Em 15 de novembro de 1889, um grupo de militares liderados pelo marechal Manuel Deodoro da Fonseca destituiu o imperador Pedro II e instalou um governo provisório republicano. Embora a historiografia tradicional ainda dê conta de que Deodoro da Fonseca foi o líder desse movimento, sabe-se que, de fato, a República é proclamada na Câmara-Geral do Rio de Janeiro, então capital do Brasil, e que esse teria sido apenas o ponto alto de um longo movimento republicano que tensionava o Império. Inclusive, são muitas as correntes que defendem que o processo republicano brasileiro inicia em 1817, quando a Revolução Pernambucana explode como uma revolta contra os exageros para manter a Família Real vinda de Portugal, em 1808. Mas, o certo é que hoje o Brasil celebra 130 anos da instalação de sua República. Para alguns historiadores, essa não é uma festa plena. “A grande questão é que nós vivemos numa grande república que ainda não pratica valores republicanos”, observa a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Lilia observa que a República no Brasil de hoje se revela como um processo ainda inconcluso. “Basta ver como continuamos imersos nessas questões da corrupção, que é um dos grandes inimigos da República. Também as práticas de patrimonialismo, que são muito frequentes”, exemplifica. “Enquanto tivermos esses dois grandes inimigos da República, a corrupção e o patrimonialismo, não teremos de fato uma República”, acrescenta.
Para Lilia, os valores republicanos vividos a pleno devem estar no lastro de princípios de igualdade. No entanto, nem mesmo quando acaba com a escravidão o Brasil consegue tratar sua gente com equidade, pois negros eram libertados, mas não inseridos na sociedade. Aliás, uma lógica ainda presente atualmente. “A igualdade nunca foi um valor, uma qualidade extensiva para todo nosso país. Ou seja, a igualdade vale para algumas populações e não tanto para outras”, avalia. Por isso a professora considera importante ter a visão crítica de que os ideais republicanos brasileiros não foram plenificados nem mesmo nas matrizes que os inspiram, como a francesa e inglesa, e é preciso olhar para outras fontes, como a Revolução Haitiana. “A Revolução Haitiana foi uma revolução republicana, mas traduzida na linguagem do vudu, uma linguagem mais africana e que radicalizou a noção de igualdade”, explica. E indica: “uma República deve contemplar diferentes realidades, mas deve ser justa, celerada, igualitária para todo um país”.
Por fim, Lilia Schwarcz também analisa a conjuntura política atual, num contexto de um governo que, para ela, reforça as amarras que impede a efetivação de um espírito republicano. “Esse novo governo prometeu uma nova política e está praticando uma velha política”, aponta. “Estamos diante de um governo que não respeita as minorias sociais e de um governo que pratica a censura quando as instituições sobre a sua égide não atuam da maneira como ele imagina que seria correta. Esse é um governo que tem estimulado também muito ódio, tem trabalhado na base da polarização política e a polarização é sempre um problema porque ela não alimenta o diálogo”.
Lilia Schwarcz (Foto: IEA|USP)
Lilia Moritz Schwarcz é historiadora e antropóloga, doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo e, atualmente, professora titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da mesma universidade. Também é professora titular na Global Scholar em Princeton, nos Estados Unidos, colunista do Jornal Nexo e curadora adjunta do Museu de Arte de São Paulo – Masp. Entre os inúmeros livros publicados, destacamos “Retrato em branco e negro” (São Paulo: Cia das Letras, 1987), “Espetáculos das raças” (São Paulo: Cia das Letras, 1993), “As Barbas do Imperador” (São Paulo: Cia das Letras, 1998), “O sol do Brasil” (São Paulo: Cia das Letras, 2008), “Brasil: Uma biografia” (São Paulo: Cia das Letras, 2015) e “Lima Barreto - Triste visionário” (São Paulo: Cia das Letras, 2017). Em 2019, laçou “Sobre o autoritarismo brasileiro” (São Paulo: Cia das Letras, 2019) e, mais recentemente, juntamente com Heloisa Murgel Starling, organizou “Dicionário da República” (São Paulo: Cia das Letras, 2019) e “Três Vezes Brasil” (Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019).
IHU On-Line – Passados 130 anos da Proclamação da República no Brasil, ainda resta um sentimento de mal-estar, de um projeto que ainda não deu certo? Por quê?
Lilia Schwarcz – A grande questão é que nós vivemos numa grande República que ainda não pratica valores republicanos. Basta ver como continuamos imersos nessas questões da corrupção, que é um dos grandes inimigos da república. Também as práticas de patrimonialismo, que são muito frequentes. Basta ver as atitudes de nosso chefe do governo no sentido de favorecer os seus filhos e mesmo o fato de abandonar o partido pelo qual ele foi eleito para criar um novo partido. É como se adotasse a máxima de Luis XIV, que dizia ‘o Estado sou eu’. Agora, o presidente diz ‘o partido sou eu’.
No entanto, não é apenas o nosso chefe do Executivo que pratica o patrimonialismo. Basta vermos que a bancada dos parentes cresceu muito no Brasil ao invés de diminuir. Por outro lado, o Brasil continua sendo um país muito desigual. Segundo a Oxfam, somos o nono país mais desigual do mundo e a desigualdade e a falta de equidade são verdadeiros inimigos da república.
O outro grande inimigo, como já mencionei, é a corrupção. A corrupção retira verbas dos setores básicos do país, me refiro à educação, saúde, transporte, moradia, perspectiva de vida e de morte. Enquanto tivermos esses dois grandes inimigos da República, a corrupção e o patrimonialismo, não teremos de fato uma república.
IHU On-Line – O que os movimentos republicanos da História do Brasil, de Revolução Pernambucana a Canudos e Sabinada, legam ao país? Em que medida a nossa república de hoje atinge os ideais buscados por esses movimentos?
Lilia Schwarcz – No livro [Dicionário da República (São Paulo: Cia das Letras, 2019)], nós mostramos que foram vários os movimentos que clamaram por uma República mais propriamente dita, não uma República para as elites, mas uma república para toda a população. Um fato que sempre lembro é que logo após a abolição da escravidão circulou um dito entre as populações então libertas, as populações negras, que destacava a liberdade poderia ser negra, mas que a igualdade era branca. O que isso quer dizer? Que a igualdade nunca foi um valor, uma qualidade extensiva para todo nosso país. Ou seja, a igualdade vale para algumas populações e não tanto para outras.
Por isso é que no Dicionário, Heloisa [Murgel Starling] e eu incluímos algumas matrizes do republicanismo, algumas mais conhecidas como a matriz francesa, a inglesa, a norte-americana, mas incluímos também a matriz haitiana. A Revolução Haitiana foi uma revolução republicana, mas traduzida na linguagem do vudu, uma linguagem mais africana e que radicalizou a noção de igualdade. Esta revolução mostrou para o mundo, primeiro, que escravizados não eram escravizados para sempre e, ao contrário, poderiam lutar pela sua liberdade e gerir o seu Estado. E, segundo, que a noção de igualdade proposta pela Revolução Francesa não contemplava a todas as populações.
Ora, esse problema ainda temos no Brasil e é da minha opinião que não teremos uma república enquanto praticarmos um racismo estrutural e institucional como vimos praticando no Brasil. Enquanto não tivermos uma verdadeira igualdade não teremos um República no Brasil.
IHU On-Line – Se o Brasil não é um só, como, diante da atual conjuntura política e social, compreender e enxergar minimamente esses “Brasis”?
Lilia Schwarcz – O Brasil é um país de dimensões continentais e isso faz com que a realidade seja de fato multifacetada, como você destaca. Basta analisarmos como votaram os brasileiros em 2018. Houve uma divisão muito clara, muito acirrada entre a região nordeste e a região do sul do Brasil. A região nordeste votando basicamente no Partido dos Trabalhadores e as regiões sudeste e sul reagindo a esse partido, a suas práticas e votando maciçamente num candidato mais radicalmente à direita como Jair Bolsonaro.
Isso revela também como práticas políticas, econômicas, social e culturais foram implementadas de maneiras diferentes nas distintas regiões do Brasil, com favorecimento da região sudeste. Nós chamamos atenção, no livro, como desde a vinda da Família Real, se formos recuar, que a grande crítica de Pernambuco, que alimentou a Sedição em Pernambuco, era a de que as taxas todas eram consumidas na região sudeste e não iam para a região nordeste. Enfim, temos aqui uma divisão no Brasil e é muito difícil dizer como nós podemos acabar com ela. Acho que uma república deve contemplar diferentes realidades, mas deve ser justa, celerada, igualitária para todo um país.
IHU On-Line – Como contar a história contemporânea da República que temos vivido?
Lilia Schwarcz – Não preciso dizer como contar uma História Contemporânea porquê do presente todos nós temos direito e, como se diz, todos nós podemos falar. Mas, também, todos nós não conseguimos falar. Como sempre dizia o Conselheiro Ares, personagem de Machado de Assis, ‘as coisas só são previsíveis quando já aconteceram’. No entanto, se eu contar só do que aconteceu até agora e não tentar falar do futuro, podemos dizer que esse novo governo prometeu uma nova política e está praticando uma velha política.
Podemos dizer, também, que em 30 anos de uma democracia bastante estabelecida, com os votos sendo realizados nas urnas e as instituições bastante estáveis, estamos vivendo agora um outro momento. Sem dúvida as eleições de 2018 foram realizadas nas urnas, mas o próprio presidente agora quer – e fala isso – que novas eleições sejam feitas, usando cédula de papel e não o voto eletrônico, pondo em discussão, em desconfiança a própria eleição que o levou ao poder.
Também estamos diante de um governo que não respeita as minorias sociais e de um governo que pratica a censura quando as instituições sobre a sua égide não atuam da maneira como ele imagina que seria correta. Esse é um governo que tem estimulado também muito ódio, tem trabalhado na base da polarização política e a polarização é sempre um problema porque ela não alimenta o diálogo, o diálogo republicano, a confraternização republicana, a solidariedade republicana, mas alimenta a divisão.
Então, eu temo que, quando formos contar a história republicana desse momento, observaremos que tivemos uma espécie de backlash, uma volta atrás, um grande recuo de uma série de valores que considerávamos consolidados. Mas, democracia é assim mesmo. Os valores que nós conquistamos tem que serem sempre conquistados mais uma vez, novamente, e assim serão valores pelo quais, de fato, nós lutamos.