03 Novembro 2021
"Créditos verdes, sim, mas que pelo menos o desenvolvimento sobre cujo altar se sacrifica o ar puro seja distribuído de maneira mais uniforme e não com as desigualdades assassinas que continuam a distinguir a Índia. Sem nenhuma contradição", escreve Carlo Pizzati, em artigo publicado por La Repubblica, 02-11-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
"Energia é o fio de ouro que conecta crescimento econômico, igualdade social e sustentabilidade ambiental", disse em 2012 o ex-secretário-geral da ONU, o sul-coreano Ban Ki-moon. Mas é um fio de carvão que o primeiro-ministro indiano Narendra Modi quer tecer entre desenvolvimento industrial, compromissos sobre as emissões de gases de efeito estufa e sua liderança global, anunciando a doutrina da "justiça ambiental para as mudanças ambientais": ou seja, adiar para 2070 o objetivo do "zero líquido" e pedir ao Ocidente 1 trilhão de dólares em financiamentos climáticos para a segunda nação mais populosa do mundo, mas a mais poluída do mundo e com a capital mais geradora de doenças do planeta. A mensagem é aparentemente paradoxal: queremos contaminar mais e queremos mais ajudas pró-clima.
Modi sabe que fez um grande golpe de cena com seu anúncio. Como habilíssimo líder político, ele o fez incorporando as armas dos inimigos. Em primeiro lugar, copiando o primeiro primeiro-ministro indiano, Jawaharlal Nehru, antigo líder do Congress party que liderava os países não-alinhados durante a Guerra Fria. Da mesma forma, quer capitanear as nações do Sul global que exigem poluir em nome do desenvolvimento. Pode encontrar aliados na Indonésia, mas não na China, com a qual Delhi continua a ter conflitos sobre as fronteiras do Himalaia e sobre improváveis boicotes.
Modi também roubou o slogan de "justiça climática" dos jovens oponentes da Fridays for Future e Extinction Rebelion. Enquanto os GenZ deslocam o debate ambiental para questões éticas e políticas, englobando justiça social e ambiental, o primeiro-ministro muda a ênfase sobre quem deve arcar com os custos das mudanças climáticas e das ações para desacelerá-las, com uma "justiça distributiva". Da mesma forma que Donald Trump acusava a mídia de fake news, disseminando notícias falsas, Modi reivindica o direito de poluir em nome da justiça climática. Para entender o que parecem ser contradições, precisamos nos aprofundar na mentalidade indiana. Como afirma o guru mais renomado da Índia hoje, Sadhguru: "Nada é contraditório. Tudo é complementar a todo o restante".
Na preparação para a Cop26 em Glasgow, em Delhi se acertaram as contas com o passado. De 1751 a hoje, o mundo emitiu 1,5 trilhão de toneladas de gases de efeito estufa. Destes, os Estados Unidos emitiram 400 bilhões, ou seja, mais de 25% do total e oito vezes mais que a Índia. E os estadunidenses continuam a ser muito mais poluidores, per capita, do que os indianos. Por que fixar uma única data de emissão zero se os EUA e a Europa começaram mais cedo a causar o desastre?
“Emissões zero é uma forma de os países desenvolvidos fugirem de suas responsabilidades e transferir o ônus para nações como a Índia”, dizem os homens próximos de Modi, “queremos um nível líquido negativo para o Ocidente, em vez de zero líquido”. Delhi pede "uma visão holística do problema" atacando em primeiro lugar o crédito de carbono. Por que pagar para poluir? Melhor crédito verde: pague-nos para investir em energias renováveis. Se não o fizerem, a coalizão global do Sul exigirá medidas mais duras contra o Ocidente poluidor de longo prazo. “O mundo ocidental deve combater contra as suas compulsões”, dizem as fontes que forjaram a doutrina da “justiça climática”. Aqui está, então, o que Sri Aurobindo, fundador de Auroville, definia como "a verdade escondida por trás das aparentes contradições".
Vamos agora estudar o nó do desenvolvimento industrial que se aperta ao redor do pescoço de Modi. Metade dos 1,4 bilhão de indianos tem menos de 25 anos. A população em idade ativa de 15 a 59 anos aumenta em 1 milhão de pessoas na Índia a cada mês. O desemprego juvenil é de 23%. O desenvolvimento é uma necessidade, não um luxo. Aos indianos, portanto, importa tanto assim, diante desses números, que o país seja o terceiro emissor global de gases de efeito estufa? Ou que seja a quarta nação mais afetada pelas mudanças climáticas? Para quem reelegeu Modi com um semiplebiscito em 2019, a prioridade é o trabalho. Como foi dito durante a pandemia sobre o Covid, é melhor morrer de poluição do que de fome.
Existe uma oposição na Índia contra essa mudança em direção a mais 50 anos de gases de efeito estufa? Existia. Mas foi intimidada. Anos de demissão de editores de jornais, morte de jornalistas icônicos como Gauri Lankesh e de repressão de intelectuais e acadêmicos renderam seus frutos. A Greta Thunberg indiana, Disha Ravi, foi presa sob acusações infundadas de sedição. Em seguida, libertada, continua com seu engajamento, mas aleijada.
A luta pelo meio ambiente é travada em áreas rurais como o estado de Tamil Nadu, no sul, primeiro por usinas a carvão, mas também por energias renováveis. Aqui estão recomeçando as obras de inauguração de uma das novas usinas a carvão, com correias transportadoras para carregar o combustível dos portos até as usinas que devastam o ecossistema.
Agricultores e pescadores dessas áreas, como no caso de Uppur, no golfo de Bengala, se opõem nos tribunais. Mas a mensagem de Glasgow anuncia que é do interesse nacional eliminar manguezais e florestas de palmeiras para gerar eletricidade para a galopante urbanização e industrialização, gerando gases de efeito estufa.
O que o Ocidente pode fazer? Reduzir seus confortos poluentes, claro. Incentivar as energias renováveis no Sul global para combater o carvão? Também. Mas é igualmente necessário vincular o trilhão de dólares (ou a cifra que efetivamente será acordada) a um futuro apoio às vítimas imediatas desse nefasto pacto poluidor: as mulheres, as crianças, os idosos e as minorias que na Índia são os primeiros a morrer nas ondas de calor, de inundações, secas e erosões costeiras que, a cada estação, já mostram o drama das alterações climáticas rumo a uma rápida distopia. Créditos verdes, sim, mas que pelo menos o desenvolvimento sobre cujo altar se sacrifica o ar puro seja distribuído de maneira mais uniforme e não com as desigualdades assassinas que continuam a distinguir a Índia. Sem nenhuma contradição.
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Por que a Índia de Modi adiou o objetivo de emissões zero para 2070 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU