Por: André | 27 Janeiro 2015
O Papa Francisco recebeu, no sábado, 24 de janeiro, no Vaticano, uma pessoa que se sente excluída da Igreja desde que se submeteu a uma cirurgia para troca de sexo. Fiel e católico praticante desde a infância, ele pede ao Santo Padre que o ajude a encontrar seu lugar na casa de Deus.
Fonte: http://bit.ly/1JFzLmo |
A reportagem é de Ana B. Hernández e publicada no jornal espanhol Hoy, 26-01-2015. A tradução é de André Langer.
“Nunca me teria atrevido, mas com o Papa Francisco, sim; depois de ouvi-lo em muitas intervenções, senti que ele me ouviria”. Diego Neria Lejárraga (foto) é um espanhol de 48 anos, que, no sábado, foi recebido pelo Papa Francisco em um encontro estritamente privado – como tantos outros do Santo Padre – em sua residência de Santa Marta, no Vaticano, às 17h horário local. Um momento excepcional para qualquer fiel, para milhares de cidadãos em todo o mundo, e único na vida de Diego. Porque, agora sim, seu espírito está em paz.
“Quando chegava o Natal, na minha casa, ceávamos uma tortilha de batata, porque a minha mãe preferia levar para casa pessoas que não tinham o que comer e sentá-las à nossa mesa, em vez de desfrutar apenas a família de um delicioso jantar”. É a lembrança que escolhe para ilustrar suas origens. Nasceu em uma família bem situada, católica e praticante. Com uma estreita relação com a Igreja.
Atualmente, Diego continua a ser católico e praticante. Embora essa relação com a Igreja não seja estreita. Ou não o era até sábado. Porque seu encontro com o Papa Francisco marca claramente um antes e um depois em sua vida. Na vida deste placentino, que nasceu menina, e muito provavelmente na de outras tantas pessoas que estão passando, passam ou tenham passado por um processo íntimo e duro em que a rejeição social e o afastamento da Igreja eram ou são uma realidade. Talvez também o Papa Francisco mude a realidade das pessoas que um dia decidiram ou vão decidir, como Diego, trocar de sexo.
Então, talvez, se possa, se não eliminar, reduzir o sofrimento que até agora estava assegurado e que marcou não poucos momentos da vida deste placentino. Desde que tem o uso da razão e, inclusive, antes. Suas cartas aos Reis Magos pareciam que nunca chegavam ao destino. Porque jamais teve o presente que pedia: aquilo que lhe permitisse ser menino. E sua desilusão levava a sua mãe a esconder-se para que não a vissem, e chorar. Porque ela sabia que Suas Majestades do Oriente não podiam trazer para o seu ‘menino’ o presente que cada Natal pedia.
Quando a infância se foi e a inocência ficou para trás, o sofrimento aumentou. Porque então Diego soube que viveria resignado ao seu destino, em um corpo que não queria e que não reconhecia. “Minha prisão era meu próprio corpo, porque não correspondia absolutamente ao que minha alma sentia”. E o escondeu durante anos como pôde. “Não tinha um verão feliz em que pudesse ir à piscina com os amigos”, reconhece com tristeza. Nem sequer se dava mergulhos na piscina que seus pais fizeram para ele na casa da família. Porque, simplesmente, não queria se ver.
A proteção de seus pais e irmã, o carinho e o apoio incondicional dos três, aos quais Diego estará eternamente agradecido, não supriram, porque era impossível, seus desejos de conciliar seu corpo e alma e ter que se deixar vendar o torso e usar roupas três números maiores para tapar as partes de seu corpo que detestava.
Diego seguia sem poder olhar-se no espelho. Todos em casa sabiam o que na realidade estava acontecendo e que a passagem do tempo não mudaria nada. Por isso ele decidiu seguir resignado o seu destino. Porque a pessoa que mais quis no mundo, “a alma da minha vida”, sua mãe, pediu-lhe que não trocasse seu sexo enquanto vivesse. “E por ela, em uma ou mil vidas sempre esperaria”.
Cuidou dela durante os últimos anos da sua vida, e um ano após a sua morte, quando Diego completou 40 anos, finalmente, deu o passo: fez contato com uma cirurgiã plástica e começou a mudar o seu corpo. Queria, tinha isso muito claro, que outro grande tesouro da sua vida, sua sobrinha, o conhecesse como verdadeiramente é, como sempre foi.
Viveu então a meio caminho entre Madri e Plasencia e quando voltou de forma definitiva à sua cidade natal, seu aspecto físico era diferente. Por fim, seu corpo e sua alma haviam se encontrado.
Mas, então, o sofrimento não o deixou. A rejeição social e a condenação da Igreja o impediram. “Como se atreve a entrar aqui na sua condição? Você não é digno”, disseram-lhe algumas pessoas de comunhão diária quando Diego voltou à sua igreja. “Você é filha do diabo”, ouviu certo dia em plena rua da boca de um padre.
Fechava-se, então, em sua casa a chorar. Também para escrever. Diego Neria transformou muitas vezes em letras os seus sentimentos. Uma terapia pessoal e íntima que tornou possível o maior presente da sua vida. Porque foi numa dessas tardes de dor que decidiu escrever uma carta ao Papa Francisco. E a enviá-la. Fê-lo através de todas as alternativas possíveis. Também por meio do bispo de Plasencia, Amadeo Rodríguez Magro, em quem encontrou nos últimos tempos ânimo, consolo e apoio.
“Sou o Papa Francisco”
Pouco antes das 14h30, no dia da Imaculada Conceição, enquanto cuidava do seu pai doente então em casa, recebe um telefonema. “Era de um número desconhecido. A verdade é que não sei muito bem porque atendi, porque essas chamadas nunca atendo”, recorda. Desta vez, o acaso, ou o que tivesse sido, fez com que Diego Neria atendesse. “Sou o Papa Francisco”, ouviu do outro lado. E o corpo deixou de responder. Não sabia o que estava acontecendo até que o Santo Padre lhe disse que havia lido sua carta e que lhe tocou na alma. A emoção permitiu que mal conseguisse abrir a boca, mas o Papa pediu que se acalmasse e disse-lhe que queria vê-lo. E que lhe telefonaria mais adiante para comunicar a data do encontro.
Aconteceu poucos dias depois. No dia 20 de dezembro, enquanto passeava por Sevilha, cidade na qual mora a sua prometida. O Santo Padre voltou a telefonar a Diego. E propôs-lhe, caso fosse conveniente para ele e sua mulher, a data de 24 de janeiro, às 17h, no Vaticano, para se verem.
“O primeiro telefonema já era muitíssimo mais do que eu esperava; no segundo, continuava sem poder acreditar no que estava acontecendo, porque eu sei que o meu caso não é nada, que há tantas pessoas que sofrem neste mundo, que não mereço a atenção do Papa”. Mas foi a ele que Diego expôs suas dúvidas e suas esperanças na carta. A quem perguntou por que é rejeitado pela Igreja, por que não pode ser um católico praticante, por que tem medo de comungar, por que não sente que faz parte do rebanho, por que é incapaz de encontrar o Pastor.
Diego perguntou ao Santo Padre, então, se do jeito como é hoje, se depois da sua mudança de sexo, há algum lugar na casa de Deus para ele. E o Papa Francisco, no sábado, o abraçou no Vaticano. Na presença da sua mulher, com quem logo se casará.
Hoje, seu espírito está em paz. E acredita que também o está o espírito de muitas outras pessoas. Não pretende defender nada, nunca o fez. Mas gostaria que outros pudessem ver luz no caminho escuro que, às vezes, aqueles que nasceram em um corpo que não reconhecem precisam percorrer. “Se eu tivesse podido escolher, não teria escolhido a minha vida”, deixa claro.
Diego superou mil e um obstáculos e conseguiu ser finalmente quem quis ser. Graças ao máximo representante da Igreja católica, a um Papa que recebeu, leu e atendeu à sua carta. Essa carta que Diego está certo de que sua mãe o ajudou a escrever, que do céu quis acompanhá-lo no último degrau para conseguir que, desta vez, os Reis Magos respondessem à sua carta. Hoje, Diego Neria é um homem em paz.
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O abençoado encontro entre Francisco e Diego - Instituto Humanitas Unisinos - IHU