor à polêmica e para defender a tua "imagem").
É quando tu reduzes os teus argumentos a uma pressuposição positivista que eu não concordo mais: parece-me uma das tantas filosofias da ciência incompatíveis com a história da ciência. Acredito que o papa tenha razão ao considerar incompleta a razão científica, e que tu tenhas razão ao considerar incompleta a razão teológica. Mas vocês não podem dialogar, porque ambos buscam na filosofia a "completabilidade" da sua razão.
Em Bari, terra de cínicos, diríamos ’o policlin’k ’uè la salut’? ("É no hospital que tu procuras a saúde?"). Na verdade, não parece nem um debate; ele tem mais as características de uma espécie de "antinomia da razão pura". De fato, por mais que eu ame a filosofia, torno-me sempre mais intolerante ao dogmatismo dos filósofos "de ideias claras", e sonho, ao contrário, com uma filosofia rapsódica, uma plantinha insegura, humilde e tímida, que cresceu à sombra da história.
São as filosofias "pesadas", tanto analíticas quanto continentais, que querem ser coerentes e preencher todos os buracos, que me cansam tanto na teologia quanto na filosofia da ciência. E, a esse propósito, poderia admoestar, como o Hamlet de Shakespeare: there are more things in mathematics and religion, Horatio, than are dreamt in your philosophy! [há mais coisas na matemática e na religião, Horácio, do que as sonhadas na tua filosofia].
Um abraço, Luigi Borzacchini
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"Caro Odifreddi, é um erro dividir matemática e fé" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU