"Poucos discordam da necessidade imperiosa, neste momento, da coordenação entre as políticas fiscal, monetária e de crédito com o propósito de fazer a inflação regredir para o centro da meta. Mas, a economia emergente, "bola da vez" está indefesa diante do livre ingresso de capitais. Nessa toada, o otimismo dos mercados erige desequilíbrios perigosos nos balanços de empresas, bancos, governos e famílias", escreve
Luiz Gonzaga Belluzzo, economista, em artigo publicado no jornal
Valor, 22-06-2011.
Eis o artigo.
O sistema monetário internacional desenhado em
Bretton Woods nos idos de 1944 almejava a constituição de um conjunto de regras destinado a prevenir a instabilidade que sacudiu a economia mundial nos anos 20 e 30 do século XX. As novas regras determinavam a conversibilidade da moeda reserva à razão de US$ 35 por onça-troy; adoção de taxas de câmbio fixas, mas ajustáveis; limitada mobilidade de capitais; cobertura de déficits em transações correntes atendida por uma instituição pública multilateral.
Em sua concepção original, o
Fundo Monetário Internacional (FMI) deveria funcionar como um provedor de liquidez aos países com desequilíbrio de curto prazo no balanço de pagamentos. O artigo VII dos estatutos do Fundo Monetário - a chamada cláusula da "moeda escassa" - permitia a adoção de controles cambiais em situações de agudo desequilíbrio do balanço de pagamentos.
Câmbio e juros, nesse sistema, eram preços-âncora, cuja relativa estabilidade e previsibilidade eram vistas como essenciais para a formação das expectativas dos possuidores de riqueza envolvidos nas decisões de produção e investimento. Este "modo de regulação" tinha um duplo objetivo: construir um sistema monetário realmente internacional, favorável à expansão do comércio entre as nações e impedir que condicionantes ou choques externos passassem a comandar a política econômica doméstica, definindo a trajetória das economias nacionais.
Os controles cambiais - sobretudo na conta de capital - eram prática corrente: as políticas monetárias e fiscais (bem como os sistemas financeiros nacionais) deveriam estar voltadas para a sustentação de taxas elevadas de crescimento econômico e para a maximização do bem-estar dos cidadãos. Essa etapa terminou no "dollar glut" e, em 1971, na decretação unilateral do fim da conversibilidade da moeda americana com ou ouro à razão de US$ 35 por onça-troy.
Superada a crise da estagflação e da baixa "produtividade" dos anos 70 do século passado, a elevação da taxa de juro deflagrada por
Paul Volker em 1979 deu novo impulso à "expansão americana". À sombra do fortalecimento do dólar, os Estados Unidos impuseram a liberalização financeira "urbi et orbi", assim como impulsionaram a metástase produtiva para o Pacífico dos pequenos tigres e novos dragões. Nos últimos 30 anos, a desregulamentação dos mercados e a crescente liberalização dos movimentos de capitais alteraram profundamente o jogo das regras.
A partir de 1973, os regimes cambiais caminharam na direção de um sistema de taxas flutuantes. Tratava-se, diziam, de escapar das aporias da "trindade impossível", ou seja, da convivência entre taxas fixas, mobilidade de capitais e autonomia da política monetária doméstica. As palavras de ordem do novo consenso proclamavam as virtudes da abertura comercial, da liberalização das contas de capital, da desregulamentação e da "descompressão" dos sistemas financeiros domésticos.
Um após outro, os países de moeda não conversível promoveram a abertura financeira. Nos países centrais, a desregulamentação financeira rompeu os diques de segurança erigidos depois da crise dos anos 30. Nos EUA, tais restrições à finança buscavam impedir que os bancos comerciais se envolvessem no financiamento de posições "especulativas" nos mercados de riqueza (ações e imóveis), com consequências indesejáveis para a solidez dos sistemas bancários.
Com o benefício da visão retrospectiva, é fácil dizer que a associação entre liberalização das contas de capital e desregulamentação financeira provocou a excitação dos ciclos de crédito, a formação de bolhas nos mercados de ativos e a sucessão de crises bancárias, cambiais e de endividamento soberano na periferia.
Alan Greenspan, às vésperas de sua saída da presidência do
Federal Reserve (Fed, banco central americano), chamou a atenção para as alterações provocadas pela globalização nas relações entre desemprego e inflação. Ele dizia que "durante as últimas décadas, a inflação caiu sensivelmente no mundo inteiro, assim como a volatilidade da economia. A globalização e a inovação parecem elementos essenciais de qualquer paradigma capaz de explicar os eventos dos últimos 10 anos."
Em seu livro "
Interest and Prices", o economista
Michael Woodford nos presenteou com uma exposição sobre o regime de metas.
Woodford, apoiado "nos escritos monetários (não quantitativistas) de
Knut Wicksell" se propõe a definir as condições de existência de uma regra ótima de reação do banco central diante de alterações antecipadas no nível geral de preços.
Os bancos centrais buscam coordenar as expectativas dos formadores de preços e dos detentores de riqueza, de modo a consolidar a confiança em sua atuação, atenuando a volatilidade do nível geral de preços, da renda e do emprego. O livro de
Woodford interpreta
Wickssel de forma peculiar. O autor constrói uma hipotética economia monetária na qual o crédito está praticamente ausente.
Wickssel, na verdade, caminhou para a concepção de uma economia de "crédito puro" para examinar os processos cumulativos de inflação e deflação.
A obra de
Woodford não menciona, sequer no glossário, a expressão "exchange rate". Isto, imagino, pode significar que nos países de moeda conversível, as flutuações do câmbio apenas têm efeitos "reais" na medida em que afetam os preços relativos entre "tradables" e "non tradables". Mas
Woodford parece considerar irrelevantes as flutuações do câmbio para a formação das expectativas dos agentes em uma economia de preços rígidos.
Woodford não surpreende, portanto, ao negar relevância à globalização dos mercados de bens e serviços, ativos financeiros e de fatores de produção sobre as regras de atuação dos bancos centrais.
Na contramão, o economista do
Banco para Compensações Internacionais (BIS, na sigla em inglês),
Cláudio Borio, rebateu os argumentos de
Woodford: "Nossas descobertas sugerem que os fatores globais se tornaram mais importantes do que os fatores domésticos".
Borio se refere às mudanças importantes que afetaram, antes da crise financeira, as condições da oferta e da demanda na economia globalizada. São elas:
1) A grande empresa manufatureira se deslocou para regiões onde o custo unitário da mão de obra é sensivelmente mais baixo. Nesses mercados, a oferta ilimitada de mão de obra impede que os salários acompanhem o ritmo de crescimento da produtividade.
2) As elevadas "taxas de exploração" nos emergentes asiáticos incitaram a rápida criação de nova capacidade produtiva na indústria manufatureira, com ganhos de produtividade, acirrando a concorrência global entre os produtores de manufaturas.
3) As políticas de comércio exterior dos emergentes em processo de "perseguição" industrial combinam saldos comerciais alentados, acumulação de reservas e políticas de defesa do câmbio real.
4) Os Estados Unidos, beneficiados pela capacidade de atração de seu mercado financeiro amplo e profundo absorveram um volume de capitais externos muito superior aos déficits em conta corrente. Borio procura demonstrar que em um mundo em que prevalece a mobilidade de capitais a determinação não vai do déficit em conta corrente para a "poupança externa". É a elevada liquidez e a alta "elasticidade" dos mercados financeiros globais que patrocinam a exuberante expansão do crédito, a inflação de ativos e o endividamento das famílias viciadas no hiper-consumo. A inflação ia muito bem, obrigado.
A combinação entre esses fenômenos - baixa inflação e excessiva elasticidade do sistema financeiro - acentuou o caráter pró-cíclico da oferta de crédito e impulsionou a criação de desequilíbrios cumulativos nos balanços de famílias, empresas e países - com sérias consequências para a eficácia das políticas monetárias nacionais. A questão central, na opinião do economista do BIS, reside no crescimento excepcional dos fluxos brutos de capital entre as economias centrais, particularmente entre Wall Street e a City londrina. Isso significa que as mudanças patrimoniais entre os agentes privados e públicos (bancos, empresas, governos e famílias) foram muito mais intensas do que as refletidas no financiamento do déficit em conta corrente. "Assim, mesmo que os Estados Unidos não apresentassem déficits externos ao longo dos anos 90 (e da primeira década do século XXI), o ingresso de capitais teria sido robusto."
O autodesenvolvimento do sistema financeiro, investido em seu formato global e incitado por sua "vocação inovadora", inverteu as relações macroeconômicas que frequentam os manuais e os cursos das universidades mais afamadas do planeta. As inovações financeiras e a integração dos mercados promovem a exuberância do crédito, a alavancagem temerária das famílias consumistas e, obviamente, a deterioração dos balanços de credores e devedores. É esse "arranjo" que gera o déficit em conta corrente e não o contrário.
Por isso,
Borio insiste na criação de instrumentos destinados a prevenir a excessiva inclinação dos sistemas financeiros a desatar esses movimentos pró-cíclicos do crédito. Entre a gama variada de tais instrumentos, Borio separa os de natureza preventiva e aquele que possuem caráter discricionário. Entre os primeiros estão os requerimentos de capital, as relações entre os empréstimos e o valor dos ativos e medidas para prevenir descasamentos de moedas.
Borio suspeita que os instrumentos de precaução tenham eficácia relativa na avaliação dos riscos diante das novas articulações entre os critérios de concessão do crédito e o valor dos ativos. As sinergias entre essas "conjeturas" foram decisivas para deflagrar, nos episódios recentes, as interações perversas entre o movimento de preços dos ativos e a euforia descontrolada na avaliação dos riscos de crédito. Requerimentos de margem mais rigorosos e restrições quantitativas aos empréstimos deveriam ter sido utilizados com maior frequência para impedir a alavancagem excessiva e imprudente, atuando em conjugação com os instrumentos precaucionais.
É compreensível que os asiáticos utilizem, juntamente com a taxa de juro, um arsenal diversificado de instrumentos de política monetária e creditícia. Entre outras coisas, eles sabem ou aprenderam que os excessos nos juros provocam efeitos indesejáveis no câmbio. Isso ocorre, sobretudo, neste momento em que os "yields" estão ralos nos países desenvolvidos, os
Piigs estão quebrados e a turma da bufunfa se dedica ao conhecido esporte do "carry trade", o que inclui a formação de posições favoráveis às moedas dos emergentes nos mercados futuros.
Já entre 2004 e 2008, os preços de energia, de alimentos e de matérias-primas começam a pressionar os índices de inflação e a contrabalançar os efeitos deflacionários da escalada industrial chinesa. No momento em que a crise promoveu a derrocada do nível de atividade global - deixando atônitos os mercados financeiros - os preços das commodities despencaram.
Providenciado o socorro pela mão visível do Estado, a inflação de commodities voltou com força redobrada. Nessa rápida e gloriosa recuperação, a pronta reação dos emergentes asiáticos, sobretudo da China, foi fator importante. Mas os analistas, em geral, olham para outro lado quando se trata de avaliar a importância dos mercados futuros de commodities tangidos pelas operações quantitativas do Fed.
Confirmando os trabalhos do saudoso economista
Robert Triffin, os EUA, mais uma vez, ignoram o caráter de moeda-reserva do dólar e descarregam seus interesses nacionais sobre a cabeça de gregos, troianos e brasileiros. A desvalorização do dólar dá força à inflação de commodities e, ao mesmo tempo, valoriza as moedas do resto do mundo, com deferência especial para os exportadores de commodities. Impulsionados pelo tsunami de liquidez que assola os mercados globais, as instituições financeiras, fundos e assemelhados continuam a apostar na valorização de ativos.
Entre 2003 e 2007 a economia brasileira empreendeu uma respeitável redução de sua vulnerabilidade externa. A balança comercial foi a "estrela" dessa façanha. Benfazeja, a situação internacional empurrou o superávit na conta de mercadorias para além os US$ 40 bilhões em 2007, às vésperas da crise.
A elevação dos preços das commodities e os diferenciais de juros, em uma conjuntura internacional de rendimentos modestos, ensejaram simultaneamente, a ampliação do saldo comercial, o rápido crescimento das importações, acumulação de reservas acima de US$ 300 bilhões e a valorização do real. Esses resultados animaram alguns analistas a comemorar a entronização do país na categoria de "investment grade".
É recomendável, porém, cautela e modéstia quando o ambiente internacional transita de uma conjuntura excepcionalmente favorável para outra em que prevalece a incerteza. A euforia provoca o descuido. A valorização do real incentivou a elevação do endividamento de bancos e empresas em moeda estrangeira. Isso torna os balanços privados mais sensíveis a uma reversão dos fluxos de capitais por conta do arriscado "descasamento" de moedas, fenômeno de sobejo conhecido, mas sempre ignorado pelos brasileiros. É ilusão imaginar que o passivo externo líquido - construído pelo endividamento privado - é irrelevante. Ainda mais ilusório é supor que o regime de câmbio flutuante vai resistir a uma eventual reversão do fluxo de capitais.
No "lado real", as últimas cifras da balança comercial revelam que a maioria dos setores da indústria de transformação (borracha e plásticos, máquinas, produtos de metal, química, eletrônica, material de transporte, têxtil e vestuário) apresentam déficits crescentes em suas transações com o exterior. A indústria de transformação brasileira, em seu conjunto, apresentou um déficit de mais de US$ 34,7 bilhões em 2010. O superávit comercial resiste por conta das commodities.
O choque de preços de alimentos e energia que ora sacode o planeta, bem como sua generalização promovida pelo aquecimento da demanda doméstica, suscitou uma nova rodada de elevação dos juros básicos - já bastante parrudos - e revigorou a valorização da moeda nacional.
É legítimo debater se o BC atuou de forma tempestiva. A economia brasileira tem revelado a alta sensibilidade dos preços dos bens comercializáveis a choques externos. Ademais, as tarifas dos serviços públicos e o mercado financeiro estão contaminados pela indexação. A dinâmica da dívida pública acusa imediatamente os efeitos da elevação das taxas de juros, por conta da indexação dos títulos à Selic. Essa é a dimensão perversa da "memória inflacionária", embora confortável para os chefes de tesouraria, é negativa para o desenvolvimento do mercado de capitais doméstico.
Uma economia de moeda não conversível e com indexação financeira está submetida a severos constrangimentos: a estabilização da trajetória da dívida exige, em tais condições, a obtenção superávits fiscais. Poucos discordam da necessidade imperiosa, neste momento, da coordenação entre as políticas fiscal, monetária e de crédito com o propósito de fazer a inflação regredir para o centro da meta. Mas, a economia emergente, "bola da vez" está indefesa diante do livre ingresso de capitais. Nessa toada, o otimismo dos mercados erige desequilíbrios perigosos nos balanços de empresas, bancos, governos e famílias.
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Finança global e a miséria da macroeconomia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU