Por: Ricardo Machado | Edição: Vitor Necchi | 14 Outubro 2016
A advogada Carmen Cecilia Bressane, coordenadora do Núcleo São Paulo da Auditoria Cidadã da Dívida, faz uma matemática simples para chegar a um dado impressionante: ao dividir o total da dívida pública federal pelo número de brasileiros, constata que cada cidadão nasce como se estivesse devendo em torno de R$ 27 mil. Claro, na prática não é assim, mas o número ajuda a dimensionar a situação grave e que mobiliza muito do tempo de Carmen.
A Lei de Responsabilidade é rigorosa para controlar gastos ou investimentos em áreas sociais, mas ela não limita, em âmbito federal, o endividamento público. Carmen alerta: “O chamado ajuste fiscal, um grupo de projetos em curso no país que teria como objetivo contornar a crise econômica, é voltado a privilegiar o capital, com a economia e o enxugamento de investimentos nas áreas sociais, já tão carentes, bem como com o corte dos direitos trabalhistas e previdenciários para pagamento de dívida pública e seus juros exorbitantes”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Carmen questiona: “Que dívida é essa?”. Ela afirma que é indispensável realizar uma auditoria da dívida pública, mecanismo previsto na Constituição Federal e até hoje não cumprido. “Não se trata de calote, temos que pagar, mas apenas o que é realmente devido, e isso somente uma auditoria, com participação da sociedade, poderá determinar com precisão.”
Carmen Bressane | Foto: brasileiros.com.br
Carmen Cecilia Bressane é auditora fiscal aposentada da Receita Federal. Foi diretora fundadora da Fundação Assistencial dos Servidores do Ministério da Fazenda – Assefaz e presidente do Sindicato dos Auditores Fiscais da Receita Federal (gestão 2005/2007).
A entrevista foi publicada na revista IHU On-Line, 492 cujo tema de capa é Financeirização, Crise Sistêmica e Políticas Públicas.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – De que forma a financeirização fez emergir um novo tipo de sujeito social, o homem endividado?
Carmen Cecilia Bressane - Hoje, nossa dívida pública federal, interna e externa, ultrapassa a casa dos R$ 5,5 trilhões. Considerando que, segundo recentes dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, a população do país é de 206 milhões de habitantes, cada brasileiro que nasce já está na condição de devedor de um valor em torno de R$ 27 mil. Some-se a isso o fato de que a maior parte dos estados e municípios também têm dívidas em valores elevadíssimos, o que aumenta mais ainda essa conta devedora dos indivíduos. Quem fez tantos empréstimos? Quem contraiu uma dívida tão elevada? Para que serviu esse endividamento? Se, por um lado, as respostas oficiais a essas perguntas são evasivas e obscuras, por outro lado, quem efetivamente paga essa dívida pública somos nós, cidadãos.
IHU On-Line – Como o homem endividado se conecta à perspectiva da dívida pública? De que forma a dívida pública impacta na vida social dos sujeitos?
Carmen Cecilia Bressane - A dívida pública tem tido sempre prevalência. A Lei de Responsabilidade Fiscal [1] é rigorosa no que diz respeito aos gastos ou investimentos nas áreas sociais, tais como saúde e educação, saneamento, cultura, segurança. Porém, não há limite, em âmbito federal, para o endividamento público, nem para os mecanismos que geram mais dívida. Está liberado contrair ou produzir dívida à vontade, não há nenhum limite de responsabilidade para isso. O chamado ajuste fiscal, um grupo de projetos em curso no país que teria como objetivo contornar a crise econômica, é voltado a privilegiar o capital, com a economia e o enxugamento de investimentos nas áreas sociais, já tão carentes, bem como com o corte dos direitos trabalhistas e previdenciários para pagamento de dívida pública e seus juros exorbitantes.
Um desses projetos, a Proposta de Emenda à Constituição - PEC 241/2016 [2], propõe o congelamento por 20 anos das despesas primárias. Pela proposta, ainda que o país recupere uma enorme pujança econômica, as verbas não poderão ser destinadas aos setores sociais por 20 anos! Ora, não há dúvida de que esta emenda constitucional agravaria ainda mais a situação do país precarizando os serviços públicos, os servidores públicos e todos os serviços essenciais. Por outro lado, fica garantida régia remuneração para o setor financeiro que, mesmo em meio à grave crise econômica brasileira, vem batendo recordes de lucratividade.
Ademais, essa mesma PEC 241/2016 reserva recursos também para “estatais não dependentes”, que são exatamente as empresas que estão surgindo em diversos entes federados, como a Companhia Paulista de Securitização – CEPSEC, em São Paulo, que emitem debêntures e, na prática, geram dívida pública de forma ilegal, sem contrapartida alguma. Há um projeto de lei complementar no Senado (PLS 204/2016 [3]) que visa a “legalizar” esse esquema, possibilitando aprofundamento brutal da financeirização no país. Esse esquema provocará danos incalculáveis, que recairão sobre a vida das pessoas.
IHU On-Line – E o “Estado endividado” é resultado de quê? Podemos compreendê-lo como o resultado de uma mesma lógica?
Carmen Cecilia Bressane - A Auditoria Cidadã da Dívida, associação sem fins lucrativos, vem estudando com profundidade a questão da dívida pública brasileira há 16 anos. Nossos estudos também incluem o endividamento em diversos outros países, tanto na América Latina como em outros continentes. Temos insistido que a dívida pública, para ser estudada, compreendida e combatida, precisa ser enfocada como um sistema. Trata-se do Sistema da Dívida, que se constitui de:
• Grande mídia - a grande mídia também é patrocinada, principalmente, por grandes empresas, em especial do sistema financeiro. Ora, falar contra o patrocinador significa perder o patrocínio. Dessa forma, não se veiculam informações sobre a questão da dívida ou são veiculadas de forma inexata.
• Sistema político – o sistema político também fica subjugado ao poderio econômico. Um dos caminhos é o financiamento privado de campanhas eleitorais, resultando que políticos eleitos fiquem atrelados às grandes empresas que os financiaram, atendendo aos seus interesses, em vez de lutar pelas causas sociais.
• Privilégios financeiros – o Sistema da Dívida garante enorme privilégio ao setor financeiro, evidenciado no orçamento federal que destina quase a metade dos recursos, todo ano, para o serviço da dívida. Mesmo com o país em crise, os bancos não param de lucrar. Essa mágica se viabiliza por conta dos mecanismos de geração da dívida pública, remunerando magistralmente o mercado.
• Modelo econômico – totalmente equivocado, assentado em metas estéreis de controle de inflação e de responsabilidade nas contas públicas. Sob o pretexto de controlar a inflação, pratica-se no Brasil uma taxa de juros elevadíssima, totalmente incompatível com as taxas praticadas internacionalmente. Todavia, a inflação que temos decorre, principalmente, do aumento dos preços controlados, tais como combustível, energia elétrica, água, gás e de algum produto agrícola sazonal, como foi o recente caso do tomate e do feijão. De que adianta aumentar a taxa de juros nesse tipo de inflação? De nada adianta, como não tem adiantado. O aumento de combustível, por exemplo, é um disparador de preços em cascata que nenhuma taxa de juros segura. Aumentar os juros tem servido exclusivamente para remunerar cada vez mais os credores. A outra meta estéril de “responsabilidade nas contas públicas” significa tão somente cortes no custeio e investimentos nas áreas sociais. Não é crível que tais áreas, que já recebem tão poucos recursos, sejam responsáveis pelo esgotamento de nossos recursos. É preciso mudar esse modelo econômico e conter o ralo por onde escoa parcela significativa das receitas do Tesouro Nacional: a dívida pública.
• Sistema legal – para garantir e dar legalidade às operações que proporcionam tais benesses ao mercado, é mantido um arcabouço legal que garante a execução do modelo econômico e a lucratividade ao sistema financeirizado. Os recentes PLP 257 [4], PEC 241, PLS 204 são exemplos de atos legais editados para garantir o privilégio da dívida.
• Corrupção - uma cortina que esconde o maior sistema de desvio de recursos do país: o sistema da dívida. Se perguntarmos à população em geral qual o motivo das verbas públicas não retornarem em forma de benefícios sociais, as pessoas dirão que é por causa da corrupção, mas ninguém dirá que é por causa da dívida. E a dívida consome muito mais recursos do Estado do que todas as corrupções anunciadas pela grande mídia.
• Organismos internacionais – Esse modelo econômico implementado no Brasil tem sido pensado por organismos internacionais. As linhas do ajuste fiscal em curso e as medidas econômicas em geral estão delineadas em documentos, por exemplo, o denominado Financial Sector Assessment Program Brazil – Detailed Assessment of Implementation, elaborado pelo Fundo Monetário Internacional - FMI e pelo Banco Mundial, com recomendações para a economia brasileira. Toda a política monetária que amarra o Brasil é definida nesses documentos, e as orientações propõem invariavelmente cortes de investimentos na área social, nos direitos trabalhistas e previdenciários e nos direitos do funcionalismo público, além de privatizações de setores estratégicos, garantindo economias para plena remuneração dos rentistas.
IHU On-Line – Qual o principal sintoma do endividamento público, a má gestão nas contas ou a má gestão na auditoria da dívida?
Carmen Cecilia Bressane - A dívida pública é correlata à dívida social. Ao analisar o orçamento federal, constatamos que, ano após ano, quase a metade das receitas é destinada ao serviço da dívida. Segundo estudo divulgado pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário - IBPT, o país ficou pela quinta vez seguida na última colocação, entre 30 países, no ranking que mede o retorno oferecido em termos de serviços públicos de qualidade à população em relação ao que o contribuinte paga em tributos. O grande ralo por onde escoam os recursos é a chamada dívida pública. Em 2015, quase R$ 1 trilhão foi destinado ao serviço da dívida. Todo esse montante deixou de ser investido nas áreas sociais. Que dívida é essa? Os estudos da Auditoria Cidadã da Dívida, aliados aos resultados da CPI da dívida pública, encerrada na Câmara dos Deputados em 2010, não deixam dúvidas de que se trata de uma dívida sem contrapartida para a sociedade, fruto de mecanismos ilegítimos e até mesmo ilegais. É indispensável, portanto, realizar a auditoria da dívida, prevista na Constituição Federal, no artigo 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT, até hoje não cumprido. Não se trata de calote, temos que pagar, mas apenas o que é realmente devido, e isso somente uma auditoria, com participação da sociedade, poderá determinar com precisão.
IHU On-Line – Como o desejo de privatização de serviços públicos, como a Previdência Social e o Sistema Único de Saúde – SUS, incorporam a lógica financista?
Carmen Cecilia Bressane - A recém aprovada Proposta de Emenda à Constituição - PEC 31/2016 aumentou de 20% para 30% a Desvinculação de Receitas da União - DRU [5], viabilizando transferir mais verbas carimbadas das áreas sociais para o setor financeiro. A referida PEC ainda cria a Desvinculação de Receitas de Estados e Municípios - DREM, retirando também destes entes federados verbas que seriam aplicadas nas áreas sociais, inclusive saúde e previdência. O projeto de reforma da Previdência Social, propalado pela grande mídia, é um claro exemplo de como os assuntos da economia são manipulados de forma a enganar a população. A previdência não é deficitária como vem sendo divulgado pois, com o auxílio da DRU, suas verbas têm sido sistematicamente desviadas para garantir o superávit primário – pagamento de juros.
Nos cálculos do “rombo” previdenciário apresentado pelo governo, são computadas como receitas apenas os valores recebidos a título de contribuições previdenciárias; “esquecem” de colocar na conta as receitas dos tributos criados para subsidiar a Seguridade Social composta pela Previdência, pela Saúde e pela Assistência Social. Um desses tributos é a Cofins, cujo próprio nome indica sua destinação: Contribuição para Financiamento da Seguridade Social. Esses valores não entram nas contas apresentadas pelo governo e, assim, recursos da previdência e da saúde vêm sendo usurpados. Com base nesse falso diagnóstico das contas da Seguridade Social, propalam a hipótese de privatização da Previdência e até da saúde. Um grande perigo social. Qual o interesse que bancos que oferecem fundos privados, de alto risco, e demais empresas privadas, que visam ao lucro, terão em atender às classes menos favorecidas? E não podemos esquecer o exemplo do que já ocorreu em diversos outros países, quando as empresas multinacionais de previdência privada, após destinarem enormes quantias de lucros para suas matrizes no exterior, apresentaram balanços com prejuízos, quebraram e deixaram a população sem nenhum benefício.
IHU On-Line – De que forma a financeirização conforma um modo de ser na contemporaneidade?
Carmen Cecilia Bressane - A financeirização tem subjugado povos em todo o planeta. O seu modus operandi é através de um sistema que age com amplo espectro, conforme explicamos acima, e que reveste situações espúrias e ilegítimas com uma fachada de legalidade, relegando os cidadãos e a infraestrutura social à precariedade e até ao total abandono. Em nosso país, que tem a maior área agriculturável do mundo, não se cogita a reforma agrária, ao contrário, a produção agrícola está pautada não para trazer alimento farto e barato para a população, mas em função das commodities para a balança comercial e o lucro do agronegócio. A moradia também não é tratada como um direito básico, mas como investimento para rentistas.
O PLS 204/2016, que está em plenário do Senado, materializa a Financeirização no país, utilizando a estrutura do Estado, fazendo uma propaganda de que a “dívida ativa”, que corresponde em grande parte a créditos incobráveis, estaria sendo vendida a investidores privados e isso seria um bom negócio. Na realidade, a dívida ativa não é vendida e continua sendo cobrada pelos órgãos públicos que detêm tal competência. O que é vendido é um papel financeiro, com desconto que pode chegar a 50% e que paga juros de mais de 20% sobre o valor de face. Um grande negócio que, em menos de dois anos, vai gerar dívida pública, sem que o Estado tenha recebido um centavo, e ainda gastou com consultoria, serviços financeiros etc. É preciso levar ao conhecimento dos cidadãos a realidade dessa farsa da financeirização e inverter esse processo perverso.
IHU On-Line – Em que medida abrir a caixa preta da dívida pública pode ajudar a explicar os processos de financeirização que movem as sociedades contemporâneas?
Carmen Cecilia Bressane - A auditoria da dívida permitirá trazer à tona os esquemas que têm justificado o favorecimento dos rentistas em uma sociedade financeirizada, no contexto de um falido modelo econômico neoliberal. Operações, como o swap cambial [6], que somaram, no período de setembro de 2014 a setembro de 2015, R$ 207 bilhões de prejuízo ao Banco Central e que se transformaram em dívida pública; operações compromissadas que acumulam mais de R$ 1 trilhão de dívida pública sem contrapartida social; a ilegal prática de juros sobre juros com as maiores taxas do mercado internacional são exemplos de mecanismos que não trazem à sociedade o menor benefício e somente enriquecem o setor que está sempre acima de qualquer crise: o setor financeiro, que não para de criar esquemas cada vez mais sofisticados — a exemplo do já citado PLS 204 — para gerar “dívida pública” sem contrapartida alguma à sociedade que só é chamada para pagar a conta.
É por este motivo que conclamamos todos os setores da sociedade a participarem conosco dessa empreitada e exigir que seja feita a auditoria cidadã da dívida, buscando uma vida com menos desigualdades e com dignidade para os cidadãos.
Notas:
[1] Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF: oficialmente Lei Complementar Nº 101, de 4 de maio de 2000, tem o objetivo de controlar os gastos da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, levando em conta a capacidade de arrecadação de tributos. Ela foi decorrência do costume de gestores públicos gastarem, ao final dos seus mandatos, mais do que a capacidade financeira permitiria, deixando a dívida para seus sucessores. A LRF estabeleceu mecanismos mais transparentes para o controle dos gastos públicos. (Nota da IHU On-Line)
[2] Proposta de Emenda Constitucional – PEC 241: de autoria do Executivo, quando o presidente Michel Temer ainda estava na condição de interino, estabelece um limite para os gastos públicos e prevê o congelamento de gastos públicos por 20 anos. Conforme especialistas no setor de Saúde, pode resultar na redução de R$ 12 bilhões em repasses para a área, nos próximos dois anos. Para saber mais sobre a PEC 241, acesse a entrevista com Grazielle David, intitulada PEC 241/16: Uma afronta à saúde, aos direitos sociais e à Constituição, publicada nas Notícias do Dia de 11-07-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. (Nota da IHU On-Line)
[3] Projeto de Lei do Senado - PLS 204/2016: de autoria do então senador José Serra (PSDB-SP), dispõe sobre a cessão de direitos creditórios originados de créditos tributários e não tributários dos entes da Federação. Permite aos entes da federação, mediante autorização legislativa, ceder direitos creditórios originados de créditos tributários e não tributários, objeto de parcelamentos administrativos ou judiciais, inscritos ou não em dívida ativa, a pessoas jurídicas de direito privado. Confira a íntegra e tramitação do projeto. (Nota da IHU On-Line)
[4] Projeto de Lei Complementar - PLP 257/2016: estabelece o Plano de Auxílio aos Estados e ao Distrito Federal e medidas de estímulo ao reequilíbrio fiscal. Confira a íntegra. (Nota da IHU On-Line)
[5] Desvinculação de Receitas da União (DRU): por meio desse mecanismo, o governo federal pode utilizar livremente 30% dos tributos federais vinculados por lei a fundos ou despesas. Por meio deste expediente, o governo consegue aplicar recursos de áreas como educação, saúde e previdência social em qualquer despesa considerada prioritária e na formação de superávit primário. Outra aplicação prevista é a destinação desses recursos para o pagamento de juros da dívida pública. (Nota da IHU On-Line)
[6] Swap cambial: conforme o Banco Central do Brasil (BCB), é um instrumento derivativo que permite a troca de rentabilidade dos ativos. Consiste na troca de taxa de variação cambial (variação do preço do dólar americano) por taxa de juros pós-fixados. (Nota da IHU On-Line)
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Brasileiro já nasce devendo em torno de R$ 27 mil da dívida pública. Entrevista especial com Carmen Cecilia Bressane - Instituto Humanitas Unisinos - IHU