15 Janeiro 2011
O filósofo Enrique Dussel, professor da Universidade Nacional Autônoma do México e investigador da Universidade Autônoma Metropolitana, considera que para o momento de maturação em que se encontram os processos latino-americanos, com uma maioria de governos eleitos de centro-esquerda, é essencial a construção de uma "teoria a realidade atual". Teoria da libertação, inovadora, crítica, criativa, que elabore não sobre a destruição do Estado, como pensaram os marxistas clássicos, mas que dote de conteúdos de democracia participativa aos poderes políticos que hoje governam.
A reportagem é do jornal La Jornada, 03-01-2011. A tradução é de Anne Ledur.
Sustenta, na contracorrente de outros influentes pensadores, como o irlandês John Holloway, da Benemérita Universidade Autônoma de Puebla (Mudar o mundo sem tomar o poder) ou o italiano Antonio Negri, da teoria da resistência, que "o assunto, atualmente, não é criticar o Estado, e, sim, fazer um estado que seja útil às pessoas".
Dussel se define como filósofo da libertação, "que é – explica – uma tradição filosófica latino-americana, não é escola de nenhuma outra", um corpo de ideias e obras que um grupo de filósofos vêm pensando desde os anos 70. "Mesmo que haja intelectuais que achem isso pretensioso, com os decênios, se irá vendo que que, sim, tivemos razão. Ou não."
Dussel (Mendoza, Argentina, 1934) recebeu recentemente, em Caracas, o Prêmio Libertador do Pensamento Crítico, que governo da Venezuela concede às obras de criação de teoria para a realidade latino-americana atual. É o galardão mais importante da América Latina, tanto pelas obras e os pensadores reconhecidos como por seu montante econômico. Já se premiou um trabalho publicado em dois volumes, Política da Libertação. Um terceiro capítulo vem a caminho.
Poder obediencial
Já no começo da entrevista, o mestre aborda, entusiasta, o tema que ocupou nas últimas semanas, por direito próprio, as primeiras páginas dos jornais: as filtragens do Wikileaks. "É um fenômeno histórico mundial. As transnacionais que controlam o movimento do dinheiro – Visa e Mastercard – fecham as contas da organização Wikileaks em represália. E, no dia seguinte, mais de 40 mil cidadãos também as bloqueiam de boa vontade. Em menos de 24 horas organizaram uma ação que pode paralisá-las completamente! Essa é uma expressão de participação política nos meios da revolução tecnológica. São coisas muito novas que ainda não não se processaram na filosofia política. O vejo como uma mostra do que Evo Morales chamou de democracia obediencial".
É, insiste, todo um salto: "A revolução dos meios eletrônicos equivale ao momento em que apareceu a máquina a vapor e detonou a revolução industrial. Essa é uma revolução política, porque esse meio vai mudar o processo da produção de decisões políticas. Agora as pessoas podem entrar em contato e participar da tomada de decisões de uma maneira incrível e instantânea. Isso nunca havia passado."
No primeiro dia de sua Política de Libertação, história mundial e crítica, Dussel parte da origem da filosofia "que não é eurocêntrica nem helenocêntrica, mas que nasce na Mesopotâmia, Índia, China, Egito" e conclui com umas reflexões sobre "o sentido que Evo Morales deu ao poder, poder obediencial".
- Por que obediencial?
- Olhando para o que significam os governos de Evo Morales, Hugo Chávez, Rafael Correa ou Luiz Inácio Lula da Silva, é um absurdo lhes propôr a dissolução do Estado. Tem que ter uma visão completamente distinta da política, mesmo revolucionária.
Tempo de a esquerda governar
- Para onde deve se dirigir a crítica então?
- Tradicionalmente a esquerda fez crítica ao poder política como dominação. Eu digo: o poder político não é de dominação, reside no povo, consiste no consenso do povo. As instituições não são lugar do exercício do poder, ele lhes foi delegado. Quando as instituições creem que são a sede, esse é o fetichismo. Quando um presidente diz, como disse Felipe Calderón, tenho o monopólio do poder, se equivoca, se vê que não tem muita instrução. O Estado tem o uso da violência legítima, mas o único que tem o monopólio do poder é o povo. Toda instituição do Estado tem o exercício delegado e isso Evo Morales, seguindo na linha dos zapatistas de Chiapas, chamou de poder obediencial.
- Essa referência cruza algumas contradições: lembra a ruptura que há hoje no Equador entre o presidente Rafael Correa e o movimento indígena. Ou o caso do movimento zapatista, que quando o primeiro governante indígena chegou à chegou à presidência na Bolívia, eles não se viram refletidos nele.
- O que diferenciei é o poder, que reside no povo e nas instituições. Por isso, o Movimento Sem Terra, no Brasil, que é crítico diz: olhem, Lula não foi o ideal, mas o apoiamos. E se trair, vamos criticá-lo. Mas é o mal menor. Outros dizem: é o mal, e se opõem frontalmente. Mas há certa oposição da extrema esquerda que se toca com a extrema direita.
O que digo é que na atual conjuntura latino-americana, a esquerda tem a responsabilidade de exercer o poder a favor de um povo. As instituições podem tentar servir ao povo ou podem ser repressivas. Não é um feito a priori que as instituições são dominação sempre.
A democracia representativa e o poder obediencial devem ser fiscalizados. A representação é necessária, porque não se pode fazer tudo por democracia direta; os 112 milhões de mexicanos não podemos estar em assembleia permanente. Tem que haver representação. Mas a representação finalmente se corrompe se não é fiscalizada.
Agora, graças aos meios eletrônicos, temos pela primeira vez na história humana um instrumento de redes que permite a organização dessa participação fiscalizadora. Tem movimentos sociais, como o zapatismo, que têm grande sensibilidade sobre a participação. Porque aí é onde se expressa a voz do povo. Mas há que repensar a representação em um momento criativo. Não se pode confundir os tempos. Tem um tempo para criticar e um tempo para governar. E estamos no tempo de governo na América Latina.
Surgem novas teorias para o século XXI
- O problema é quando a corrupção chega cedo demais.
- Mas essa é a condição humana. Isso não vai desaparecer nunca. Aquele que exerce o poder tem muitas tentações de se aproveitar. Para isso, tem que criar organismos de participação para fiscalizar.
- Que teorias dão sustentação ao que Chávez chama de socialismo do século XXI?
- Esse é um momento essencial para a construção da teoria em toda América Latina. Há categorias que já não nos alcançam para uma realidade complexa, tem que renovar tudo. É necessária uma nova teoria, mas que não seja pura imitação do que já se disse há um século e meio.
Dussel cita algumas fontes importantes para a construção do pensamento latino-americano atual: Theotonio dos Santos, Immanuel Wallerstein, Franz Hinkelammert, Boaventura de Sousa Santos, Hugo Zemelman, o húngaro István Mészáros. E acrescenta o pensamento aymara e o zapatismo, que não forma parte das teorias clássicas.
"Temos muito o que recuperar desses povos, que antes a esquerda não soube considerar. Em 1994, o zapatismo foi uma comoção para muitos intelectuais. O assuntos é ter uma visão de povo que não seja populista, que suponha articular a classe e as etnias indígenas dentro do povo. E isso é uma explosão teórica, porque o que fazer com o imaginário dos povos, que são relatos religiosos míticos? A esquerda era tradicionalmente ateia e via como retrógrado esse imaginário. Ou dizer, dentro desse imaginário, como assinala Ernst Boch, que no Princípio esperança, toma os mitos, que chama como o sonho acordado da humanidade, e diz: há alguns que são de dominação e outros que são de libertação.
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Surge uma nova teoria para a realidade atual da América Latina, segundo Enrique Dussel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU