07 Dezembro 2016
“Ao menos tanto quanto o Eclesiastes evoca o vazio, e ao menos tanto quanto Jó evoca a dor, o Cântico dos Cânticos evoca a dolorosa inatingibilidade do amor. ‘O homem não pode entender o Cântico se nunca amou’, escreveu Bernardo.”
A análise é da filóloga e bizantinista italiana Silvia Ronchey, professora da Universidade Roma Tre. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 06-12-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
De que falamos quando falamos do Cântico? Essa pergunta não pode ter resposta. “O Cântico é um enigma”, escrevia Agostinho (Sermo 46, 35). É um mistério no sentido técnico da palavra. O iniciado não falará porque não pode fazê-lo (“mysterion”, de “myein”, “manter os lábios fechados”). O profano falará, mas não saberá de que fala. “Porque quem sabe não fala, e quem fala não sabe”, de acordo com o ditado de Lao Tsé.
Mas, no fim do século I, quando se formou o cânone da Bíblia judaica, o sábio Rabi Akiva disse: “O mundo inteiro não vale o dia em que o Cântico dos Cânticos foi dado a Israel, porque todas as Escrituras são santas, mas o Cântico dos Cânticos é o Santo dos Santos”. Já naquela época não se sabia o que era o Cântico, nem se queria dizer: a sua santidade era diretamente proporcional ao seu mistério; ou, melhor, era precisamente a profundeza abissal dos seus enigmas que libertava aquele ápice de santidade.
“Os lábios do meu amado são lírios / com mirra que flui e se derrama. / Seu ventre é um bloco de marfim / cravejado com safiras. / Seus lábios são favo escorrendo, ó noiva minha, / Você tem leite e mel sob a língua, / e o perfume de suas roupas / é como a fragrância do Líbano. / Você é um jardim fechado, / uma fonte lacrada. / Entre o meu amado em seu jardim / e coma de seus frutos saborosos! / Já vim ao meu jardim, / minha irmã, noiva minha, / colhi minha mirra e meu bálsamo” [trad. Bíblia Pastoral].
Pequeno poema de idade pós-exílica, talvez um patchwork de cantos retirados do patrimônio da tradição assírio-babilônica e egípcia, além de hebraica, com ecos greco-helenísticos no estilo de Teócrito, o Cântico é, sem dúvida, um texto erótico, quase pornográfico.
Na tradução latina de Jerônimo: Dilectus meus misit manum suam per foramen / et ventrem meus intremuit ad tactum eius. “Meu amado enfia a mão no meu ventre / as minhas entranhas estremecem por ele. / Ponho-me de pé / para abrir ao meu amado: / minhas mãos gotejam mirra, / meus dedos são mirra escorrendo / na maçaneta da fechadura.”
Segundo a tradição rabínica, alguns trechos do Cântico eram cantados nas tabernas. O Rabi Akiva desdenhava: “Quem canta o Cântico nas tabernas ou o trata como uma canção profana não terá lugar no mundo futuro”.
Logo surgiu a exegese anagógica midráshica, ciosamente sagrada, do Cântico como celebração da aliança esponsal entre JH-WH e Israel, estendida, depois, na interpretação cristã que, por séculos e séculos, leu nele a figura do amor de Cristo pela Igreja, não sem deixar espaço a um amontoado de outros sistemas alegóricos menores, muitas vezes iniciáticos – astrológicos, cabalísticos, filosófico-sapienciais – na literatura medieval, renascentista e moderna.
Sobre as asas da metáfora da noiva-Igreja, os versículos do Cântico se disseminaram na fonosfera da liturgia, da música, da literatura, transmitindo-os como mantra cada vez menos descerrados ao sentido. Quanto mais a torção simbólica da teologia ocidental subtraía deles o significado natural – de Ambrósio a Gregório Magno, de Guilherme de Saint-Thierry a Bernardo de Claraval, de Francisco de Sales a Bossuet –, mais as sílabas e as imagens expandiam o seu mistério elementar.
Nigra sum sed formosa.
De Monteverdi a João da Cruz, de Maupassant a Moreau, dois mil anos de omissões adensaram conexões tão colossais no Cântico a ponto de torná-lo semelhante ao Aleph de Borges: um ponto do espaço literário que contém uma pluralidade infinita de outros pontos. Já o Talmude alertava, no entanto, a não subestimar a literalidade que todo texto bíblico jamais deve perder. Os literalistas ou naturalistas, com razão, sempre existiram: bizantinos como Teodoro de Mopsuestia ou judaicos como Ibn Ezra.
Um grande sábio protestante do século XVI, Sébastien Castellion, propôs eliminar o Cântico do cânone dos textos inspirados, em polêmica com Calvino; Herder o seguiu. O século XX também viu exegetas eclesiásticos cristãos, de Dietrich Bonhoeffer a Luis Alonso Schökel, serem tomados pela dúvida: e se por trás dos versículos do Cântico não houvesse nada?
É preciso que nos entendamos. O Cântico é nada. É um prisma transparente em que a luz se reflete, se multiplica e ilumina qualquer experiência real ou espiritual, intelectual ou doutrinal que dele se aproxime. Além disso, por trás do Cântico, há o nada. “Na verdade, o vazio do Cântico está lá para confirmar a sua sacralidade. O Cântico é um pedaço de vazio sacral. Eu digo que é vazio para não lhe negar nada”, escreveu Guido Ceronetti.
Ao menos tanto quanto o Eclesiastes evoca o vazio, e ao menos tanto quanto Jó evoca a dor, o Cântico evoca a dolorosa inatingibilidade do amor. “O homem não pode entender o Cântico se nunca amou”, escreveu Bernardo.
Anima mea liquefacta est. Quaesivi, et non inveni illum. Vocavi, et non respondit mihi. “Minha alma se esvai. / Procuro-o e não o encontro. / Chamo-o, e não me responde.”
Jung escreveu: “Repetidamente me encontrei diante do mistério do amor e nunca fui capaz de explicar o que é. Aqui se encontram o máximo e o mínimo, o mais remoto e o mais próximo, o mais alto e o mais baixo, e nunca se pode falar de um sem considerar o outro. Não há linguagem apta a esse paradoxo. O que quer que se possa dizer, nenhuma palavra jamais poderá expressar tudo”.
Nenhuma palavra pode expressar tudo, mas o Cântico, de forma ilusionista, o faz. Se a natureza do desejo é indizível, o Cântico a desdobra em enigmas.
“Grave-me como um selo em seu coração, / como uma tatuagem em seu braço; / pois o amor é forte como a morte / duro como o Hades é o desejo.” O amor é mais forte do que a morte: o que isso significa? Que o amor pode vencer a morte? Que o prazer é uma pequena morte? Que o eros é a morte do ego e nos faz sair das suas fronteiras levando à insanidade, como já assinalado por Lucrécio?
“Só conhecemos o eros na distância do fracasso. Antes do fracasso, não há conhecimento”, escreveu Christos Yannaras, máximo especialista contemporâneo do Cântico (algumas de suas páginas se encontram em Il più bel canto d’amore. Letture e riscritture del Cantico dei cantici, Qiqajon, Comunità di Bose, 231 páginas, que contém a melhor tradução italiana do Cântico, de Enzo Bianchi).
“Depois do fracasso, sabemos que o eros é o modo da vida, mas um modo inacessível à natureza humana. O modo da vida, o apalpamos na privação, no molde da ausência.”
A reflexão sobre o eros do teólogo ortodoxo Yannaras conclui, hoje, o discurso sobre o Cântico aberto por outro filósofo greco-oriental, Orígenes: no século III, quando há pouco tempo aquele ermo textual bifronte que exaltava um amor físico e carnal à obscenidade tinha entrado no livro sagrado de três religiões e, nestas, tinha começado a pôr, ou a transpor, o seu enigma.
Enfant prodige do platonismo de Alexandria, há pouco mais de 20 anos Orígenes havia se castrado. Ele tinha, como narra Eusébio, muito o que fazer com os livros, de dia e de noite, e essa era para ele já “uma paixão e uma ginástica”. Nada devia dissuadi-lo de comparar e comentar os textos da Bíblia. O seu foi o maior experimento de aplicação da exegese alegórica neoplatônica ao cristianismo.
No “Comentário ao Cântico”, obra da sua maturidade, publicado agora em tradução italiana junto com as magníficas “Homilias sobre o Cântico” de outro grande Padre grego, Gregório de Nissa (Origene, Gregorio di Nissa, Sul Cantico dei cantici, organizado por V. Limone e C. Moreschini, Bompiani, 1.565 páginas), ele recolheu a herança da pesquisa platônica sobre o ser e a sua contraposição entre alma e corpo, entre metáfora e letra, entre esoterismo e “anúncio”. Ele subtraiu do Cântico literalidade e fisicalidade para acender o seu erotismo metafórico de uma forma que ninguém jamais tinha ousado antes: utilizando-o em sentido psicológico.
Com o bisturi da filologia, ele neutralizou a carne dos esposos, para deixar todo o espaço ao seu espírito puro. Ele operou, em certo sentido, assim como tinha operado sobre o seu próprio corpo.
A autocastração de Orígenes, que a tradição antiga relata, foi real ou simbólica? De fato, em um dos mais fantasmagóricos trompe l’oeil da literatura universal, com Orígenes, o Cântico perdeu para sempre a sua original conotação realista para se tornar uma alegoria do eros místico, daquele amor sofredor que está em cada ato de busca ou tentativa de criação ou impulso de união.
A Sulamita que busca o esposo não é só Israel, segundo a interpretação judaica, e não é só a Igreja, segundo a versão cristã vulgata. É, em primeiro lugar, a alma, que, de acordo com a tradição platônica, busca sempre, e não encontra, a perfeição do Logos. Com o “Comentário ao Cântico” de Orígenes, o cristianismo oriental, desde o início, se colocou ao lado dos outros grandes saberes tradicionais ao expressar o quaesivi et non inveni, o “procuro e não encontro” que se aplica a todas as esferas da investigação, mas, acima de tudo, àquela sobre nós mesmos.
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O Cântico dos Cânticos: a verdade sobre o amor escondida no mais erótico dos livros. Artigo de Silvia Ronchey - Instituto Humanitas Unisinos - IHU