09 Setembro 2016
Foi na encíclica de 1993 de João Paulo II intitulada Veritatis splendor que a Igreja primeiramente falou da escravidão como um conjunto de fatos “intrinsecamente maus”. No Novo Testamento, a escravidão é um fato aceito da vida, e ser escravo ou dono de um escravo não era obstáculo para se tornar cristão. A Igreja primeva facilmente se reconciliou com o que era então uma prática quase universal. O escravo era geralmente pensado como apenas mais um despojo de guerra. Em lugar algum Jesus fala contra a escravidão, e São Paulo exige que os escravos sejam obedientes a seus senhores. Ainda que alguns papas modernos acabaram condenando o comércio escravocrata, os primeiros pontífices tiveram, eles próprios, os seus escravos. Historicamente a Igreja ensinou que a escravidão poderia ser algo lamentável, porém não violava a lei natural. Os escravos deveriam ser tratados de forma humana, mas não era imoral a um católico possuir um outro ser humano.
A reportagem foi publicada por Commonweal, 06-09-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Onze presidentes – de modo notável George Washington e Thomas Jefferson, e quiçá o mais surpreendente entre eles: Ulysses S. Grant – possuíam escravos. O mesmo acontecia com a maioria dos homens que assinaram a Declaração de Independência. Também o mesmo com os jesuítas dos séculos XVIII e XIX da Província de Maryland. Embora os historiadores há muito tempo venham dizendo que estes fatos fazem parte, realmente, da história, eles ainda são recebidos com surpresa por muitas pessoas. Na verdade, os jesuítas da citada província possuíam nada menos que 1 mil escravos. Em 1838, no estado de Louisiana eles venderam 272 homens, mulheres e crianças a proprietários de plantação. Uma boa parte dos recursos obtidos na venda foi usada para pagar dívidas daquela que é hoje a Universidade de Georgetown, resgatando a instituição da insolvência.
No dia 1º de setembro de 2016, a universidade publicou um relatório anunciando medidas que tomará para expiar o papel da instituição no pecado original do país e para buscar reconciliação com os descendentes dos escravos que foram vendidos em 1838. Porque os jesuítas foram cuidadosos em manter os registros, e porque muitos dos escravos permaneceram católicos praticantes e cuja vida sacramental pode ser traçada em documentos paroquiais, é possível a universidade contatar os herdeiros desta trágica história. Diferentemente de muitos escravos, os seus ancestrais não eram anônimos. Descendentes de escravos vão agora receber a mesma preferência nas decisões de admissão recebida pelos filhos de ex-alunos, professores e funcionários da Georgetown. (A universidade possui uma política de admissão conhecida como “need-blind” [em que analisa a candidatura de novos alunos sem considerar a sua necessidade financeira], de forma que um auxílio financeiro está disponível para todos os alunos.) Além disso, dois prédios no campus serão renomeados: um em homenagem de um escravo vendido em 1838 e um outro em memória de uma irmã religiosa afro-americana que fundou uma escola para meninas negras em 1827. Um memorial aos escravos que os jesuítas venderam vai ser construído, e um centro para estudos sobre escravidão será criado. As faculdades de direito e medicina da Georgetown irão explorar iniciativas no Distrito de Columbia no intuito de abordar as necessidades jurídicas e de saúde dos afro-americanos hoje.
Tudo isso constitui um ato impressionante de arrependimento. Talvez ainda mais coisas possam ser feitas. Alguns críticos do plano da Universidade de Georgetown acham que estes descendentes devem ser diretamente indenizados ou, pelo menos, que um fundo estudantil deva ser criado para os seus filhos. O que deve ser considerado na conta de uma simples indenização por crimes que ocorreram a mais de um século atrás e quem merece recebê-la são questões marcadamente tensas. Nesse ínterim, a universidade está sendo instada a incluir descendentes em quaisquer deliberações futuras sobre como ela pode continuar reconhecer este legado. Conforme escreveram Maxine Crump, descendente, e Richard J. Cellini, ex-aluno e fundador do Georgetown Memory Project, os descendentes “buscam reconciliação e união, não reparações financeiras”.
Quase todas as instituições na América colonial e revolucionária, tanto no sul como no norte, estavam profundamente implicadas na escravidão. Brown, Yale e Harvard, todas reconhecem essa história espinhosa, e o fato é que as instituições católicas eram, na melhor das hipóteses, atores marginais numa época de hegemonia protestante. No entanto, as medidas que a Georgetown está tomando, hoje, são mais ousadas do que qualquer uma tomada por essas universidades não católicas mais velhas. E isso deve ser assim. Porque a própria Georgetown, na realidade, vendia escravos ao invés de simplesmente se beneficiar da generosidade de homens envolvidos no comércio escravocrata, poder-se-ia argumentar que ela carrega uma responsabilidade maior do que as instituições parceiras na Ivy League [grupo de oito universidades privadas do nordeste americano]. Na qualidade de universidade católica, a Georgetown deve acolher esse tipo de responsabilização moral. A Igreja Católica, evidentemente, faz notar a sua autoridade moral, o que torna as suas falhas ainda mais humilhantes. Certamente isso explica grande parte da surpresa e do choque advindos das revelações de culpa da Georgetown.
Ao mesmo tempo em que as instituições católicas carregam um fardo especial, elas também têm uma oportunidade única para a ação moral. Ao reconhecer suas falhas de maneira franca, a Universidade de Georgetown renovou a história cristã fundamental do pecado e redenção, história que muitas vezes parece ter sido banida de um mundo onde o reconhecimento de que “erros foram cometidos” raramente acarreta um grande remorso, quem dirá alguma penitência séria.
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Os pecados da Georgetown e os nossos. Como as instituições se arrependem - Instituto Humanitas Unisinos - IHU