05 Outubro 2021
"O aparente abandono do Filho em sua cruz ensina que a fé não é religião, mas uma experiência do espírito que se purifica de tudo. A religião explica, mas na cruz não há mais a linguagem, apenas o silêncio cortante", escreve Ademir Guedes Azevedo, padre, missionário passionista e mestre em teologia fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma.
Em tempos de cristandade era evidente a atmosfera religiosa que preenchia as fases da vida. Nascer, crescer e morrer tudo vinha acompanhado por certezas religiosas. A fumaça do incenso, com os cantos bem entoados, garantia a proteção divina. Atenção plena era dada aos preceitos e as normas sagradas. E ai de quem os faltasse! Elevam-se a Deus as nossas preces e a vida encontra seu sentido nessa certeza da assistência divina. Os sofrimentos são aplacados com a força de Deus Todo-poderoso. Nele é certo que o sofrimento de agora terá um fim, pois uma vida melhor nos espera. E assim era a cristandade, com sua apologia e certezas inquestionáveis.
Mas eis que chega a modernidade e o galho que sustentava as certezas religiosas começa a estalar. A linguagem científica explica a vida. A ética, ditada agora não mais por um ser transcendente, mas fruto da razão humana, torna o homem autônomo e, com isso, Deus que antes era a razão de tudo, agora no novo contexto de descobertas e progresso, não é mais importante como antes. A medicina avança nas curas de doenças. Como o bem-estar deu asas à humanidade, aquele discurso religioso sobre o sofrimento que expia os pecados, não convence mais. O projeto moderno conduz o homem ao individualismo e o motiva a estar em estado permanente de buscas por realizações. E Deus? Ele já não tem mais as suas evidências como antes. Aquilo que Ele prometia, agora o próprio homem pode alcançar. Eis, pois, o ponto que chegamos: nós tiramos Deus do horizonte. Ou para usarmos uma palavra de Nietzsche: “nós mesmos o matamos”!
No entanto, nessa noite densa de incertezas, há uma pergunta iluminadora: é possível ainda a fé na “ausência” de Deus? Como conviver com a morte de Deus, decretada pela modernidade? Justo nesse contexto arreligioso e de incredulidade a experiência de Deus pode ser refeita de maneira nova e profunda.
Deus surpreende quando provamos mais a sua ausência que a sua presença. Abraão entrou na via da fé não quando Deus deu Isaque, mas quando o pediu em sacrifício. Deus se ausenta do horizonte dele, restou-lhe a noite escura e o silêncio. Mas essa ausência o põe a caminho. O caminho rumo ao monte Moriá é o tempo de vivermos as nossas desolações com total abandono em Deus. Para nossas frustrações parece existir só uma saída: insistir em continuar, mesmo com o medo e as incertezas.
O modo de Deus entrar no mundo não é por uma via positiva, mas por meio do Nada, de um esvaziamento e aniquilamento total. Para entrar, Ele teve que ausentar-se de sua glória. Sua Kénosis é o seu próprio luto porque deixa de ser Deus todo-poderoso para ser o Nada. Ele chora por si mesmo. Ele sente a dor de aniquilar-se. Essa sua escolha de despir-se de poder, é como se fosse a sua última tentativa de mostrar a sua criação que a ama.
A cruz é a expressão máxima de kénosis. A mais forte experiência da ausência de Deus foi vivida pelo próprio Jesus, no momento mais crítico e decisivo da sua missão, ou seja, no altar da cruz. Ali, qualquer explicação e certeza religiosa não servem. Sobra apenas a fé no Pai que silencia. O aparente abandono do Filho em sua cruz ensina que a fé não é religião, mas uma experiência do espírito que se purifica de tudo. A religião explica, mas na cruz não há mais a linguagem, apenas o silêncio cortante.
Hoje parece crescer aquela tendência das religiões de querer controlar a presença de Deus. Se a cruz é a síntese do Evangelho, então o cristianismo deve purificar-se dos excessos das falsas presenças de Deus. O mercado religioso vende a presença divina e promete êxito em tudo, mas na cruz não há êxito. Há, sim, fidelidade e perseverança, seguimento e desolação, enfim a cruz sinaliza mais ausência que presença. É só assim que a gente vai descobrir o Deus de Jesus, não aquele da religião.
Aprenda também a viver a “ausência” de Deus. Essa experiência certamente amadurecerá a tua fé. Você se dará conta que o cristianismo não compactua com os esquemas de glória desse mundo. Essa experiência vai te despertar para uma vida mais concreta e lúcida, onde as nossas fantasias caem todas por terra. Não restará outra coisa senão o total abandono em um Deus que só age quando silencia e se revela em sua aparente ausência.
“Meu Pai, eu me abandono a Ti. Faz de mim o que te agradar. Não importa o que faças de mim, eu te agradeço. Estou pronto a tudo, eu aceito tudo. Tomara que tua vontade se faça em mim, em todas tuas criaturas, eu não desejo nada mais, Meu Deus. Eu coloco minha alma entre tuas mãos. Eu a te dou, meu Deus, Com todo o amor do meu coração, porque eu te amo, e que é minha necessidade, de me colocar em tuas mãos sem medida, com infinita confiança, pois Tu és meu Pai”. (Charles de Foucauld).
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Viver a “ausência” de Deus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU