09 Agosto 2021
Qualquer um que já tenha visto o clássico filme sobre a máfia “Os Bons Companheiros”, conhece o personagem central, interpretado brilhantemente por Ray Liotta, que vive a vida ao máximo, até que tudo desmorona, e ele é pego pela polícia. Então, ele faz o que qualquer bandido que se preze faria – ele vira a casaca, se torna a principal testemunha da acusação e, em seguida, leva a vida como testemunha protegida, e não atrás das grades.
O comentário é de John L. Allen Jr., publicado em Crux, 08-08-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Mais cedo ou mais tarde, um roteiro assim será escrito sobre o golpe imobiliário de 400 milhões de dólares [mais de 2 bilhões de reais] em Londres que está no cerne do importante julgamento no Vaticano, estrelando um cardeal em exercício e um elenco de personagens duvidosos diretamente de um elenco central de Hollywood (talvez eles poderiam se chamar “Os Santos Companheiros”?).
Quando isso for feito, o Henry Hill da história terá que ser o monsenhor italiano Alberto Perlasca, o conspirador que virou informante e que não enfrenta nenhuma acusação, mas mesmo assim está no cerne da história.
A confusão atual está centrada na venda de um antigo depósito da Harrod’s no elegante bairro de Chelsea, em Londres, projetado para ser convertido em apartamentos de luxo para a Secretaria de Estado do Vaticano pelo financista italiano Raffaele Mincione, um dos ex-gerentes de investimentos da Secretaria de Estado.
O primeiro homem a ser preso, ainda em junho de 2020, foi outro financista leigo italiano, Gianluigi Torzi, que havia sido contratado pela Secretaria de Estado para intermediar a fase final da venda do edifício, apesar de suas ligações comerciais com Mincione.
Nessa história, Perlasca é basicamente o Henry Hill de “Os Bons Companheiros”, com o único porém de que ele não esperou ser pego para se tornar uma prova do Estado. Durante a audiência de abertura do julgamento no dia 27 de julho, os promotores enfatizaram que Perlasca não se tornou um informante sob coação, porque ele se voluntariou antes de ser formalmente interrogado como suspeito. É uma distinção sem diferença, no entanto, porque Perlasca obviamente viu os indícios e saiu na frente.
É assim que um livro recente de dois jornalistas investigativos italianos descreveu Perlasca, de 59 anos, que durante 10 anos atuou como o homem do dinheiro dentro da Secretaria de Estado, o dicastério administrativo mais poderoso do Vaticano.
Perlasca, segundo os jornalistas Mauro Gerevini e Fabrizio Massaro, “não tinha nenhuma competência específica, sempre na fronteira entre os interesses da alma e os da carteira, hábil para massagear um balancete com a mesma facilidade com que manuseia um rosário”.
Desde o início da investigação sobre Londres, ficou claro que Perlasca, que esteve envolvido no negócio em todas as fases, tinha de ser um alvo-chave da acusação. Isso pareceu ficar confirmado em agosto de 2019, quando o Papa Francisco destituiu Perlasca do seu cargo na Secretaria de Estado e o transferiu para um cargo inventado na Signatura Apostólica, longe dos poderes financeiros.
Perlasca foi entrevistado pela primeira vez por promotores vaticanos em abril de 2020 e deu apenas respostas anódinas, o que se poderia esperar de um soldado leal. Em agosto, no entanto, ele claramente repensou a sua situação, porque voltou ao encontro dos promotores se voluntariando para ser entrevistado novamente, e foi aí que ele começou a fornecer informações muito mais detalhadas.
Desde então, ele partiu para uma espécie de ofensiva de relações públicas.
Em junho, Perlasca deu uma entrevista na qual parecia atribuir a culpa pelo negócio de Londres a duas outras figuras da Secretaria de Estado: Fabrizio Tirabassi, um leigo que era um auxiliar próximo de Becciu, e Enrico Crasso, um consultor financeiro de longa data da Secretaria de Estado.
Depois, em julho, a verdadeira bomba caiu quando o depoimento de Perlasca aos promotores vaticanos veio a público. Nele, ele não apenas atribuía a culpa diretamente a Becciu, mas descrevia a si mesmo quase como uma vítima de abuso do prelado de 73 anos natural da Sardenha.
“É a técnica usada por predadores para se insinuar sub-repticiamente, por meio das emoções, na alma das suas vítimas”, disse ele.
Becciu, que defendeu vigorosamente a sua inocência, anunciou prontamente um processo contra ele por difamação.
Então, na sexta-feira passada, veio outra reviravolta na história desse clássico caso romano: uma reportagem sensacionalista do jornal italiano La Repubblica afirmando que estava divulgando o conteúdo de um dossiê secreto supostamente entregue pelo arcebispo venezuelano Edgar Peña Parra – sucessor de Becciu como chefe de gabinete do papa e seu instrumento de reforma escolhido a dedo na Secretaria de Estado – para os promotores do caso de Londres.
No estilo típico do jornalismo italiano, o La Repubblica não disse onde conseguiu o dossiê ou como o autenticou, e, até agora, os porta-vozes vaticanos não responderam aos pedidos de confirmação.
No dossiê, Peña Parra supostamente descreve uma estratégia cuidadosa dentro da Secretaria de Estado para pressionar superiores, como ele mesmo, para tomarem decisões precipitadas que atendam aos interesses de uma conspiração da velha guarda e de seus aliados nas finanças italianas. Ele também supostamente descreve Perlasca como o eixo central dessa estratégia.
“Em reuniões diárias com o Mons. Perlasca”, Peña Parra teria escrito, “ele fornecia apenas informações parciais ou incompletas em resposta aos meus pedidos de explicação, que geralmente se limitavam a esforços para justificar o que já estava em andamento.”
Assim, um grande dilema para os juízes do julgamento se resume a este: o que fazer com o Mons. Alberto Perlasca?
Ele é, como Gerevini e Massaro às vezes parecem sugerir, um ingênuo facilmente manipulado por atores mais espertos do drama? Ele é, como o próprio Perlasca quer que acreditemos, uma vítima de conselheiros corruptos e de um chefe predatório? Ou ele foi, como afirma o suposto dossiê de Peña Parra, um conspirador-chave em um padrão de encobrimento, demora e má orientação – sugerindo, talvez, que ele está apenas cooperando agora para salvar a sua própria pele?
A avaliação da credibilidade do testemunho de Perlasca depende de qual dessas versões dele, ou alguma outra, os juízes considerarão mais confiável. O drama do julgamento – com a fina ironia dos italianos, que o chamam de “Juízo Final” do Papa Francisco – pode, portanto, resumir-se à espera para que o verdadeiro Alberto Perlasca se apresente.
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Em julgamento no Vaticano, qual será o verdadeiro papel do Mons. Alberto Perlasca? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU