13 Fevereiro 2019
“Em um contexto de pesquisa cada vez mais global e competitivo, especialmente no campo das ciências da vida, serão cada vez mais frequentes os dilemas que, como sociedade, teremos que enfrentar.”
A opinião é do sociólogo italiano Massimiano Bucchi, professor da Universidade de Trento, em artigo publicado em Corriere della Sera, 12-02-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Continua gerando discussão o surpreendente experimento do cientista chinês He Jiankui, que levou ao nascimento, no fim do ano passado, de duas gêmeas a partir de embriões nos quais o pesquisador interveio com a técnica de edição genética CRISPR-Cas9. Há alguns dias, duas novas notícias da China chegaram quase simultaneamente.
A primeira é que há outra gravidez em andamento como resultado daqueles experimentos. A segunda é que o cientista foi demitido da Southern University of Science and Technology de Shenzhen, onde trabalhava, e que investigações estão sendo realizadas sobre ele, com possíveis implicações penais (de acordo com algumas fontes, ele já teria sido submetido à prisão domiciliar).
Ambos os anúncios, por diversos motivos, são perturbadores. E ambos evidenciam os limites no modo de enfrentar os desafios da ciência contemporânea, não só na China, mas também no mundo.
É evidente neste momento a estratégia de apresentar He como uma “maçã podre” que teria agido sem o conhecimento de todos: uma espécie de Dr. Frankenstein impiedoso e inescrupuloso, pronto para ultrapassar qualquer barreira moral em busca de “fama e riqueza”.
No entanto, não devemos esquecer que o cientista tinha recebido nos últimos anos copiosos financiamentos privados (43 milhões de dólares às start-ups criadas por ele e pelas quais ele repassava à sua universidade entre 10% e 30% dos proventos) e públicos.
A tese do isolamento total do cientista da comunidade científica internacional também não parece totalmente isenta de dúvidas. Duas universidades norte-americanas, Stanford (onde He conduzira as suas pesquisas após o doutorado) e Rice iniciaram investigações internas para averiguar contatos e colaborações com os experimentos realizados na China.
Um prêmio Nobel norte-americano, Craig Mello, até dezembro passado, era consultor da empresa de biotecnologia de He, a Direct Genomics. Os experimentos de He também devem ser lidos no contexto de um crescimento extremamente rápido dos investimentos e do objetivo declarado das cúpulas políticas chinesas de transformar o país em uma “superpotência científica e tecnológica” até 2049.
Essa corrida esmagadora em acirrada competição com os tradicionais poderes científicos já havia servido de pano de fundo para outras pesquisas controversas. Ainda em 2015, pesquisadores da Universidade Sun Yat-sen de Guangzhou haviam utilizado a técnica CRISPR em embriões não suscetíveis ao desenvolvimento para intervir no gene responsável pela anemia do Mediterrâneo.
Em 2018, em um âmbito completamente diferente, uma equipe da Academia Chinesa de Ciências em Xangai anunciou um experimento de clonagem de primatas. Agora, a reação punitiva das autoridades chinesas – visando tranquilizar a comunidade científica e a opinião pública internacional – apenas evidencia ainda mais os riscos e as ambiguidades. Que não decorrem apenas do comportamento dos indivíduos, mas também da pressão competitiva para obter resultados rapidamente em um contexto não democrático como o chinês.
“As ações de He são um produto da China moderna”, é a síntese drástica de Yangyang Cheng, cientista chinês da Cornell University. De fato, quem pode sopesar benefícios e riscos, senão a sociedade (com a contribuição dos especialistas)?
Como afirmou um editorial duro da revista científica Nature, o futuro da edição das linhas germinais “é uma pergunta para a sociedade, não para os cientistas”. Sim, mas qual sociedade? E em nome de quais expectativas, preocupações e valores? Com que bases sociais e morais foram financiados os experimentos como os de He Jiankui? E com que bases ele é demitido bruscamente agora e talvez incriminado, aliás, sem nunca especificar quais leis ele teria violado?
Em um contexto de pesquisa cada vez mais global e competitivo, especialmente no campo das ciências da vida, serão cada vez mais frequentes os dilemas que, como sociedade, teremos que enfrentar. Demitir ou até prender o cientista individual (depois de financiá-lo generosamente) não nos ajudará a dar respostas sensatas.
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Os dilemas éticos da ciência sobre os desafios do futuro. Artigo de Massimiano Bucchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU