05 Julho 2011
A autoridade católica criticou a campanha da Otan, chamando-a de imoral e ineficaz. "Kadafi é um beduíno: você não pode mudar sua opinião bombardeando-o", disse o bispo.
A reportagem é de Patrick J. McDonnel, publicada no jornal Los Angeles Times, 03-07-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Por mais de um quarto de século, o padre de fala mansa com o brilho quase beatífica e uma grande semelhança com o Papa João Paulo II liderou a igreja católica romana de São Francisco de Assis, de Trípoli.
Como bispo de Trípoli, Giovanni Innocenzo Martinelli (foto) aconselhava silenciosamente a pequena comunidade católica romana da capital no imponente edifício de pedras brancas, construído no auge do domínio colonial italiano sob Benito Mussolini, com sua torre do sino de 100 metros de altura que se eleva em um horizonte cheio de minaretes.
Mas desde que bombas ocidentais começaram a cair sobre a Líbia de Muamar Kadafi, Martinelli, de 69 anos, tornou-se uma fonte improvável de controvérsia internacional.
Sua crítica persistente à campanha liderada pela Otan levou alguns a chamá-lo de apaziguador com relação a Kadafi e a sugerir que seria melhor que ele se dedicasse a assuntos espirituais.
Líbio de nascimento e filho de colonizadores italianos, Martinelli rejeita a noção de que ele deveria silenciar a sua voz, usando o seu conhecimento dessa nação norte-africana e do Ocidente para pressionar pela sua causa.
"Kadafi é um beduíno: você não pode mudar sua opinião bombardeando-o. Você não pode esmagar os beduínos", declarou Martinelli recentemente no pátio sombreado de um hotel de cinco estrelas de Trípoli, enquanto as fortes detonações abalavam a capital, parecendo acentuar a sua afirmação. "Ele é um homem orgulhoso. Fale com os beduínos. Há uma espécie de sublimidade aos beduínos, ao homem do deserto", disse ele, escorregando do inglês ao seu italiano nativo.
O bispo, que se encontrou com Kadafi e reconhece seu "respeito" pelo líder , posiciona-se como um defensor da paz e da negociação. "Bombardear sempre é um ato imoral", disse a autoridade à agência de notícias do Vaticano Fides. "Eu respeito as Nações Unidas. Eu respeito a Otan, mas também devo declarar que a guerra é imoral. Se existem violações aos direitos humanos, eu não posso usar o mesmo método para pará-los".
O Papa Bento XVI apelou ao diálogo e à diplomacia para acabar com o conflito líbio. Mas o antigo vigário apostólico da Santa Sé em Trípoli foi muito mais longe, aparentemente com a bênção do Vaticano.
O bispo está em contato diário com as agências católicas da Europa e invariavelmente envia a mesma mensagem: o bombardeio da Organização do Tratado do Atlântico Norte levará a mais mortes de civis e só vai endurecer a determinação do regime.
Embora condenando inequivocamente os bombardeios ocidentais, Martinelli se desviou das perguntas sobre os ataques do regime contra os civis. Ele disse abominar toda violência, mudando de assunto para o que ele chama de realizações positivas de Kadafi: um estado de bem-estar social, uma relativa igualdade para as mulheres e, mais incisivamente, a liberdade de culto nesse país de imensa maioria muçulmana.
Liberdade da Igreja
A revolução de 1969, liderada por um então obscuro tenente do exército chamado Kadafi, levou à expulsão da maioria dos italianos remanescentes e a um fechamento das igrejas, há muito tempo um símbolo da brutal colonização italiana do século XX. Uma ex-catedral daqui é agora uma mesquita. A catedral da cidade de Benghazi, detida pelos rebeldes, com suas duas cúpulas que surgem de frente para o porto, está envolvida por andaimes e em um mau estado agudo. Outras igrejas foram convertidas em ginásios e em salas de reunião, e pelo menos uma delas em um café.
Mas Kadafi, um revolucionário secular, logo permitiu que os cristãos praticassem a sua fé, devolvendo a Igreja de São Francisco e uma igreja no centro de Benghazi em uma rua ainda conhecida como Via Torino. O Estado proíbe estritamente o proselitismo e limita as atividades de caridade dentro das instalações da Igreja, mas freiras católicas atuam em hospitais e centros para deficientes, órfãos e idosos. João Paulo chegou a retomar as relações diplomáticas com Trípoli em um momento em que o regime era um pária internacional por causa dos laços de Kadafi com o terrorismo.
"Kadafi deu-nos a liberdade da Igreja," disse Dom Martinelli, citando outros exemplos no mundo árabe onde os cristãos enfrentam severas restrições e, no caso do Iraque pós-Saddam Hussein, os ataques violentos. "Olhe para o Iraque", disse. "Eles destruíram Saddam Hussein, mas tem sido muito difícil organizar a vida desde então".
Entre as autoridades eclesiásticas que ainda observam o desdobramento da "Primavera Árabe", não passa despercebido o fato de que os autocratas seculares da região – Hussein, a dinastia Assad na Síria, Hosni Mubarak no Egito – têm sido tolerantes com as minorias cristãs.
Nascido durante a Segunda Guerra Mundial de pais agricultores italianos no sudeste de Trípoli, Martinelli voltou para a Itália quando jovem e foi ordenado sacerdote franciscano em Salerno, em 1967. Foi enviado de volta para o Magrebe para orientar a população italiana remanescente em uma região onde a Igreja primitiva havia florescido, gerando um dos luminares intelectuais do catolicismo, Santo Agostinho de Hipona, originário da região que hoje é a Argélia. As invasões árabes obliteraram o cristianismo na Líbia durante séculos, até que os comerciantes e colonizadores italianos trouxessem de volta a fé em uma modalidade limitada.
Desde que o bombardeio começou, Kadafi tem procurado invocar uma época anterior de conflito entre cristãos e muçulmanos, enquadrando a guerra como uma aliança implausível de "cruzados" agressores e de fanáticos da Al Qaeda. "Por que você quer morrer sob a cruz?", zombou Kadafi perante os rebeldes em uma recente mensagem de áudio.
O bispo assume que Kadafi foi lento para responder às necessidades do leste da Líbia, há muito tempo negligenciado, onde a rebelião foi incubada. Muito antes de os protestos começarem em fevereiro, observou Martinelli, os líbios ansiavam por mais liberdade, mais justiça e melhores oportunidades econômicas.
Kadafi "não foi capaz de ouvir os jovens de Benghazi, não foi capaz de compreendê-los", disse Martinelli com grande pesar, tendo atuado por décadas como padre em Benghazi, indicando que a guerra poderia ter sido evitada se o regime tivesse investido mais no leste do país. "A violência tornou-se quase uma alergia em Benghazi".
Conforto espiritual
As palavras cuidadosamente escolhidas pelo bispo geralmente estão de acordo com a linha de governo: sim, Kadafi cometeu erros, mas o regime está preparado agora para negociar um cessar-fogo e uma transição para uma democracia eleita. Os líderes rebeldes e os governos ocidentais aliados dizem que não acreditam nisso e que Kadafi deve ir embora depois de mais de quatro décadas no poder.
Martinelli, é claro, fala de uma posição precária. Qualquer estrangeiro que critique o regime corre o risco de expulsão, ou pior, de ficar nas mãos da polícia de Estado de Kadafi. Dizer a coisa errada poderia ter consequências catastróficas para um rebanho extremamente vulnerável e grandemente diminuído desde que os distúrbios eclodiram, fazendo com que a maioria dos cristãos fugissem, alguns a bordo de embarcações frágeis que navegam pelo imprevisível Mediterrâneo.
Nessa impaciente capital, a missa semanal é uma das poucas consolações dos paroquianos, uma fonte singular de conforto espiritual. "Isso nos dá coragem", disse Alex Attisso, originário do Togo que dirige um coro de pessoas do oeste africano, resplandecentes em uma recente cerimônia em vestes roxas.
O tempo e os problemas transformaram a antiga fortaleza espiritual dos mestres coloniais líbios em algo distinto: um refúgio para imigrantes ansiosos, entre eles operários africanos subsaarianos, trabalhadores da saúde filipinos e artesãos do Sul da Ásia, todos atraídos por empregos na Líbia, rica em petróleo.
Os fiéis ainda guardam o domingo, embora as cerimônias que têm maior participação são as das sextas-feiras, o dia de oração muçulmano, quando a maioria não têm que trabalhar. Na Igreja de São Francisco, africanos acompanham respeitosamente as pessoas até seus assentos, entregam-lhes folhas de oração impressas e lembram-nos de desligar seus celulares antes de dirigi-los aos bancos.
Em uma recente sexta-feira, o bispo estava recebendo os visitantes antes da missa. Havia uma mulher de Bangladesh que estava organizando o batismo de sua filha. Uma família sem-teto da Eritreia pedia refúgio. Um grupo de filipinos se despedia em lágrimas. "Eles estão indo embora depois de 25 anos", disse o bispo em um tom melancólico, nestes tristes dias de despedidas.
Na Igreja de São Francisco, a inquietação dos tempos acentuou a dimensão metafórica da Bíblia. Uma passagem, sobre um cego que recupera sua visão, representava "um símbolo dessa humanidade, cega pela guerra, mas que não perde a esperança de que a luz da razão será recuperada", disse Martinelli a um entrevistador do Vaticano.
A Igreja, na Líbia, disse ele , está sendo "purificada" de novo, suportando a última transição em um drama milenar que já a viu se elevar a grandes alturas, desaparecer da vista de todos e depois renascer novamente.
O bispo disse estar confiante na contínua sobrevivência da sua Igreja, embora o destino dessa nação abalada continue sendo um ponto de interrogação.
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Bispo da Líbia se envolve em controvérsia internacional por defender Kadafi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU