21 Março 2022
"A era do ouro negro acabou, a era do ouro azul começa", escreve o padre comboniano Alex Zanotelli, que foi missionário em Nairóbi e hoje vive no bairro Sanità, em Nápoles, um dos símbolos da degradação social da Itália, em artigo que foi publicado por Il Manifesto, 20-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Estou preocupado e indignado com as políticas do governo Draghi sobre um bem tão fundamental como a água. O Papa Francisco fala da água na Laudato Si' como um "direito à vida". O grande movimento pela gestão pública da água conseguiu resultados importantes, o mais notável dos quais foi, sem dúvida, a vitória do referendo de 2011: 26 milhões de italianos votaram que a água deve sair do mercado e que não se pode lucrar com ela. Acho incrível que, nestes onze anos desde o referendo, nenhum dos sete governos sucessivos tenha respeitado a vontade do povo italiano. Se isso é democracia, pobre democracia!
Além disso houve a traição dos 5 Estrelas que tinham, como primeira estrela, a republicanização da água. Para mim é cada vez mais evidente que nossos governos são prisioneiros dos poderes econômico-financeiros. Esses poderes fortes veem no ouro azul uma imensa fonte de ganho, especialmente agora que, com o superaquecimento, a água potável se tornará cada vez mais escassa. Hoje estamos diante de um governo neoliberal de Draghi que está mais uma vez empurrando o país para a privatização da água e mais além. Basta ler o Pnrr, o projeto de lei da concorrência, bem como a “boa recepção” dada à reunião do Fórum Mundial da Água (WWF) em 2024, para perceber isso.
No Pnrr, Draghi disponibiliza 4,3 bilhões de euros para o setor hídrico. Para falar a verdade, poucos para um setor tão fundamental. Seriam necessários dezenas de bilhões só para reparar a rede hídrica que perde por vazamentos 40%. Esta seria a Maior Obra a ser financiada, não a Ponte de Messina!
Também considero um absurdo que esses 4,3 bilhões irão engordar as prestadoras do centro-norte (Acea, A2A, Iren, Hera) que administram o ouro azul industrial e privadamente. No Pnrr, Draghi diz que o Sul é incapaz de gerir a água de forma industrial, pelo que o dinheiro alocado irá em grande parte para as prestadoras do Norte para gerir a água industrialmente a água no Sul.
No entanto, mesmo no Sul existem realidades que administram com excelência a água, como a ABC (Azienda Speciale) de Nápoles.
Ainda mais chocante é o projeto de lei da Concorrência que, com o artigo 6º, exige a privatização dos serviços públicos dos municípios, incluindo a água. Uma norma que o Tribunal Constitucional poderia declarar inconstitucional por contrariar o artigo 118º da Constituição. O Fórum Italiano de Movimentos pela Água pública lançou uma campanha para a remoção do art. 6º em todos os conselhos municipais e regionais. Até o momento, muitos municípios e dois conselhos regionais (Friuli e Marche) aderiram à campanha. É preciso uma mobilização dos comitês pela água pública para pressionar os Municípios e Regiões a aprovar tal moção.
Em 2024, a Itália, com a bênção do governo Draghi, sediará o Fórum Mundial da Água.
Este Fórum, embora patrocinado pela ONU, é totalmente controlado pelas multinacionais da água, principalmente Veolia e Suez. Há quatro cidades que se dispuseram a hospedá-lo: Florença, Roma, Matera e Assis. Seria paradoxal que Assis, a cidade de Francisco, o cantor da "irmã água", sediasse aquele Fórum.
Essa tendência de privatização da água está ocorrendo enquanto o planeta está se superaquecendo assustadoramente. E isso não só no Sul do mundo, mas também na Itália: as geleiras estão derretendo, chove e neva cada vez menos, então teremos cada vez menos água potável disponível. O World Resources Institute (Wri) afirma que a Itália em 2040 experimentará uma situação de "estresse hídrico": teremos 50% menos água disponível. A ONU já prevê até 2030 que a população mundial poderá usufruir apenas de 60% da água de que terá necessidade. Mas será a África que mais sofrerá com a escassez de água potável, que levará a mortes, conflitos climáticos e migrações.
A era do ouro negro acabou, a era do ouro azul começa.
É por isso que os olhos gananciosos das finanças se concentraram na água, que já é cotada na bolsa de Chicago. É uma blasfêmia! É por isso que nossa luta por esse bem tão precioso (ar e água são dois direitos humanos fundamentais!) deve continuar. A Itália foi o primeiro país da Europa que convocou um referendo sobre a água e o venceu. Se a má política italiana, depois de 11 anos, não conseguiu traduzi-la em lei, não podemos desistir. O Dia Mundial da Água, 22 de março, é a ocasião certa para renovar nosso empenho. A vida de bilhões de pessoas está em jogo.
"O acesso à água potável segura - afirma o Papa Francisco na Laudato Si' - é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas, e por isso é condição para o exercício dos outros direitos humanos".
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O conflito mundial pela água. Artigo de Alex Zanotelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU