15 Janeiro 2011
No atlante da fé católica, o Inferno é fonte de problemas bem mais espinhosos do Purgatório. A ideia de um Deus terrível, juiz implacável que condena a uma prisão eterna os pecadores impenitentes, parece tão difícil de se conciliar com a ideia de um Deus misericordioso que repugna tanto teólogos católicos como Urs von Balthasar (e antes dele um Padre da Igreja como Orígenes), quanto "leigos" como Hans Jonas. À espera de que esse enigma também seja decifrado pela compreensão contemporânea dos mistérios da fé, Bento XVI inicia o processo de reformulação do "reino do meio", o Purgatório.
A análise é do vaticanista italiano Giancarlo Zizola, publicada no jornal La Repubblica, 13-01-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Ele já havia desmantelado o Limbo, a seu modo um outro paradigma da salvação jamais desesperável, especialmente para as crianças que morrem sem batismo e os grandes sábios da humanidade antes de Cristo. Com maior razão, o Purgatório funcionou em versão catequística como escatologia da mediação possível entre pecado e salvação final, uma chalupa de salvamento à qual se agarrar, até pelos vivos, para não naufragar no abismo irrevogável, por causa de tantos erros que tenham sido feitos.
Indubitavelmente, o Concílio de Trento, em 1547, querendo chegar a uma definição dogmática do Purgatório para se opor a Lutero, preferiu fulminar o anátema sobre quem negava que o arrependimento em vida podia bastar para cancelar toda dívida de "pena temporal" a ser descontada na vida futura "antes que lhe sejam abertas as portas do Reino dos Céus". Nessa declinação identitária, o Purgatório só podia se prestar, em mãos de um clero patronal, também a usos que lhe tornavam, ao contrário, uma máquina infernal de chantagens espirituais, além dos abusos do sistema tarifário das Indulgências.
Porém, a prática pastoral recupera em geral a sua doutrina em termos de misericórdia, precisamente como espaço penitencial da última chance no além, para economizar aos pecadores a imediata e inapelável condenação do Juízo Final às chamas eternas. Qualquer um, nessa visão, poderia se candidatar a esperar no sucesso de um pedido de graça. A ninguém deve ser negada a possibilidade de esperar ser ao menos adiado por mais um tempo.
Desta vez, Ratzinger não ousa mandar também o Purgatório para o lixo. Ele o reformula, o desmaterializa. Poucos quanto ele são capazes de perceber a delicadeza dessa sua operação, especialmente se investe algumas das categorias fundamentais da escatologia cristã, mesmo que controversas como o Purgatório, negados por hussitas, albigenses e valdenses na Idade Média, depois pelo protestantismo. O risco possível seria de tornar frágeis, sob as opções do integralismo escatológico, aquelas fontes últimas das esperanças históricas em que pessoas de fé e de menos fé foram beber as buscas de redenção em todos os tempos. Sem contar o enfraquecimento possível do sentido da comunhão entre os vivos e os mortos, com os primeiros unidos aos segundos por uma solidariedade tão íntima a poder ajudar-lhes "com orações e sufrágios" a descontar a pena restante, como defendia o Concílio de Florença em 1444.
"A religiosidade deve se regenerar e encontrar assim novas formas expressivas e de compreensão", admitiu o Papa Ratzinger no recente livro-entrevista. A pergunta é se representações tradicionais, "fórmulas grandes e verdadeiras e que porém não encontram lugar na nossa `forma mentis`", poderão ser reconcebidas e introjetadas pelo complexo corpo católico.
Para dar início a essa operação, o Papa se serve de um Tratado de Catarina de Gênova, uma mística do século XV. Ele endossa a transição de uma visão espacial, penal e material do fogo purgatorial para o "fogo interior" da visão imaterial alcançada pela santa. O valor dessa intervenção está na tentativa de transferir, depois de mais de cinco séculos, o resultado teológico de uma das grandes mas minoritárias experiências místicas da história em uma abordagem universal do povo dos cristãos. Com recaídas possíveis também no diálogo com os seguidores de Lutero.
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O Purgatório sob uma "nova forma expressiva" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU