04 Janeiro 2011
O mal exemplo decisionista de Cuba, que apresenta à população decisões já adotadas sem discussão alguma, ou o verticalismo venezuelano são particularmente prejudiciais na Bolívia, que tem a maior politização do continente e, não por casualidade, as expressões mais avançadas da cultura política insurgente da América Latina.
A análise é de Guillermo Almeyra, professor de Relações Sociais da Universidade Autônoma do México, em artigo para o jornal La Jornada, 04-01-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O preço da gasolina, do diesel e do gás para os veículos é, na Bolívia, quase um terço menor do que nos países vizinhos. Sem dúvida, já que sempre existiu o contrabando formiga na Bolívia, o combustível boliviano passava ilegalmente para o Chile, Peru e Brasil, às custas das finanças estatais.
O governo de La Paz decidiu, então, acabar com esse contrabando, pondo os preços dos combustíveis no nível dos países vizinhos. "O preço será o melhor aduaneiro", declarou o vice-presidente Álvaro García Linera, em uma brevíssima coletiva de imprensa na qual anunciou aumentos que vão de 73% a 83%, nada menos do que nas vésperas do final do ano e quando Evo Morales estava na Venezuela em missão solidária com os afetados pelas inundações.
A motivação dessa medida econômica é justa, já que o contrabando leva a bolsos privados fundos que poderiam servir ao Estado para o desenvolvimento ou o combate à pobreza. Mas não basta ter razão: é necessário também levar em conta a necessidade política de isolar aqueles que, até agora, se beneficiavam com o contrabando e de compensar os que irão pagar pelo aumento sob a forma de novas tarifas de transporte, de aumentos nos fretes, que repercutirão inevitavelmente sobre os preços dos produtos de primeira necessidade ou sobre os insumos para a produção de agricultores e artesãos.
Pôr os preços no nível dos países vizinhos sem colocar previamente os salários na mesma condição equivale, em qualquer país, a diminuir a renda e a provocar um forte protesto social.
Pois é o que aconteceu. De imediato, o transporte público se paralisou, e diversos sindicatos cujas direções criticam o governo pela esquerda ou pela ultraesquerda apoiaram a greve dos transportadores e lançaram uma campanha pelo aumento de salário. A lentidão com a qual foi preparada e anunciada a drástica medida de aumentos nos combustíveis, sem uma campanha prévia de explicação sobre a sua necessidade e sem acompanhá-la com medidas compensatórias, agravou a relação do governo com vastos setores urbanos ou semiurbanos, que já havia aparecido nas recentes eleições nas quais o partido governamental, o MAS, apesar do seu triunfo, quase perdeu em El Alto e foi derrotado em La Paz e em seções como Achacachi.
Pois bem, essa burguesia pequena, indígena ou mestiça, e a classe média pobre são, precisamente, o sujeito político com o qual o vice-presidente vê a constituição de um bloco social com eixo nos agricultores indígenas para construir um tipo de capitalismo popular.
Evo Morales voltou imediatamente para a Bolívia. Deu subsídios para os produtores de trigo e outros cereais para compensar o aumento dos insumos e dos fretes, concedeu um aumento geral de salários de 20%, declarou que se ele fosse sindicalista e não presidente teria reagido como os transportadores e a Central Operária Boliviana fizeram (desautorizando assim as acusações contra os grevistas de terem motivações políticas reacionárias).
Mas o dano já está feito. O autoritarismo, o decisionismo verticalista e burocrático que se refletiram na forma com a qual se tentou impôr esse aumento dos combustíveis deram um duro golpe contra o prestígio do governo nas cidades e poderiam dar um novo alento a uma oposição que vivia em crise aberta.
É certo que os indígenas e os agricultores não têm carro, mas pagam o transporte do que vendem e consomem. E principalmente esperam ser consultados, ouvidos, levados em conta.
A inoportunidade da medida – com Evo dando ajuda à Venezuela enquanto se diminuía a renda dos bolivianos –, a sua brutalidade, a despreocupação por como as pessoas comuns a veriam são indícios preocupantes porque demonstram que os dirigentes mais importantes do governo não são inteiramente capazes de ler a crítica implícita nos resultados das eleições passadas ou as explícitas de muitos que, apoiando fortemente o processo de mudança, buscam corrigir erros nele ou previnem sobre o que consideram que poderia ser perigoso.
O mal exemplo decisionista de Cuba, que apresenta à população decisões já adotadas sem discussão alguma, ou o verticalismo venezuelano são particularmente prejudiciais na Bolívia, que tem uma sociedade muito mais plural, regionalismos, tradições muito vivas de rejeição popular das medidas estatais, a maior politização do continente e, não por casualidade, as expressões mais avançadas da cultura política insurgente da América Latina, com as teses de Pulacayo que cimentaram o pacto mineiro-estudantil; com as contribuições de René Zavaleta Mercado sobre as experiências bolivianas de poder duplo e com as atuais do grupo Comuna, do qual faz parte o próprio vice-presidente García Linera.
O governo não é o Estado, pois este está construído na Bolívia sobre a base dos movimentos sociais e da participação indígena e agrícola organizada. O prestígio de Evo Morales não é transferível a outros, nem permite fazer qualquer coisa, em primeiro lugar, porque foi conquistado em anos muito decisivos, mas recentes, em disputa com outros líderes da Confederação Campesina e, no campo indígena, com o regionalismo aymara excludente de Felipe Quispe, e deve ser reconquistado dia a dia, dadas as diferenças que existem no setor popular, em que o governo enfrenta agora a oposição de setores de esquerda que antes eram seus aliados, como o Movimento Sem Medo, que controla a prefeitura de La Paz.
A visão tecnocrática do Ministério da Fazenda, preocupado para fechar as contas sem se fixar em todo o resto, e a visão industrialista-desenvolvimentista que reforça o papel dos técnicos e do decisionismo governamental estão por trás desse tropeço político. Evo poderá superá-lo, mas terá que levar em conta a advertência de suas bases de apoio.
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Bolívia: razões, intenções e métodos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU