15 Setembro 2021
Nos últimos anos, cada vez mais vozes alertam sobre a crise da democracia liberal, devido, entre outras coisas, a ascensão de projetos autoritários em diferentes lugares do mundo. Do mesmo modo, com frequência se alerta sobre os riscos do populismo para a democracia, que é associado a posturas “extremistas” e demagógicas. Contudo, para Chantal Mouffe, renomada teórica política belga, o populismo, e particularmente um populismo de esquerda, longe de ser uma ameaça para a democracia, é a melhor chance que temos para restabelecê-la e aprofundá-la.
Conversamos com ela a respeito da natureza da democracia, sobre as recentes jornadas de protesto social no país, sobre as possibilidades de consolidar a paz na Colômbia e sobre a relação entre a política e as práticas artísticas e culturais.
Chantal Mouffe estudou Ciência Política e Filosofia nas universidades de Lovaina, Paris e Essex. É professora de teoria política na Universidade de Westminster, Reino Unido. Lecionou em muitas universidades da Europa, América do Norte e América Latina. Seu livro mais recente é Por um populismo de esquerda.
Mouffe dará a conferência Afetos, política agonística e práticas artísticas, no dia 23 de setembro, às 13h [no horário colombiano]. Será a segunda conferência de Argumentos, ciclo acadêmico organizado por Fragmentos, Espaço de Arte e Memória e a Direção de Patrimônio Cultural da Universidade Nacional da Colômbia. O evento será transmitido nas páginas do Facebook das duas instituições.
A entrevista é de Julián Harruch, publicada por El Espectador, 09-12-2021. A tradução é do Cepat.
Na Colômbia, um tema que causa muita preocupação em diversos setores políticos é a “polarização” do debate público, que é concebido como um grave risco para a democracia, pois, argumenta-se, pode conduzir à violência política. Você considera que a polarização é necessariamente negativa para a democracia?
As concepções consensualistas da democracia, ou seja, aquelas que veem na conciliação e na erradicação dos conflitos o objetivo da política democrática, de algum modo sempre são, na realidade, uma defesa da ordem estabelecida, porque não reconhecem a pluralidade de interesses em jogo. Ao contrário, a concepção de democracia que eu defendo, e que chamo de “agonística”, consiste em abrir a possibilidade de expressão para vozes e interesses distintos no interior de um marco de instituições que permitam o confronto, sem que se chegue à guerra civil.
Muitos liberais pensam que a polarização necessariamente destrói a democracia, que a polarização é negativa em si. Eu não gosto do termo. Eu prefiro falar em uma fronteira política que envolve a distinção entre um “eles” e um “nós”, e a questão é como imaginar um conjunto de instituições e formas políticas que permitam essa distinção a partir de uma visão de uma vida comum, apesar das diferenças.
A ideia de que a polarização é em si uma coisa negativa (ainda que esteja correto que envolve um risco) e de que o objetivo da democracia consiste em estabelecer um consenso omite o que é fundamental na política, que é o caráter inerradicável do conflito. A democracia é reconhecer a diferença, o pluralismo de vozes e o fato de que essas vozes não podem ser harmonizadas.
Aqueles que defendem uma concepção consensualista da democracia dizem que não se deve excluir, mas pretender não excluir ninguém é uma maneira de excluir todo um setor ao qual não será dado voz. Em nome da inclusão, o que se faz é estabelecer uma fronteira com os que não têm direito a falar. Isso não permite uma concepção progressista da democracia.
Que fatores considera que são importantes para que, em um contexto com a história de guerra política como é o caso da Colômbia, sejam consolidadas instituições e práticas políticas de caráter agonístico, para usar seus termos, de modo que consigamos evitar que os conflitos desemboquem em uma nova guerra?
Existem os acordos de paz, o problema é que é preciso que sejam colocados em prática. Com a vitória de Iván Duque, houve um retrocesso muito forte na Colômbia. Fui convidada pela Universidade de Antioquia justamente após a assinatura do Acordo de Paz, em 2016, e havia um entusiasmo impressionante. Todo mundo dizia que se iniciava uma nova etapa. Houve um momento com uma possibilidade real de uma política agonística. E pela reação do uribismo essa possibilidade foi fechada.
Isso de alguma maneira pode explicar um pouco o que está acontecendo hoje, a rejeição e o descrédito dos partidos tradicionais e da velha política, porque as pessoas tiveram essa esperança que depois foi frustrada. Isso acentuou uma atitude negativa em relação às instituições no movimento social.
Mas nem tudo é negativo. Não é uma situação na qual é preciso começar do nada. É verdade que é difícil reabrir a janela de oportunidade aberta pelo processo de paz e que foi fechada durante o último governo. Mas já existem sementes de algo novo. E, afinal, assim é a política: avanço, retrocesso, avanço, retrocesso.
Justamente, em relação ao movimento de protesto social que sacudiu a Colômbia nos primeiros meses de 2021, há uma tensão interessante. Por um lado, as instituições da democracia liberal e os partidos políticos sofrem um tremendo descrédito entre as pessoas, particularmente entre os jovens. Mas, por outro, também vimos nesses protestos, em particular entre a juventude, um forte desejo de participar efetivamente do processo político. Como considera que podemos interpretar essa tensão? E que conexões tem com outros movimentos de protesto recentes no mundo?
Esse movimento continua, não terminou. Por outro lado, não concordo com a premissa de sua pergunta, porque acredito que há uma rejeição, digamos, da democracia liberal realmente existente na Colômbia, mas não do ideal de democracia liberal representativa. Há uma rejeição ao modo como está sendo praticada e ao fato, fundamentalmente, dessa democracia não ser realmente suficientemente agonística.
O que se quer não é um modelo diferente de democracia, mas uma verdadeira democracia liberal representativa. O que existe na Colômbia é uma crítica ao velho sistema de partidos e da velha política. No mais, não é que as pessoas não esperem nada da política, mas, sim, que existe uma demanda muito positiva por um novo tipo de política.
Por outro lado, o que me parece muito interessante sobre a situação na Colômbia é que muitas possibilidades se abrem, porque, segundo o que leio, quem hoje está mais inclinado a vencer a presidência em 2022 é Petro (1)Para mim, é uma enorme promessa para a Colômbia, caso não seja impedido de chegar às eleições.
Petro para mim é alguém que representa exatamente o tipo de populismo de esquerda que eu defendo. Colômbia Humana não é um partido tradicional, mas um movimento social que constrói uma vontade coletiva articulando o feminismo, o movimento camponês, o movimento indígena, etc. Seu triunfo seria o início de uma etapa completamente nova para a Colômbia.
Outro caso que me parece muito interessante é o do Chile. A mobilização popular para acabar com a constituição de Pinochet foi incrível. Muitas pessoas que conheço no Chile também estão dizendo que existe uma possibilidade real de que Boric (2), o candidato da Frente Ampla, vença as eleições em novembro. Isso também seria o início de uma época. Imagine Petro na Colômbia e Boric no Chile. Seria um avanço formidável para a política democrática na América Latina. Sendo assim, não se deve ser pessimista.
No próximo dia 23 de setembro, você dará uma conferência em ‘Fragmentos, Espaço de Arte e Memória’, que é uma instituição cultural criada a partir dos acordos de paz. Qual é o papel das artes e instituições culturais na construção de uma sociedade que possa lidar com seus conflitos de forma agonística? E, de modo geral, que papel desempenham na constituição de qualquer ordem política?
As práticas culturais e artísticas (o teatro, o cinema, as artes visuais, etc.) são lugares de produção da subjetividade. E por essa razão possuem um papel muito importante na constituição do que Gramsci chama de senso comum, a saber, o modo como se vê o que esperar, o que é possível. A aceitação de certa ordem, como a ordem neoliberal na atualidade, é algo que tem a ver com um regime de desejos e de visões do possível, e é aí que os artistas podem atuar.
As práticas artísticas permitem a reprodução da ordem existente, pois não são por natureza transgressoras, mas também sua transformação. E isso porque a arte nos permite ver as coisas de outra forma, permite criarmos uma lacuna no consenso social e dar voz aos excluídos.
Para estabelecer uma ruptura com o neoliberalismo, é preciso criar uma vontade coletiva, e para isso é preciso transformar as subjetividades, criar novos sujeitos políticos que desejem uma ordem diferente, que não aceitem passivamente a ordem imposta. Para mim, as práticas artísticas estão na vanguarda dessa tarefa, pois podem contribuir para a construção de outros mundos possíveis, com formas de subjetividade que permitam que as pessoas vejam as coisas de outra forma, comecem a desejar uma ordem diferente e agir para a realização dessa ordem.
1.- Gustavo Francisco Petro Urrego (Ciénaga de Oro, Córdoba, 19 de abril de 1960) é um político e economista colombiano de ascendência italiana, ex-integrante da extinta guerrilha M-19 e atual senador da República pelo período 2018- 2022, fundador do movimento político Colombia Humana.
2.- Gabriel Boric, nascido a 11 de Fevereiro de 1986 em Punta Arenas, é um político chileno. Uma figura do movimento estudantil de 2011, é deputado desde 2014 e é candidato às eleições presidenciais de 2021.
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“Democracia é reconhecer que há vozes que não podem ser harmonizadas”. Entrevista com Chantal Mouffe - Instituto Humanitas Unisinos - IHU