09 Abril 2011
Se forem confrontadas entre si a primeira e a segunda parte do Jesus de Nazaré de Joseph Ratzinger – Bento XVI [Jesus de Nazaré, Ed. Planeta, 2007; Jesus de Nazaré: Da Entrada em Jerusalém até a Ressurreição, Principia Editora, 2011, de agora em diante chamados aqui como Jesus I e Jesus II], encontram-se entre elas, como era de se esperar, muitas linhas de continuidade, sendo que a mais evidente se revela desde a capa: trata-se da manutenção da dupla qualificação do autor. Na parte publicada em 2007, isso podia se justificar também com base no fato de que amplas seções do livro haviam sido declaradamente escritas antes da eleição do cardeal Ratzinger ao sólio pontifício. O argumento não vale, obviamente, para a segunda parte. Porém, o caminho estava marcado e não era oportuno abandoná-lo.
A análise é do filósofo italiano Piero Stefani, especialista em diálogo inter-religioso e professor do Istituto Superiore di Scienze Religiose, de Milão, em nota publicada em seu blog Il Pensiero della Settimana, 09-04-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Embora a afirmação não seja mais referida de modo explícito, a dupla assinatura confirma o caráter não magisterial que se apresenta como busca pessoal do "rosto do Senhor" (cfr. Jesus I, p.20). Mesmo que longas seções do texto falem uma linguagem largamente homilética, o entendimento da obra não é, porém, só espiritual.
Essas páginas, de fato, alimentam a ambição de se apresentar como exemplo. Trata-se não de exercitar um magistério doutrinal, mas de se propor como modelo. O objetivo de Jesus de Nazaré é fornecer aplicação concreta de uma determinada metodologia de pesquisa. Tarefa que, à sombra de um traço humilde, não é, na realidade, isenta de pretensões de alto nível, tais a justificar a subtração da parte de Bento XVI de tempo e energias dirigidas, de maneira direta, ao governo da Igreja universal.
A intenção de fundo da segunda parte coincide com a da primeira. Trata-se de apresentar a "figura e a mensagem de Jesus" (Jesus II, p.8). Em Ratzinger, a aproximação dos dois termos, "figura" e "mensagem", significa a impossibilidade de separar a compreensão da figura histórica de Jesus da compreensão da mensagem evangélica. Os dois extremos, com efeito, se tocam até coincidir.
A mensagem neotestamentária não é uma ideia e por isso é determinante ter acontecido na história real (Jesus II, p. 119). Por isso, visto o porte relativo da pesquisa histórica (baseada em uma análise científica de testemunhos e documentos), concluiu-se que, com o fim de estabelecer a autêntica verdade histórica de Jesus, é preciso basear-se na historicidade intrínseca à mensagem. Em outros termos, a "figura" é interna à "mensagem".
Em última instância, por isso, é a leitura de fé que determina a historicidade da figura de Jesus. De fato, se a historicidade de acontecimentos e palavras pudesse ser demonstrada "de modo verdadeiramente científico, a fé perderia o seu fundamento": por isso, podemos olhar para a verdade do "factum est [...] não na maneira da absoluta certeza histórica, mas reconhecer a sua seriedade lendo de modo certo a Escritura" (Jesus II, pp.120-121; cfr. Jesus I, p.19).
Na perspectiva proposta por Bento XVI, à pesquisa bíblica de recorte histórico é deixada a tarefa de investigar "detalhes" e "problemas particulares (cfr., por exemplo, Jesus II, pp.119... ); enquanto a competência sobre o quadro de conjunto deve ser deixada ao olhar teológico. Em todo o caso, é só este último que se coloca como o critério de juízo do que se apresenta como essencial também em perspectiva histórica.
Essa referência permitiria, portanto, estabelecer, em virtude da coerência do conjunto, que, por exemplo, uma determinada palavra remonta, sem dúvida, ao próprio Jesus (cfr., por exemplo, Jesus II, p.31). Isto é, a afirmação da historicidade se rege sobre a "mensagem" e não sobre uma pesquisa histórico-crítica com relação à "figura" (exposta ao bem conhecido trabalho intrínseco da busca da ispissima verba de Jesus).
A proposta pessoal de Jospeh Ratzinger – Bento XVI, vista nessa luz, se colore de repercussões epocais. Depois de dois séculos de trabalho exegético, a pesquisa histórico-crítica deu tudo o que de essencial tinha que dar. Por isso, se ela não quer se esgotar na estéril reiteração de hipóteses historicamente insignificantes, "deve dar um passo metodologicamente novo e reconhecer-se novamente como disciplina teológica, sem renunciar ao seu caráter histórico".
Sobre ela, portanto, incumbe a obrigação de reconhecer o porte limitado da "hermenêutica positivista" e de "reconhecer que uma hermenêutica da fé, desenvolvida de modo certo, é conforme ao texto e pode se conjugar com uma hermenêutica histórica consciente dos seus próprios limites para formar uma inteireza metodológica".
O exemplo dado por Ratzinger nessa sua obra é, segundo o seu próprio autor, "um bom passo nessa direção", em conformidade com os princípios hermenêuticos contidos no número 12 da constituição conciliar Dei Verbum (Jesus II, pp.6-7).
Objeções metodológicas
A tentativa de Ratzinger se expõe a duas objeções metodológicas de fundo. A primeira se refere ao caráter de desafio implícito às visões de fé atribuídas a uma pesquisa histórica que se move ao longo dos parâmetros próprios a ela. O caráter não absoluto do conhecimento histórico é um dado inegável assumido por todo estudioso honesto e prudente.
Essa sistematização faz com que a obra do historiador seja autônoma com relação a um suposto controle exercido sobre ela pela visão teológica. Nesse sentido é preciso prospectar a recíproca autonomia e não a integração entre as duas áreas. A pesquisa crítica deve ser, por definição, conduzida segundo os parâmetros próprios da historiografia. Ela, portanto, tem a obrigação epistemológica de se apresentar livre de toda pré-compreensão dogmática.
Faz parte, porém, da hermenêutica dos fiéis, eventualmente, fazer interagir entre si determinados resultados da pesquisa histórica com a sua própria compreensão de fé. O que parece ser impróprio é, ao invés, pôr limitações preventivas à pesquisa histórica em razão de específicas pré-compreensões de fé. Em definitivo, a pesquisa histórica parece ser uma ameaça para a hermenêutica de fé só na medida em que esta última se apoia em dados históricos que, assumidos como absolutos, são ao contrário opináveis com base em uma abordagem crítica.
A segunda objeção se refere ao fatídico recurso a um singular para definir a hermenêutica da fé. É dado por pressuposto que os escritos neotestamentários apresentam uma única e compacta visão teológico-histórica. Mais especificamente, essas páginas deveriam prospectar uma cristologia monolítica.
Na realidade, isso pode ocorrer só se, ignorando uma leitura hermeneuticamente fiel dos textos, se atribui a hegemonia a uma única linha. É o que faz Ratzinger – Bento XVI, que, nesta segunda parte do seu livro, propõe uma leitura univocamente sacrificial e expiatória da morte de Jesus. A modalidade com a qual é apresentada essa morte a coloca em uma relação de tal forma direta com os sacrifícios antigos que faz com que estes sejam, por força, destinados a desaparecer (cfr. Jesus II, 12, 32, 50-51,58, 124, 160, 256, 259).
Mas, perguntamo-nos, quais bases hermenêuticas reais permitem sustentar que a polifônica mensagem neotestamentária deva ser reconduzida a essa única linha teológica?
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O Jesus de Ratzinger: mensagem e figura - Instituto Humanitas Unisinos - IHU