27 Junho 2011
O Cardeal Patriarca de Portugal considera que só uma Justiça competente pode dinamizar a sociedade e diz que não é por acaso que o acordo com o FMI visa maior celeridade nas decisões. Defende ainda que todos os juristas deveriam saber um mínimo de direito canônico
A reportagem é de Ana Isabel Cabo, publicada na revista Oa, boletim da Ordem dos Advogados de Portugal, nº 78, maio de 2011.
Ao longo de uma hora, José Policarpo percorreu vários temas. Falou da crise na Europa, do perigo dos radicalismos islâmicos, do sacerdócio no feminino e do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Mas também da Concordata, do papel dos tribunais eclesiásticos e da necessidade de mais advogados com formação em direito canônico.
Eis a entrevista.
Referiu, numa recente entrevista, que na sociedade civil há um défice de intervenção de pessoas que não sejam políticos. A Igreja poderia intervir mais?
A Igreja é todo o povo de Deus e na sua intervenção política há que distinguir entre nós, a hierarquia, e os demais cristãos, que têm toda a liberdade, quer cívica, quer eclesial, de intervir politicamente. No caso da hierarquia, a nossa função, sendo de outra ordem, poderia não se conciliar facilmente com uma intervenção política, de cariz partidário.
Estava mais a referir me à hierarquia...
Há dias, chamei a essa intervenção "pré-política", porque a política não é só a política partidária. A política diz respeito a tudo o que tenha a ver com a problemática da construção da sociedade, e aí nós temos uma palavra a dizer. Há uma doutrina da Igreja sobre a sociedade que não é motivada por nenhuma circunstância em concreto e onde todas as grandes questões estão contempladas: o Estado e a sua relação com a sociedade civil, a economia e a sua relação com as finanças, o mundo do trabalho e toda a sua problemática. Aí, sim, trata se de anunciar uma doutrina, um pensamento de inspiração cristã sobre a sociedade, e aí todos nós o devemos fazer e sobretudo em circunstâncias mais agudas, porque é importante para o discernimento. Tem de haver um discernimento e esse discernimento não pode ser feito só com o discurso dos políticos. Tem de ser feito com outras abordagens, com uma reflexão pessoal, e nesse discernimento pode entrar aquilo a que eu chamaria a doutrina social da Igreja, que aborda e aprofunda todas as questões que dizem respeito à sociedade.
É também essa orientação que vai seguir na presidência do Conferência Episcopal Portuguesa (CEP)?
A estrutura da Igreja assenta nas dioceses, e não num órgão colegial supradiocesano com grande autonomia e poder de decisão. A CEP serve para nos ajudarmos uns aos outros em relação ao que cada um tem de fazer na sua própria diocese. A ideia de ver a CEP como uma espécie de Parlamento da Igreja, que, em última instância, toma decisões para todos, não é a certa. Nós próprios temos responsabilidade nisso, mas não é, de facto, a perspetiva correta.
Acha que a CEP poderia ter poderes acrescidos?
Trata se de um problema de compreensão da natureza e missão da Igreja. Sou absolutamente contra o que tente limitar a autonomia do bispo diocesano. As Conferências Episcopais nasceram para pôr em prática o que o Concílio Vaticano II chamou colegialidade. Só para perceber, a Conferência Episcopal, para fazer uma lei que obrigue os bispos, tem de ter dois terços da votação, o que não é fácil de adquirir, a quase unanimidade, e tem de ter a ratificação da Santa Sé. As outras decisões que se tomam nos plenários da Conferência, os bispos diocesanos seguem nas ou não, conforme os seus critérios.
Como analisa as relações entre a CEP e o governo?
À luz do que acabo de dizer, gostaria de ajudar a esclarecer, durante o presente mandato, as bases dessas relações, que considero boas. Penso que o perigo é sempre considerar a CEP uma espécie de Parlamento da Igreja, quando a estrutura da Igreja não é essa. A Igreja tem fundamentos teológicos, e não apenas sociais e sociológicos.
Falou em circunstâncias agudas. Que papel pode ter a Igreja neste momento de crise?
O papel da Igreja, em todas as circunstâncias, tem de ser consentâneo com a sua missão. É evidente que há um horizonte muito amplo, que é o da intervenção dos cristãos nas organizações da sociedade civil, como um sindicato ou um partido político. Isto é ou não uma presença da Igreja? Imprime a visão cristã das coisas na análise que fazem, mas não é uma intervenção institucional da Igreja. A intervenção da Igreja, enquanto instituição organizada, deve estar muito de acordo com a sua missão e, nestes momentos, como aquele que estamos a viver, temos uma grande consciência disso.
A nossa missão é a caridade, é o amor fraterno, é o estarmos perto das pessoas. Tenho insistido muito na questão da proximidade e da vizinhança e já lembrei a muitos dos meus irmãos, que gostam de apresentar estatísticas, aquela frase do Evangelho "Que a tua mão direita não saiba o que faz a esquerda": ajudar e criar o ritmo da ajuda fraterna, até alimentar a esperança, mesmo quando não a temos... Por isso é que na presente situação não temos maneira de ajudar em todas as circunstâncias, mas sempre podemos ajudar.
Têm lhe sido relatadas situações muito complicadas no país?
Nem é preciso o país. Basta me ver o que se passa na minha diocese, em Lisboa, e as cartas que vou recebendo. As situações são complicadas, tem de haver uma triagem caso a caso, porque também há pessoas que se aproveitam da situação. Temos um serviço discreto de análise de casos, estamos a responder à medida do que é justo e que a nossa capacidade permite. Mas a grande resposta não passa por aqui, mas pelas estruturas locais, pelas paróquias, que estão organizadas há muito tempo e dão resposta no tal sentido da vizinhança. Imagine um casal em que ambos estão desempregados e que ficou impossibilitado de manter o nível de vida que tinha, a ajuda tem de ser discreta; os dinamismos locais estão mais preparados para fazer isto, com o tal princípio evangélico de que "a tua mão direita não sabe o que faz a esquerda", do que as estruturas de maior dimensão.
Como se chegou a esta situação?
Há problemas que são de civilização, são mais amplos que a problemática portuguesa. É nítido que há hoje não sei se um desequilíbrio de organização, sobretudo no ocidente, mas não só. Há também deficiências locais. Não consigo perceber como se chegou a uma situação destas sem a ter prevenido. Dou lhe duas ou três referências: há 20 anos, quando as economias planificadas começaram a ruir e a ser substituídas, na própria Rússia, pelo capitalismo liberal, acabou uma tensão negativa e de confrontação. O modelo ruiu porque tinha de ruir, porque não respeitava a liberdade individual e a pessoa humana, dando ao Estado um papel que ele nunca pode ter numa sociedade democrática. o certo é que a economia ficou reduzida ao sistema do capitalismo liberal com as suas diversas nuances.
A própria ciência econômica nunca estudou o meio termo entre uma economia completamente planificada e uma economia completamente liberal. Depois, a relação entre o mundo financeiro e o desenvolvimento econômico era inevitável: a finança existia para isso e não para as pessoas enriquecerem, existia para que os países progredissem e as empresas funcionassem. De repente, eu não lhe sei explicar porquê – talvez os teóricos e os especialistas saibam –, o mundo da finança, a determinado momento, autonomizou se da economia e passou a ser um meio de ganhar dinheiro o mais rapidamente possível.
Já que convivia mal com as agências financeiras...
o que são essas agências financeiras? São grupos especializados em calcular se o País pode ou não pagar, se é prudente ou não emprestar dinheiro aqui e acolá, a este e não àquele, porque este é mais seguro e paga te mais depressa e melhor. o mais grave é que os bancos, e não só, afiliam se nessas agências internacionais, seguindo os seus princípios, caindo se numa espécie de contradição. Ainda não consegui perceber como é que um País que está aflito para pagar as suas dívidas se sobrecarrega de juros, tornando mais difícil o pagamento. Como é que se aguenta?
Há uns tempos atrás tive uma tarde muito interessante com o presidente da Microsoft (não foi cá, foi no estrangeiro), que veio explicar o que é este mundo em que hoje navegamos. Depois de nos ter traçado alguns cenários assustadores do desenvolvimento deste mundo, falou dos perigos existentes. Os perigos são uma perda progressiva da autoridade dos Estados que não controlam, e depois acrescentou, como uma coisa mais positiva, a existência de um governo mundial. Tem graça que há já algum tempo que as pessoas mais lúcidas falam nisso, numa autoridade extranacional, para além dos governos locais, que tenha poder.
Perante este cenário de crise, que possibilidades se oferecem aos portugueses? Vamos ter eleições...
os cenários, havemos de ser nós a descobri los. A situação é grave, preocupante, mas ainda não é irreversível. Se for bem gerida, situações deste tipo resolvem se no quadro internacional, não se resolvem na União Europeia mas na relação da Europa com o resto do mundo. Se quer a minha opinião, não sou pessimista, sou até um homem de esperança e de um certo otimismo, mas neste momento o problema que estamos a viver em Portugal ameaça nos a nós, mas a ameaça que me preocupa mais não é essa, é a ameaça sobre a Europa, como ela foi concebida no pós-Segunda Guerra Mundial, com o ideal de uma Europa fraterna e solidária.
A Europa está em crise?
Não tenha dúvida. Se o euro falha, falha a União Europeia, e a moeda única é um puzzle de equilíbrios. Estamos a sentir os primeiros sintomas: um que não paga, outro que não quer pagar, outro que diz que são uns preguiçosos, que só vão para a praia. A principal ameaça que paira entre nós – e que na Grécia e na Irlanda já é conhecida – é até que ponto está em questão aquilo que foi um grande ideal do pós guerra, de uma Europa solidária, de um espaço humano de governação e desenvolvimento supranacional, em que se respeita cada povo e a sua autonomia, mas em que se renuncia a algo para colaborar com um conjunto.
Concretamente, em relação a Portugal, já defendeu que só um governo maioritário poderá resolver a crise...
Essa minha afirmação não é de caráter político partidário. É dar voz a uma coisa que sinto nas pessoas que conheço: os portugueses têm o direito de esperar isso; que quem escolheu o caminho de governar Portugal perceba que, neste momento, o País tem de ser governado em consenso, com grandes linhas, que têm de ser traçadas na prática e que todos, ou quase todos, têm de aceitar. Se não se fizer isso, vai ser difícil.
Esse consenso significa um governo alargado.
Com certeza.
Vai votar?
Vou, com certeza. Não me pergunte em quem, que não lhe digo.
Acha que a Justiça fez tudo o que estava ao seu alcance para evitar que o país tenha chegado a esta situação?
É um mundo que conheço mal. Mas o que conheço até é muito positivo. Tenho um magistrado na família e sempre o vi trabalhar que nem um louco, com isenção e seriedade na análise dos problemas. Sempre me habituei a vê lo levar para casa montes de processos. Tenho uma ideia positiva pelas pessoas que conheço. Agora houve muitas alterações, e não é por acaso que uma das cláusulas do acordo com o FMI visa acelerar a Justiça, porque a Justiça demorada pode provocar colapso nas decisões da organização da sociedade.
Mas tenho a experiência interna da Igreja. Como sabe, também temos tribunais, e tenho a experiência de que se as coisas estão atrasadas não faz mal que a outra a seguir também se atrase. Só posso dizer, teoricamente, que uma Justiça dinâmica e competente será certamente um elemento decisivo para a dinamização da sociedade.
Acha que há uma Justiça para ricos e outra para pobres?
Há um discurso de Moisés, muito bonito, aos anciãos chamados para administrar a Justiça com ele: meus amigos, igual para todos, não há seleções entre pobres e ricos, e teoricamente isto tem sido conseguido. o que os ricos têm é mais capacidade para se defenderem.
A justiça canônica pode ser mais cara que a justiça civil, uma vez que as custas são determinadas pelas dioceses?
Não lhe sei responder a essa pergunta. Posso é dizer lhe que nos nossos tribunais eclesiásticos as pessoas que não puderem pagar, não pagam. É contemplado o caso da pessoa, não é por não poder pagar ou pagar pouco que o processo se atrasa. E dou lhe uma boa notícia: o nosso tribunal fez um esforço nos últimos dois anos e todos os processos entrados em 2010 estão já a ser instruídos. Mas são as dioceses que determinam as custas dos processos... Sim, mas há regras canônicas gerais.
A determinação das custas não fica ao arbítrio de cada diocese?
Não, e se há algum arbítrio é na aplicação da generosidade. o tribunal diocesano é um grande encargo para as finanças da diocese: pagamos o grosso das despesas.
As receitas que têm proveem das custas dos processos.
Sim. Não tenho sentido que haja tendência para a falcatrua: quem pode pagar paga com gosto, quem não pode pagar diz simplesmente que não pode.
A propósito das declarações de nulidade de matrimônio, a anterior Concordata permitia que fossem logo averbadas aos processos civis. A revisão de 2004 alterou esta situação e obriga as pessoas a intentarem um novo processo junto dos tribunais civis para que possa haver esse averbamento...
Não é um novo processo. Isso foi motivado por uma prática a que Portugal já tinha aderido no âmbito da Comunidade Europeia. Todas as sentenças estrangeiras, para terem aplicação em Portugal, têm um determinado trâmite, e era um pouco difícil... gastaram se horas a discutir essa questão. Não é um novo processo, são trâmites simples.
Aliás, está a decorrer de forma simples, só houve um problema com o Tribunal de Relação do Porto, mas foi corrigido rapidamente. Compreendi, na altura, que um Estado integrado na União Europeia que tem regras validadas relativas à aplicação de sentenças de outros países no próprio país, não podia ser exceção. A anterior Concordata foi feita numa altura em que nada disso existia. É evidente que antes era mais simples.
O que falta regulamentar na atual Concordata?
A Concordata de 1940 tinha uma legislação interpretativa e aplicativa que eram milhares de diplomas. Com a nova Concordata colocou se ao mais alto nível, com o governo da altura, a questão jurídica de saber se cessava automaticamente toda essa legislação interpretativa e aplicativa. E eu perguntei como é que era, se esta legislação que levou décadas a elaborar, como é que nós íamos conseguir fazer esse novo trabalho num curto período de tempo sem cair num período de vacância da lei.
Estiveram todos de acordo, foi pena que isso não tenha ficado por escrito, que a legislação da Concordata de 1940 se mantinha em vigor até ser substituída por legislação aplicativa e interpretativa da Concordata de 2004. Isto pacificou um pouco as coisas, mas não foi unanimemente seguida em todo o lado. Foi seguida, por exemplo, no Ministério da Educação.
É uma lacuna?
Não é, porque a matéria é muito semelhante, o que pode dar azo a que os poderes políticos se sirvam desta etapa para mudar o que está estabelecido. Estamos a trabalhar em diplomas aplicativos de 2004. De resto, não há outros problemas. o problema das capelanias prisionais foi mal resolvido, mas está...
Porquê é que foi mal resolvido?
Porque deu muita autonomia aos diretores das prisões e partiu de um princípio que não era o que estava na Concordata de 1940 e legislação posterior, e que dizia que o que bastava era a autorização da Igreja para ir lá dar assistência religiosa aos presos. Anularam completamente a ideia de que pode haver grandes estabelecimentos prisionais que podem precisar de um sacerdote a tempo inteiro. E que era justo terem uma remuneração. Todos estavam de acordo que a ideia de serem funcionários públicos não agradava nem a gregos nem a troianos, mas o terem uma remuneração parecia me justo.
Há um velho ditado português que diz que onde o frade canta, janta. Neste momento, tenho um conjunto de sacerdotes em ação nas cadeias quase a tempo inteiro e não recebem nada. Isso foi mal resolvido e espero que ainda se tenha de rever. Todos estão de acordo que uma coisa é uma visita ad casum, outra coisa é uma assistência regular e que toda a gente reconhece. Nos hospitais, deram como adquirido a importância das capelanias religiosas na própria estabilidade do doente. Não é por acaso que todos os hospitais convidam o sacerdote para o Conselho de Ética. Nas cadeias é mais complicado, porque não são todas iguais, vamos ver... Esta Concordata criou uma estrutura que é de atividade permanente e que é chamada de Comissão Paritária, cuja função é interpretativa e, porventura, de proposição de soluções.
E tem reunido?
Sim, tem uma composição paritária: três membros escolhidos pelo governo, três membros escolhidos pela Santa Sé. Agora está a funcionar e tem trabalhado. No fundo, é um tribunal interpretativo da lei. A Igreja tem uma grande tradição disso, as leis são o que são, mas há sempre um tribunal que decide da interpretação da lei. Aquilo que está ali dito significa que... Podem dizer não, não significa nada, vamos lá a ver o que significa...
Há poucos advogados com conhecimentos de direito canônico...
Têm aumentado nos últimos tempos. O tribunal eclesiástico só aceita advogados que sejam credenciados, e aí funciona segundo os princípios da atividade liberal dos advogados. Não somos nós que vamos decidir se os advogados levam X ou Y, têm é de ser credenciados pelo nosso tribunal. Na Universidade Católica, temos organizado cursos intensivos para licenciados em Direito, credenciando pessoas para essas funções, e a noção que tenho é de que tem aumentado o número.
E o que aconteceu à licenciatura em Direito Canônico?
Passa se uma situação curiosa. A grande tradição canônica em Portugal era a Universidade de Coimbra, que chegou a ter renome internacional nessa área. Com a República, e com o fecho da Faculdade de Teologia e de Cânones, ficamos restringidos, tanto nos estudos teológicos como nos canônicos, às universidades estrangeiras. Até a Universidade Católica ter surgido, nunca mais houve uma escola superior credenciada. Isso fez com que as universidades romanas, francesas e espanholas se dispusessem a responder à procura que ainda hoje existe em Portugal. Essa é uma das causas da pouca frequência em direito canônico. Vão mais alunos para Espanha do que para o nosso curso.
Mas o curso está a funcionar?
Neste momento, colocou se o problema de saber se deveria abrir para o próximo ano ou não. o reitor determinou que só abra com um número X de alunos. Está também em discussão a possibilidade de fazer um ano em Lisboa e outro ano no Norte. Não sei se chegaram a um acordo sobre esta viabilidade. Não é grave.
Justifica se que os cursos de Direito incluam no seu plano curricular disciplinas de direito canônico?
Ficava lhes muito bem. o Direito português caiu numa dimensão positiva muito acentuada, um positivismo jurídico que está longe de ser a orientação do direito canônico, que é compreender a pessoa e como é que a lei se aplica à pessoa. Este divórcio entre a compreensão e a aplicação da Justiça foi se dando, pouco a pouco, a partir de 1910. A própria compreensão da lei numa sociedade que se complicou cada vez mais... Independentemente disto, penso que estariam criadas as condições para haver uma cadeira, nem que fosse de opção. Hoje, sobretudo num país que tem Concordata, os nossos juristas deveriam saber um mínimo de direito canônico.
Já fez alguns contatos com escolas de Direito?
Não sou de Direito, os de Direito mexem se bem nessas áreas, mas não vejo que esteja criado o ambiente. Mas era interessante, porque daria aos jovens uma perspetiva complementar.
As mulheres não podem ocupar cargos de responsabilidade na Igreja Católica. Qual a sua perspetiva?
A sua afirmação não é exata, olhe, desde S. Paulo... o problema que foi posto recentemente é o do sacerdócio ministerial. Tirando isso, houve períodos em que as mulheres foram absolutamente decisivas; basta pensar no papel dos mosteiros, onde tinham altíssimas responsabilidades. o problema que se colocou foi acentuado pelo facto de igrejas não católicas terem ordenado mulheres para o sacerdócio ministerial, o que gerou, digamos assim, uma polêmica.
A posição da Igreja Católica está muito baseada no Evangelho, não tem a autonomia que tem, por exemplo, um partido político ou um governo em geral. Tem a sua fidelidade ao Evangelho, à pessoa de Jesus e a uma tradição muito forte que nós recebemos dos Apóstolos. E já no tempo de Jesus havia uma complementaridade muito bonita entre o papel da mulher e o papel do homem. Não foi por acaso que Jesus escolheu para apóstolos homens e deu às mulheres outro tipo de atenção...
Acho que este é um falso problema. Uma vez, estava numa comunidade de jovens aqui na Diocese e, quando chegamos ao diálogo, houve uma jovem que lançou a pergunta: porque é que as mulheres não podem ser padres? E eu resolvi arriscar. E disse: tens razão, mas para os outros estudarem esse assunto é preciso saber se há candidatas... qual de vocês gosta ria de seguir? Ficaram todas de cabeça para baixo.
Conheci e conheço mulheres responsáveis na Igreja que não querem o sacerdócio ministerial. Uma vez, num contexto de um encontro internacional sobre a nova evangelização, em Viena, foi lançada essa pergunta e eu disse que não há neste momento nenhum Papa que tenha poder para isso. Isso traria tensões, e só acontecerá se Deus quiser que aconteça e se estiver nos planos Dele acontecerá.
Uma vez perguntei a um sacerdote na Dinamarca, e ele foi muito curioso e disse me que no setor da caridade estão lá todas, com a sua ternura e dedicação; no que toca à presidência da missa dominical, ela esvaziou se assim que começaram as mulheres a presidir. Não sei porquê. o Santo Padre João Paulo II, a certa altura, pareceu dirimir a questão. Penso que a questão não se dirime assim; teologicamente não há nenhum obstáculo fundamental; há esta tradição, digamos assim... nunca foi de outra maneira.
Do ponto de vista teológico, não há nenhum obstáculo...
Penso que não há nenhum obstáculo fundamental. É uma igualdade fundamental de todos os membros da Igreja. o problema põe se noutra ótica, numa forte tradição, que vem desde Jesus, e na facilidade com que as igrejas reformadas foram para aí. Isto não facilitou a solução do problema, se é que o problema tem solução. Não é com certeza para a nossa vida, hoje então, no momento que estamos a viver, é um daqueles problemas que é melhor nem levantar... suscita uma série de reações.
Casamento entre pessoas do mesmo sexo, legalmente a situação já está resolvida em Portugal...
Acha que está? Aí, a questão não é só um problema de lei, mas de civilização. Acho que a Natureza tem uma voz muito forte e o abandonar a ideia do casamento com dois seres que são diferentes e que querem ser um só é um problema de civilização. Não está resolvido, não tenha ilusões, é daqueles problemas que virá sempre ao de cima. Para a Igreja é absolutamente impensável aderir a uma coisa dessas.
Disse, numa entrevista recente, que nenhum cristão pode fazer da sua sexualidade um absoluto.
A sexualidade faz parte de uma capacidade relacional entre homem e mulher. A sexualidade é inseparável da ternura e do diálogo de outro tipo entre duas pessoas. Uma relação interpessoal reduzida à sexualidade não tem capacidade para andar. No ocidente, evoluímos muito para a ideia do amor paixão, mas não é isso que aguenta. o que aguenta é a estrutura de um diálogo entre as pessoas.
Num sínodo dos bispos sobre a família apresentou se um estudo comparativo sobre a duração dos casamentos no ocidente, em que começam com a paixão, e na África e Ásia, que são escolhidos pela família. A duração desses casamentos em que há uma estrutura tribal e familiar é muito maior que no ocidente. Só para lhe dizer que a sexualidade é inseparável da ternura, da generosidade, do contribuir para o bem do outro. Passa se com a sexualidade o que se passa com a economia: se eu estou na sociedade só a pensar em defender o meu interesse, não vou longe.
Passando agora para o contexto internacional: as revoltas no Médio Oriente podem acentuar o radicalismo islâmico?
Podem e também podem pô lo em questão. É cedo ainda para fazermos uma avaliação global, é um fenômeno muito alargado. São países em relação aos quais ninguém arrisca, neste momento, um prognóstico. Fundamentalmente, os dinamismos que surgiram são positivos, é uma reação contra as ditaduras, contra a opressão. Ainda não percebi até que ponto traz por detrás uma reação religiosa, uma reação contra uma imposição demasiado drástica da lei islâmica sobre a vida das pessoas. Tenho estado atento, parece me que os mecanismos que se deram são muito semelhantes aos que se deram no ocidente: à medida que aumenta a cultura e a capacidade crítica, basta riscar um fósforo para tudo acontecer. o que vai dar tudo isto?
Não sei. O 25 de abril foi feito com a maior das generosidades, mas também ingenuidades, por um grupo de capitães de abril que conseguiram derrubar um governo de que toda a gente estava cansada, mas da mesma maneira que eles não conseguiram controlar o processo que foi depois cavalgado por outras forças, isso pode acontecer nestes países, porque há movimentos fundamentalistas muito fortes; estou a pensar no Egito, na Síria, na Jordânia, em Marrocos. Em que medida é que esta busca da liberdade vai criar ruturas na sociedade, permitindo lhes a eles conquistar mais poder, não sei.
Há que gerir, por exemplo, o problema de milhares de refugiados...
A Europa está fragilizada. Foi mais fácil mandar bombardeiros para bombardear do que criar uma estrutura rápida e imediata para acolher os refugiados.
Mas justifica se que alguns países coloquem entraves à entrada de imigrantes?
Hoje, num mundo de globalização, em que todo o mundo conhece todo o mundo e a fraternidade é um grande desafio, custa me que a Europa se tenha transformado numa fortaleza intransponível, e então num momento destes. Acho que a gente tinha de encontrar outras soluções, mas também não sei como. Honra seja feita ao governo italiano, que se tem esforçado para acolher aquela pobre gente, mas as reações coletivas da 7ª. Convenção de Schengen vão no sentido de uma atitude que a Europa já tem há muito tempo e que é a sua transformação numa fortaleza.
Como vê a morte de Bin Laden e as reações que suscitou?
Temos de compreender os americanos. O Bin Laden representou o que há de mais extremista na violência do Islão em relação ao ocidente. E aquilo não é nada meigo, é mesmo a sério. Compreendo que o povo americano festeje, agora não sei se é esse o caminho. Há um período eleitoral, pode ser um triunfo para o atual Presidente. Não sei se é esse caminho, sabemos pouco do que se passou. Pelas notícias divulgadas, penso que sim, que o podiam ter prendido. Se o podiam ter prendido, não o deviam ter morto.
Uma execução extrajudicial é uma coisa que nós, no ocidente, recusamos terminantemente. o que aconteceu só pode ser justificável em auto defesa. Não quero julgar ninguém, compreendo a situação, mas a violência só gera violência, nunca é solução para nada. Nunca foi e nunca será. Durante um certo período, a Al Qaeda terá mais poder do que teria com ele vivo. Tanto quanto estou informado, esta rede é muito autônoma, e os países europeus vão ter de estar muito atentos.
O que é que lhe falta fazer?
Se fosse à minha secretária, veria... O que me falta fazer? Fazer o melhor possível, em cada momento presente, até ao fim desta missão. Ajudar a Igreja, os meus irmãos, contribuir para a sociedade. Nunca tive um programa a dizer tenho de fazer isto, aquilo ou falta me fazer isto e aquilo. Também não o tenho agora.
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"Teologicamente, não há nenhum obstáculo ao sacerdócio feminino". Entrevista com o cardeal patriarca de Lisboa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU