16 Setembro 2010
“É possível uma medicina do homem?” Essa foi a questão central trazida pelo doutor em Saúde Coletiva Roberto Passos Nogueira durante o minicurso que proferiu no XI Simpósio Internacional IHU: o (des)governo biopolítico da vida humana. E ele responde: “É que a medicina que temos hoje é fundamentada em questões e métodos que se aplicam tanto ao animal quanto ao homem. Há diferenças entre medicina veterinária e medicina humana, mas seus pressupostos são os mesmos”. Na entrevista que concedeu à IHU On-Line, realizada pessoalmente logo após a palestra, Nogueira fala sobre a compreensão atual sobre a medicina do homem e também sobre os caminhos que podemos tomar para uma busca efetiva pela saúde humana.
Roberto Passos Nogueira é graduado em Medicina pela Universidade Federal do Ceará. Fez mestrado e doutorado em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente, é pesquisador associado da Universidade de Brasília. É técnico do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA. Entre seus livros, destacamos: La Salud que Hace Mal, Un estudio alrededor del pensamiento de Ivan Illich (Buenos Aires: Lugar Editorial, 2008) e Do Físico ao Médico Moderno, A Formação Social da Prática Médica (São Paulo: Editora UNESP, 2007).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como podemos, atualmente, entender a medicina do homem? É possível e necessária uma outra compreensão desta medicina?
Roberto Passos Nogueira – Na verdade, o que nós temos hoje é uma medicina que não é do homem, é uma medicina do ser vivo, ou seja, considera-se o homem com o mesmo estatuto que os outros animais e as plantas. Estuda-se a anomalia dos órgãos, dos tecidos e as anomalias genéticas do mesmo modo, tanto para o homem como para os animais e as plantas. Isto é uma naturalização do homem. A medicina que existe hoje retrata a evolução do pensamento científico do século XVIII para cá. Ela criou uma compreensão da saúde e da doença que não é humana. O que eu procurei fazer na minha palestra foi indicar, a partir do pensamento de Heidegger [1], como é que poderia ser uma nova medicina que partisse da compreensão do que é a saúde do homem, como diz Dasein [2], e o que é o fechamento do homem que se dá na doença como uma forma de privação de mundo.
IHU On-Line – O que há de não humano nessa compreensão/determinação objetal da doença?
Roberto Passos Nogueira – Quando consideramos o homem como um conjunto de objetos normais ou anormais, reduzimos cada um dos órgãos, dos tecidos e células a entidades que podem ser avaliadas de acordo com esse critério de normalidade. Nós estamos passando por um crivo que se aplica a qualquer ente natural e, nesse sentido, o próprio comportamento humano é avaliado para saber se nós temos uma doença ou não, de acordo com os padrões esperados de conduta que se tornam objetos. Toda doença, seja mental ou física, é descrita como objeto normal, apenas no caso da doença mental, no que há de particular, é que se descreve um comportamento anormal, característico.
IHU On-Line – O que é ser doente enquanto homem e não enquanto organismo?
Roberto Passos Nogueira – Nós temos que partir para esta pergunta daquilo que é o homem e, naturalmente, aqui estamos seguindo a interpretação heideggeriana de que o homem é essencialmente um ser livre e aberto. Ser livre, no sentido de que ele não é causado, como é qualquer outro corpo da natureza, pode ser produzido, movido por causas. O homem sempre escolhe, na condição de escolher e ele responde a motivos e não a causas. O comportamento humano é sempre um comportamento livre diante daquilo que se lhe apresenta, na compreensão daquilo que se lhe apresenta, enquanto que os animais reagem somente a estímulos. A doença do homem, nessa condição em que se parte da compreensão do homem como ser livre e aberto, é que se trata de um fechamento do Daisen e uma perturbação da relação do Dasein com o mundo, no sentido de fazer com que ele não se mova com liberdade no seu cotidiano.
IHU On-Line – Quais são os caminhos para uma busca efetiva pela saúde humana?
Roberto Passos Nogueira – Os caminhos efetivos são difíceis de serem assinalados nesse momento, porque há muito poucas pessoas interessadas no assunto. No entanto, há uma sede muito grande por parte dos médicos, por parte de vários setores da saúde coletiva, por exemplo, de encontrar caminhos, novas interpretações que levem a uma medicina do homem. Não uma medicina humanizada, porque, por exemplo, o Ministério da Saúde tem uma política de humanização do SUS, mas o que nós queremos perguntar é se a medicina que está aí, se ela pode ser humanizada? No máximo, ela pode levar a uma relação de etiqueta mais adequada entre o médico e o paciente, de acordo com as normas da bioética e coisas semelhantes. No entanto, essencialmente, a medicina que existe hoje é uma medicina que trata o homem como objeto, como algo não humano, então essa humanização ela é apenas cosmética. Eu não quero desvalorizar essa humanização, porque quem está doente, sendo bem tratado, bem cuidado, já é um grande avanço, porque o que nós vemos aí na maioria das vezes, nos hospitais e nos centros de saúde, é algo que choca a nós, que estamos examinando, e deprime o próprio paciente. Não quero ser contra a política de humanização, quero indicar apenas, os seus limites que estão dentro da própria concepção e da estrutura da medicina.
Notas:
[1] Martin Heidegger foi um filósofo alemão, considerado um dos pensadores fundamentais século XX. Sua intenção é fazer uma recolocação do problema do ser pela refundação da Ontologia, que atribui ao conhecimento da tradição filosófica e cultural.
[2] Até o final da década de trinta, a leitura da filosofia de Heidegger estrutura-se sobre conceitos como Dasein (o ser-aí ou o ser-no-mundo), morte, angústia ou decisão. O Dasein é o ente que em cada caso propriamente questiona e investiga. É também o Dasein que detém a possibilidade de enunciar o ser, pois é ele que tem o poder da proposição em geral. Daí que na questão acerca do sentido de ser seja fundamental começar por abordar o ser deste ente particular. E tem que ser o próprio Dasein a fazer isso, tem que ser ele próprio a mostrá-lo, a partir de uma análise fenomenológica esclarecida.
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A medicina que está aí pode ser humanizada? Entrevista especial com Roberto Passos Nogueira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU