14 Abril 2011
Da Espanha de 1808 à Líbia de 2011, muito mudou, mas não a vontade de adoçar a violência das armas com nobres motivações. Eis porque, segundo o filósofo Tzvetan Todorov, nascido em Sofia há 72 anos e parisiense por adoção, para entender as guerras, incluindo a conduzida pela Otan nestes dias entre Trípoli e Bengasi, basta se remeter a Goya.
A reportagem é de Stefano Montefiori, publicada no jornal Corriere della Sera, 12-04-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
"Ele não foi só um grande pintor, mas também um intelectual que conseguiu refletir de modo profundo sobre o que acontecia ao seu redor", diz Todorov, autor de Goya à l’ombre des Lumières. "Ele era muito influenciado pelos iluministas espanhóis do final do século XVIII e assistiu à invasão da Espanha do lado das tropas napoleônicas que combatiam, pelo menos teoricamente, em nome dos direitos humanos e dos ideais das Luzes. O espetáculo das atrocidades cometidas tanto pelos franceses quanto pelos guerrilheiros espanhóis o fez refletir sobre a guerra. Foi assim, antecipadamente aos seus tempos, que podemos considerá-lo como um contemporâneo".
Quadro "El 3 de mayo de 1808 en Madrid: los fusilamientos en la montaña del Príncipe Pío", de Goya |
Na coleção de incisões Os desastres da guerra, Goya mostra pilhas de corpos combatentes dos dois lados jogados em fossas comuns, fuzilamentos sumários. "Os franceses encontraram uma resistência duríssima. Foi nesses dias, além disso, que foi cunhada a palavra guerrilha. Os espanhóis combatiam por patriotismo e por fidelidade aos valores tradicionais da religião. Os franceses, em nome da razão e da liberdade, fraternidade e igualdade. Mas os horrores eram os mesmos. Goya preferiu inclinar-se não contra um lado ou outro, mas contra a guerra".
Uma posição que hoje é retomada por Tzvetan Todorov a propósito das intervenções na Líbia e também na Costa do Marfim, justificadas pela necessidade de defender os direitos humanos, protegendo as populações civis.
"Acredito que, infelizmente, a guerra tem a sua lógica interna, que a impede de permanecer, assim, circunscrita e cirúrgica como defende quem a propõe. Antes do dia 19 de março, as tropas de Kadafi estavam executando um massacre em Bengasi. Foi o que o presidente Sarkozy nos repetiu para convencer o Ocidente a intervir. Foram, então, legítimos os primeiros bombardeios, aqueles que frearam o avanço do regime. Mas depois a intervenção pseudo-humanitária se transformou em uma outra coisa".
Eis a entrevista.
O Ocidente é frequentemente criticado pela sua inação, pela tentação de ficar olhando enquanto a poucos quilômetros de distância, neste caso na margem sul do Mediterrâneo, os tanques sufocam o desejo de liberdade. O senhor, hoje, critica o protagonismo de Sarkozy, mas antes da intervenção o presidente francês e a Europa eram acusados de um cínico desinteresse e de appeasement com os ditadores.
É um reflexo intelectual em voga na França o de acusar quem se diz contrário à guerra, lembrando-lhe os acordos de Munique de 1938, que permitiram que Hitler ganhasse posições na conquista da Europa. Não é a mesma coisa, e eu não digo que todas as guerras são injustas. As guerras defensivas, como a dos Aliados em 1939-1945, são legítimas. E as guerras para impedir um genocídio claro. Mas, nesses casos, o Ocidente nunca se mexe. Foi o Vietnã que freou a carnificina operada pelos Khmer vermelhos no Cambodja. E foram os ruandeses aliados com a Uganda que puseram fim ao massacre na Ruanda.
Porém, o fato de que os direitos humanos tenham voltado a ser uma bandeira do Ocidente é positivo, talvez.
Não, eu acho isso muito arriscado, ao contrário. Estamos diante de uma nova fase de messianismo político. A primeira é justamente a napoleônica, retratada por Goya. A segunda onda messiânica foi a do comunismo, que prometia levar as massas à libertação com a Armada Vermelha, começando pelos pequenos países europeus na fronteira com a Rússia. E agora assistimos ao terceiro despertar do messianismo político: a primeira guerra do Golfo foi um teste; a intervenção em Kosovo, sem mandato da ONU, a prova geral, e eis depois o Afeganistão, Iraque, hoje Líbia. No fundo, o que é a guerra no Afeganistão senão a reprodução, 200 anos depois, do confronto entre iluministas e tradicionalistas, napoleônicos e conservadores e patriotas espanhóis que hoje chamaríamos de talibãs?
Os retratos de Goya são como as fotos na Internet de Abu Ghraib. Mas é possível um "não" filosófico, absoluto, à guerra?
Não, e não acho que seria um bem. A ambição de extirpar totalmente o Mal seria ainda mais prejudicial: é a função do pecado original, recordemo-nos, como dizia Romain Gary, que existe uma "parte inumana da humanidade". Devemos, porém, procurar limitar ao máximo as guerras não inevitáveis. Como a da Líbia, por exemplo.
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"Como Goya, temo o messianismo político". Entrevista com Tzvetan Todorov - Instituto Humanitas Unisinos - IHU