08 Junho 2011
A produção e a circulação dos conteúdos sem o controle das empresas alimentam a miragem libertária de uma sociedade pós-capitalista. A "classe criativa" é uma hidra usada para legitimar o regime de precaridade dominante e ocultar as possibilidades políticas do trabalho vivo.
A análise é de Benedetto Vecchi, publicada no jornal Il Manifesto, 01-06-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Carlo Formenti é um estudioso atento da "cultura de rede". Além disso, ele tem a virtude da clareza e de um realismo desencantado e ainda compartilhável, elementos que, infelizmente, estão ausentes em muitas das reflexões provenientes do mundo anglo-saxão. Uma clareza e um realismo que o levaram a se medir criticamente com autores e percursos de pesquisa que sempre qualificaram a rede como um reino realizado da liberdade.
No livro Felici e sfruttati ele descreve essa constelação teórica, colocando em guarda atalhos fáceis, porque é uma constelação teórica que, apesar das inegáveis diferenças em seu interior, é capaz de exercer uma hegemonia cultural, isto é, consegue apresentar uma ordem do discurso que produz consenso e que, por essa sua capacidade performativa, merece ser desmontada peça por peça.
O autor de Felici e sfruttati explorou todos os lugares comuns da cultura dominante da rede: Internet, reino da gratuidade; a web como sinônimo de liberdade de expressão, por ser impregnada pela capacidade dos indivíduos de produzir conteúdo autonomamente; o ciberespaço como habitat de um empreendedorismo tão difundido que é possível falar tranquilamente do advento de uma sociedade pós-capitalista. Por trás desses lugares comuns, está a inveterada convicção de que a tecnologia é sempre um instrumento de liberdade.
Com serenidade, Formenti evoca repetidamente os últimos escritos de Marshall McLuhan, quando o teórico da "aldeia global" convidava à cautela na troca das potencialidades de uma tecnologia com as mudanças que colocavam em movimento, chegando a defender que a imprensa, o rádio e a TV estavam mudando as faculdades cognitivas do ser humano. Teses recentemente retomadas por Nicholas Carr, um dos críticos mais interessantes da chamada googlization.
Porém, não nos encontramos diante da reproposição da alternativa entre apocalípticos e integrados. O problema não é entre rejeitar a tecnologia digital ou, ao contrário, considerá-la uma tecnologia da libertação. A questão a ser resolvida é o que fazer em uma realidade em que a grande transformação já ocorreu. É uma pergunta inevitável, que obriga a medir a análise realizada até agora, à luz do que há de conflitante que se move dentro e fora da tela. Desse ponto de vista, o panorama faz pensar que nem tudo está perdido, como muitas vezes surge das páginas desse livro.
Tomemos a crítica que Formenti desenvolve às teses de um capitalismo sem propriedade privada. De acordo com o jurista norte-americano Yochai Benkler, a rede seria caracterizada por empresas que se apropriam a posteriori da riqueza produzida por uma cooperação social que produz e distribui conteúdos. Isto é, tomando distância da linguagem liberal de Benkler, estamos diante de uma acumulação por expropriação. Só que, quem são expropriadas não são as matérias-primas ou a terra, mas sim os conteúdos digitais.
O instrumento para essa "captura" da riqueza é o capital financeiro e as normas sobre o copyright, patentes e proteção de marcas. Análise à qual Forman certamente não tem nenhuma dificuldade de aceitar, como testemunham os capítulos dedicados a "Capital, valor e trabalho no tempo da Rede". O ponto de discordância é, no máximo, sobre como interromper o círculo virtuoso entre finanças e propriedade intelectual.
O autor de Felici e sfruttati considera, de fato, que o sujeito da transformação não poderá ser nem a classe criativa, nem a multidão teorizada pela chamada escola pós-operaísta. Mas a classe criativa é uma construção sociológica tão frágil quanto impregnada pela ideologia neoliberal do indivíduo proprietário. Isto é, é a expressão com a qual o seu inventor, Richard Florida, indicou pudicamente o fato de que a cooperação produtiva, dentro e fora da tela, excede as relações sociais de produção e que esse excedente – de talento, de conhecimento, de "savoir faire" - deve ser endereçado para a requalificação das metrópoles. Em suma, o excedente das relações sociais mostrado pelo trabalho vivo contemporâneo deveria ser desviado, segundo Florida, e aproveitado em uma requalificação do território metropolitano. Uma requalificação que não se limita só à degradação ambiental, mas favorece o contexto em que a produção de conhecimento e da sua divulgação seja propedêutica a uma inovação contínua tanto dos processos produtivos, quanto dos produtos.
Na tese de Florida, surge o problema de neutralizar o potencial político para uma crítica do capitalismo digital que o trabalho vivo continua manifestando. Em formas insuficientes, certamente, que preferem o âmbito micropolítico à grande Política (isto é, aquele concernente à superação da atual organização social).
Porém, há dois hóspedes inesperados nesse panorama muito mais dinâmico e aberto ao conflito social do que aparece em algumas páginas do livro. O primeiro se chama precariedade, uma condição que revela como todas as figuras do trabalho vivo – ou seja, sem nenhuma distinção perniciosa e instrumental entre trabalho material e imaterial – estão encerradas em um regime de exploração que obrigam justamente a se medir não com a micropolítica, mas sim, precisamente , com a grande Política. O segundo hóspede se chama "economia do dom".
Essa é uma expressão modificada das teses desenvolvidas, entre os anos 1930 e 1940, do economista austríaco Karl Polanyi e das análises dos antiutilitaristas franceses de Mauss. Carlo Formenti a introduz para indicar a possibilidade de uma transformação social que tome distância do capitalismo, sem refazer caminhos já conhecidos.
Mas a "economia do dom" desloca a atenção sobre o consumo, ou seja, removendo aquela realidade que vê produção, circulação e consumo como momentos sempre mais copresentes em um mesmo processo de valorização. É essa "totalidade" que deve ser assumida como o contexto em que o conflito age, sem esperar messianicamente que o desenvolvimento capitalista crie as condições para a sua superação.
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