23 Março 2011
"Os massacres cometidos em nome da democracia não tornam a vida mais doce do que aqueles perpetrados por fidelidade a Deus ou a Alá, ao Líder ou ao Partido. O resultado é sempre o mesmo: os desastres da guerra."
A análise é do filósofo, historiador e linguista búlgaro Tzvetan Todorov, em artigo para o jornal La Repubblica, 23-03-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A intervenção militar na Líbia suscitou na França um coro de consensos, provenientes tanto dos partidos representados no Parlamento, como para a guerra no Afeganistão, quanto dos comentaristas. Ouvimos dizer que a França sinalizou um golpe de mestre. O chefe inimigo é designado só em termos superlativos: tornou-se o demente, o louco, o torturador, o tirano sanguinário, ou até descrito, com referência às suas origens, como "beduíno astuto".
Abusa-se dos eufemismos: ao invés de matar a sangue frio, fala-se de "assumir suas próprias responsabilidades"; não se recomenda que se limite o número dos cadáveres, mas sim de proceder "sem excesso de forças devastadoras". Para justificar a entrada na guerra, citam-se comparações arriscadas: não intervir equivaleria a repetir os erros cometidos em 1937 com a Espanha, em 1938 com Munique, em 1994 na Ruanda…
Quem hesita é estigmatizado. A Alemanha não esteve à altura, a Europa deu provas de uma surpreendente relutância, senão até da sua habitual pusilanimidade. Os países emergentes são culpados de não querer correr riscos – como se quem estivesse arriscando muito fossem os defensores da guerra da capital francesa!
É verdade que, diferentemente da guerra no Iraque, a intervenção na Líbia foi aprovada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. Mas legalidade é sinônimo de legitimidade? Na base da decisão, encontra-se um conceito introduzido recentemente: a responsabilidade de proteger as populações civis de um país das ameaças provenientes dos seus próprios dirigentes.
Ora, a partir do momento em que essa "proteção" não tem mais o significado de ajuda humanitária, mas sim o de intervenção militar de um outro Estado, não se vê o que isso tem de diferente do "direito do ingerência" que os países ocidentais haviam reivindicado há alguns anos. Se todo Estado pudesse decidir que tem o direito de intervir nos seus vizinhos para defender uma minoria maltratada, inúmeras guerras estourariam instantaneamente. Basta pensar nos chechenos na Rússia, nos tibetanos na China, nos xiitas nos países sunitas (e vice-versa), nos palestinos nos territórios ocupados por Israel...
Certamente, deveriam ser autorizadas pelo Conselho de Segurança. O qual, porém, tem uma particularidade, que é ao mesmo tempo o seu pecado original: os seus membros permanentes dispõem de um direito de veto sobre todas as decisões, e isso lhes coloca acima da lei que o próprio Conselho de Segurança deveria encarnar: jamais poderão ser condenados, assim como não serão os países que escolherem apoiar!
E, o que é pior, para se isentar do veto, intervêm sem a autorização das Nações Unidas, como no caso do Kosovo e no do Iraque. A invasão armada deste último país, fundada em um pretexto fictício (a presença de armas de destruição em massa) custou centenas de milhares de mortos. Porém, os países invasores não sofreram nem a mínima sanção oficial. A ordem internacional encarnada pelo Conselho de Segurança consagra o reino da força, não o do direito.
Mas pelo menos desta vez, se dirá, intervém-se em defesa dos princípios, não dos interesses. Estamos realmente certos disso? A França continuou por muito tempo defendendo as ditaduras no poder nos países vizinhos, como a Tunísia e o Egito. Preferindo hoje dar o seu apoio aos insurgentes líbios, Paris espera restaurar o seu prestígio. E, ao mesmo tempo, dá uma demonstração da eficiência das suas armas, colocando-se assim em uma posição de força nas futuras negociações.
No plano interno, conduzir uma guerra vitoriosa – e, além disso, em nome do Bem – serve sempre para aumentar novamente a popularidade dos dirigentes. Considerações análogas podem ser feitas no caso dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha. Insiste-se muito nas declarações de apoio (antes de ter começado a mudar de parecer) da Liga Árabe, cujas opiniões, além disso, raramente são apreciadas no Ocidente! Olhando bem, no caso presente, os Estados que dela fazem parte têm vários interesses em jogo. A Arábia Saudita e os seus aliados estão prontos para defender os ocidentais no confronto com o rival líbio, dado que isso lhes permite reprimir impunemente os movimentos de protesto dentro das suas próprias fronteiras. Os sauditas, não exatamente exemplares em questões de instituições democráticas, encorajaram a repressão no Iêmen e já intervieram militarmente no Bahrein, escolhendo, nesses dois Estados vizinhos, "proteger" os dirigentes contra a população.
O coronel Kadafi massacra a sua gente: não seria justo alegrar-se pelo fato de poder impedir-lhe, sejam quais forem as justificações adotadas ou os motivos recônditos dessa escolha? O inconveniente está, porém, no fato de que a guerra é um meio tão poderoso que faz com que se esqueça o próprio objetivo. Só nos videogames pode-se destruir os armamentos sem tocar nos seres humanos. Nas guerras reais, nem as "intervenções cirúrgicas" mais precisas conseguem evitar os "danos colaterais", isto é, as mortes, os sofrimentos, as destruições.
Nesse ponto, adentramo-nos em uma série de cálculos de êxito incerto: sem a intervenção, as perdas humanas e materiais seriam mais ou menos graves? Não existiam verdadeiramente outros modos para impedir o massacre da população civil? Uma vez começada, a guerra não corre o risco de proceder segundo a sua própria lógica, ao invés de obedecer ao pé da letra a resolução inicial? É o caso de encorajar a guerra civil no país ou a sua divisão? Não se corre o risco de comprometer o ímpeto democrático da população, tornando-a dependente dos ex-Estados colonizadores?
Não existem guerras limpas, nem guerras justas, mas só guerras inevitáveis, como foi a Segunda Guerra Mundial, combatida pelas forças aliadas. Não é esse, porém, o caso do atual conflito armado. Antes de entoar hinos à glória dessa iniciativa, verdadeiramente melhor do que todas as outras, talvez seria bom meditar sobre as lições que Goya tirou há 200 anos de uma outra guerra combatida em nome do Bem: a dos regimentos napoleônicos que levavam os direitos humanos aos espanhóis. Os massacres cometidos em nome da democracia não tornam a vida mais doce do que aqueles perpetrados por fidelidade a Deus ou a Alá, ao Líder ou ao Partido. O resultado é sempre o mesmo: os desastres da guerra.
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A atração fatal da guerra justa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU