08 Fevereiro 2011
A cidade mais livre, limpa, segura e feliz da África se chama Tahrir. Ninguém sabe quanto vai durar essa experiência insólita. Pode ser que este sopro de futuro representará, para gerações de árabes e norte-africanos, o que foi para a Europa a Comuna de Paris (1871).
A reportagem é de E. González, publicada pelo jornal El País e reproduzida pelo Portal Uol, 09-02-2011.
Aquele momento francês de resistência democrática e convivência popular foi dominado por movimentos radicais e revolucionários e terminou em um banho de sangue. Tahrir, por enquanto, não pretende inventar nada: exige a demissão de um ditador, a dissolução de um sistema repressivo, o fim do terror policial e a realização de eleições livres. Coisas apoiadas nos princípios mais básicos da justiça, segundo se entende no século XXI. Coisas que Tahrir acredita merecer como qualquer outra cidade.
Depois de duas semanas de existência, a cidade se auto-organizou com um alto nível de eficiência. Na entrada, à altura da ponte de Qasr, um controle militar pede a documentação. A partir daí se entra no território de Tahrir. Um novo controle civil pede novamente documentos e efetua uma revista geral para evitar a infiltração de pessoas armadas.
Como a aglomeração é contínua e as filas de entrada e saída não se interrompem, o filtro de segurança é poroso: os ativistas veteranos, os que passaram pelas delegacias e prisões do regime, identificam de vez em quando membros da polícia secreta camuflados entre a população. Preferem não denunciá-los publicamente. Poderiam provocar um linchamento e sujar um ambiente que se mantém sem manchas. Além disso, não há nada a esconder. Quem está na praça já sabe que está identificado e que arrisca muito se a contrarrevolução vencer. Tahrir tem centenas de milhares de habitantes. Embora o ambiente familiar possa enganar, esta é uma cidade de valentes.
Alguns metros atrás da "passagem fronteiriça", na parte posterior do Ministério do Turismo, junto à entrada traseira de uma mesquita em uma rua sem saída, se encontra o depósito de lixo. Seguindo até a praça propriamente dita, à direita, estende-se o acampamento noturno, a área onde dormem os que decidiram viver em Tahrir de forma permanente. São moradias improvisadas, feitas com plásticos e mantas. Pode-se distinguir um "bairro" muçulmano, o mais extenso, e um "bairro" de ambiente laico.
A área central da praça é onde se acumula a multidão, onde ocorrem continuamente manifestações, onde se realizam concertos e outras cerimônias: pode ser uma missa cristã, um funeral pelas vítimas da revolta, uma sessão de discursos. Só é fácil mover-se de noite e nas primeiras horas da manhã. A partir do meio-dia, quando chegam os cidadãos de passagem, os que equilibram trabalho e protesto, é difícil dar dois passos seguidos.
Ao fundo, conforme se entra, junto ao lado ocidental da praça, encontram-se os centros de coordenação: serviço médico, distribuição de alimentos, um rudimentar e muito espontâneo centro de informação. Não vale a pena perguntar quem manda, porque ninguém manda. Deve-se perguntar quem pode trocar um curativo, quem sabe a que hora se realizará amanhã tal coisa, onde se pode conseguir água: se a demanda é concreta, a solução é imediata.
No fundo sul foram instaladas as latrinas. Uma equipe de voluntários de limpeza mantém a higiene geral, muito superior à do resto do Cairo.
Há outro elemento que distingue Tahrir do resto do Egito, e isso só podem avaliar em sua justa medida os que conhecem bem o país: em Tahrir, uma mulher pode passear tranquilamente sem temor de toques lúbricos ou provocações. Por razões não facilmente compreensíveis, os egípcios de Tahrir mostram só o melhor de si, como se quisessem desenhar o que poderia ser um Egito ideal.
Movendo-se para o norte, em direção ao Museu Egípcio, sempre atravessando multidões que gritam contra Mubarak ou dialogam em grupos, e cruzando com dezenas de vendedores ambulantes (bandeiras e faixas com a bandeira egípcia, água, cigarros, refrescos, pastéis), chega-se a algo parecido com um ambulatório e a barricada que separa Tahrir da barricada externa do regime, permanentemente vigiada por dezenas de fiéis a Mubarak. Entre uma barricada e outra, tanques do exército. Mais além, um país de futuro incerto, o Egito.
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Depois de duas semanas de resistência, praça do Cairo se auto-organizou com sucesso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU