14 Junho 2024
Poder econômico e mídia ampliam pressões para corte de gastos sociais — inclusive no SUS. Fazenda tenta um truque semântico. Lula prometeu reforçar investimentos públicos na área. Hoje, eles são menos de 30% da despesa com juros.
A entrevista é de Gabriela Leite, publicada por Outras Palavras, 13-06-2024.
O governo eleito para representar os anseios da população e reverter os desmontes do Estado está abrindo brechas críticas para a interferência do “andar de cima”. Um dos sinais dessa tendência está nos pisos constitucionais da Saúde e da Educação. Dois movimentos simultâneos, ocorridos nos últimos dias, mostram que há um grave conflito em relação ao orçamento público. Ele originou-se com a aprovação do Arcabouço Fiscal, em 2023.
Durante a mesma tarde em que a Frente pela Vida, rede de movimentos sociais pela saúde pública, comemorava um comprometimento do Ministério da Fazenda de que não havia a intenção de alterar os recursos mínimos destinados à Saúde, a mídia comercial publicava matérias com informações que iam no sentido oposto. A promessa de manter o piso foi dada durante uma audiência com a organização, na segunda-feira, em que alguns de seus principais líderes se reuniram com subsecretários da pasta. Menos de 24 horas depois, em entrevista à Folha, o ministro Fernando Haddad apresentou propostas que comprometem o orçamento do SUS e da Educação, a pretexto de manter o “ajuste fiscal".
Segundo a Constituição Federal, os recursos destinados à Saúde no Brasil devem ser de, no mínimo, 15% da receita corrente líquida da União. Com a Emenda Constitucional 95, o “teto de gastos”, aprovada sob o governo de Michel Temer, essa regra foi quebrada. Era promessa eleitoral de Lula acabar com o congelamento dos gastos sociais. O ministério da Fazenda propôs e conseguiu aprovar, em seu lugar, o chamado Arcabouço Fiscal. Segundo a proposta, o gasto total da União deve crescer no máximo 2,5% ano – mesmo que a arrecadação aumente mais. Estão excluídos da conta os juros, pagos essencialmente ao 0,1% mais ricos. Nenhum limite legal os restringe.
O problema que criado por esse novo teto já havia sido apontado por entidades ligadas à defesa do SUS em 2023. O piso da Saúde e da Educação acabaria estrangulando as despesas que, ao contrário da Saúde (e da Educação), não são protegidas. Desde então, a Fazenda busca meios de resolver a equação – em geral, às custas dos gastos sociais. Matérias da mídia comercial aventam a possibilidade de acabar com os mínimos constitucionais há meses. Nesta semana, além da entrevista de Haddad, a notícia começou a aparecer até em artigo da Agência Brasil, mídia oficial do governo.
O artifício, agora, é um truque semântico. Na fala dos defensores da proposta, o piso não acabaria — mas seria modulado por um “teto” – os mesmos 2,5% do Arcabouço Fiscal. A proposta foi apresentada pelo próprio ministro Haddad, na entrevista à Folha. Mas o que ela significa?
Nossa redação elaborou uma analogia, para facilitar a compreensão. Imagine que um cidadão comprometa-se com sua família a reservar ao menos 15% do salário para os gastos com supermercado. Um piso. Ele ganha R$ 5 mil e gasta R$ 750 com essa despesa. Em determinado momento, percebe que não será capaz de cumprir a regra, pois está gastando demais com apostas esportivas. Porém, engana aos familiares e a si mesmo, dizendo que os 15% permanecerão… mas o valor só poderá crescer 2,5% ao ano. Chama a isso de “austeridade”. No ano seguinte, ele consegue um emprego melhor e passa a ganhar R$ 6 mil – um crescimento de 20%. Mas ao supermercado, segundo as novas condições, só poderá destinar mais 2,5% — ou R$ 768,75. Este valor representará apenas 12,81% de seu salário. Ou seja, o piso estará quebrado. As apostas continuam. Os cassinos digitais agradecem.
Em entrevista que você lê abaixo, o presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES), Francisco Funcia, analisou o risco ao qual a Saúde está submetida, caso o projeto vá em frente. Ele alerta: a área não está sobrefinanciada, a ponto de podermos pensar em economizar com ela. Pelo contrário. Há um subfinanciamento crônico do SUS, desde seu nascimento, que nunca permitiu que fosse implementado a contento. E, desde o “teto de gastos”, há um desfinanciamento – que Lula prometeu extinguir.
Segundo os cálculos da ABrES, se essa nova regra fosse aplicada ao ano de 2024, a Saúde teria 24 bilhões de reais a menos. Para se ter ideia, trata-se de mais da metade da perda causada pelo “teto de gastos” em 2022, último ano do governo Bolsonaro. O Brasil pode se dar ao luxo de restringir o crescimento da Saúde, depois do que passou com a pandemia e com desastres iminentes como o que aconteceu com as enchentes no Rio Grande do Sul, em maio?
Como explica Funcia, o investimento com Saúde não é como alguns outros. Gastos com o SUS permitem uma vida mais digna aos brasileiros. O impacto disso na economia é notável. Os recursos despendidos com a indústria da saúde, medicamentos, insumos e outras tecnologias são benéficos para o país. Despesas com recursos humanos sustentam mais de 3 milhões de trabalhadores do sistema público de saúde.
O SUS, merecidamente reconhecido pela população brasileira na pandemia, está longe de funcionar em sua forma ideal. E apenas com um financiamento mais robusto ele poderá garantir saúde para todos.
“São essas questões que a gente precisa discutir e colocar na mesa. Só faz sentido reduzir algo que está elevado. Não é o caso da Saúde. No Brasil, são investidos apenas 4 reais per capita por dia com ela, na soma do gasto da União em estados e municípios – sendo que o governo federal gasta algo entre R$ 1,60 e R$ 1,70. É isso que querem reduzir”, alerta Funcia.
Em diversas oportunidades, Lula encorajou a população brasileira a exigir seus direitos perante o governo. O presidente sabe que o país atravessa um momento muito complexo, e sofre pressão extrema de diversos setores do empresariado e do rentismo. É papel dos movimentos sociais cobrá-lo, para que a balança não pese tanto para o lado dos mais fortes.
“A gente não pode perder de vista que o que está se buscando, com essa redução do gasto da saúde e da educação, é o superávit primário. Isso para pagar juros da dívida. Não tem o menor sentido: o Brasil quer reduzir o direito à saúde de 100% da população para favorecer alguns poucos milhares de rentistas”, adverte o economista. Todo o orçamento da Saúde, em 2024 — salários, gastos correntes e investimentos — está limitado a R$ 212,15 bilhões. Nos doze meses terminados em abril deste ano, o montante destinado aos juros chegou a R$ 776,3 bilhões, ou 3,6 vezes mais.
Fale um pouco sobre a proposta de Haddad para os pisos.
Há duas propostas que têm sido levantadas. A primeira diz respeito a limitar o crescimento. Eu tenho dito que se a gente fosse criar um slogan para nossa posição, seria: “não desvincular nem reduzir recursos para a saúde”. Porque não basta só manter a vinculação e depois estabelecer uma mudança que diz: o piso pode ser X, mas está condicionado a um crescimento máximo de 2,5% ao ano.
Isso significa mexer no piso para sua redução. Não basta manter a vinculação, temos que impedir a redução, lutar para que não tenha desvinculação e para que não haja redução.
Para esclarecer o problema, a ABrES fez uma simulação. Supondo que em 2024 essa regra fosse entrar em vigor, a Saúde não teria os 218 bilhões de piso – que é o calculado com a base de pelo 15% da receita corrente líquida –, mas sim 194 bilhões. Ou seja, 24 bilhões a menos.
Seria um retorno a um cálculo que fazíamos ao analisar as perdas com a Emenda Constitucional 95, o “teto de gastos”. O piso da saúde foi suspenso. A metodologia que usávamos era fazer a seguinte conta: se tivesse mantido o piso, qual seria o orçamento? E então, compará-lo com o que se aplicou e ter, como resultado, o valor da perda.
Foram 70 bilhões de perdas entre 2018 e 2022, segundo o cálculo da AbrES.
Em perspectiva, os 24 bilhões que vocês calcularam com a limitação proposta agora é muito significativa então.
É importante ressaltar que as perdas não foram lineares ao longo dos cinco anos. Se fosse dividir igualmente, seria uma defasagem de 14 bilhões por ano. Mas a perda de 2022 foi, sozinha, de 46 bilhões. Então, se a gente quiser aproximar, representaria cerca de metade do que se perdeu em 2022.
Eu temo que alguns setores adotem a retórica de que não se está perdendo, porque está crescendo 2,5%. Se a regra for adotada, haverá perda sim, por causa do que acabei de explicar.
A segunda proposta aventada, segundo a entrevista de Haddad, é mudar o conceito de Receita Corrente Líquida. Significa reduzir aquelas receitas que constam na lei do Arcabouço Fiscal. São receitas para reduzir, para atingir a meta do ajuste da meta fiscal, anualmente.
Eles propõem reduzir algumas receitas, para comparar o crescimento da receita de um ano para o outro. É uma alteração do conceito de receita primária, segundo a lei do Arcabouço Fiscal. Nessa situação, a perda seria maior, segundo os cálculos da AbrES, da ordem de 30 bilhões. Em vez de 218 bilhões de reais de piso, em 2024, teríamos 188 bilhões.
O que essas perdas representam para o SUS?
Quando a gente fala em saúde, trata-se de um conceito completamente diferente de outras áreas de atuação. Diz respeito ao direito à vida, em primeiro lugar. Em segundo, gasto em saúde tem um efeito dinâmico sobre a economia. O gasto não é só com atenção à saúde diretamente, tem o gasto com o Complexo Econômico e Industrial da Saúde, que faz parte desse conceito amplo de atenção à saúde, e gera emprego e renda, tem efeito multiplicador para a economia.
Quando as condições de saúde da população são mais adequadas, é possível aprimorar cada vez mais a atenção à saúde, e assim aumenta a produtividade da economia – que gera um impacto positivo para o setor privado também, para a economia como um todo, para o crescimento econômico.
O que o governo federal faz quando investe em saúde? Paga funcionários, que com esse salário vão consumir e ajudar a manter a atividade de consumo da economia. Quando o governo gasta com a compra de remédios, insumos, materiais etc., que são produzidos pelo setor privado, também gera um efeito positivo sobre o setor privado.
Por último, quando se analisa o gasto em saúde do setor público, do governo federal, dois terços dos orçamentos do Ministério da Saúde são transferências para estados e municípios. Portanto, se você reduz o recurso federal da saúde, vai reduzir as transferências para estados e municípios, que as aplicam no SUS.
Portanto, isso vai gerar um efeito em cadeia, certo? Essa decisão vai deteriorar as condições de saúde da população de uma maneira muito grave, vai prejudicar a capacidade de financiamento de estados e municípios. Do ponto de vista daquilo que chamo de capacidade de tributar, os municípios são aqueles que têm menos competência de tributar pela regra constitucional.
Esse é um dado importante também: mais da metade de tudo que se arrecada de tributos no Brasil, depois que são feitas as transferências definidas na Constituição, o governo federal ainda fica com 57% da arrecadação. E a participação do governo federal no gasto de saúde é de 42%. Ou seja, ele fica com mais da metade de tudo que se arrecadou depois que já fez as transferências, e gasta menos da metade.
E os municípios representam só 8% do arrecadado por meio de impostos. São o elo fraco, do ponto de vista dessa capacidade de tributar, e são quem está bancando, hoje, um terço do gasto com saúde. Se for reduzido o gasto federal, o município não terá mais condições de compensar com gasto adicional.
São essas questões que a gente precisa discutir e colocar na mesa. Só faz sentido reduzir algo que está elevado. Não é o caso da saúde. No Brasil, são investidos apenas 4 reais per capita por dia com saúde, na soma do gasto da União em estados e municípios – sendo que o governo federal gasta algo entre R$ 1,60 e R$ 1,70. É isso que querem reduzir.
Ou seja, tem que aumentar muito o gasto, não limitar. Então, o que é recomendável nesse momento? Nós da Frente pela Vida defendemos mais recursos. Mas, nesse momento, nós entendemos que temos que defender ao menos o que já temos. Depois, num outro contexto, a gente volta a discutir.
Agora, querer tirar o que tem? É isso que é inaceitável.
Como foi a reunião de segunda-feira com a equipe de Fernando Haddad?
Na segunda, nós tivemos uma audiência no Ministério da Fazenda que considerei bastante positiva. Foi uma audiência na área econômica, em que nós, enquanto Frente Pela Vida, junto do Centro Conselho Nacional de Saúde, pudemos colocar a nossa posição.
Pudemos escutar o que de concreto havia do Ministério da Fazenda em relação às notícias que estavam sendo divulgadas, que apontavam para estudos de redução do valor do piso da Saúde e da Educação, para atender as necessidades de cumprimento da meta fiscal.
Ter escutado de dois representantes do Ministério da Fazenda, duas pessoas que fazem parte da linha de decisão, que não havia nenhuma intenção para redução do piso, foi muito positivo. E nós tivemos oportunidade de colocar algumas questões.
Falamos sobre o histórico da questão, de qual é o papel do Sistema Único de Saúde, a perspectiva do direito de cidadania, resgatamos qual foi a importância do SUS na pandemia, por que o financiamento é importante para fortalecimento do SUS.
Foi uma oportunidade de levar para a Fazenda uma visão da sociedade em relação ao Sistema Único de Saúde e a preocupação com relação a medidas que buscam a redução do piso, e também foi muito positivo ter ouvido dos representantes do Ministério da Fazenda.
Eles tiveram a iniciativa de nos chamar para construir um canal direto com eles, para nós podermos levar nossas reivindicações. Afirmaram que vão nos buscar quando quiserem mais informações. Isso também foi muito positivo, ter um canal de diálogo com a área econômica.
Mas então vamos para a página dois. No dia seguinte, nós ficamos muito surpreendidos com a fala do ministro da Fazenda, de que está levando para o Lula as propostas de revisão para atingir a “meta fiscal”.
É um fato que considero importante, nós estarmos na audiência de segunda-feira. Porque agora temos duas posições: a posição oficial que nos foi passada na reunião, de que não havia intenção do Ministério da Fazenda em mudar esse recurso; e a situação que está sendo colocada desde terça, do que seria levado para o presidente da República.
Como você avalia essa mudança tão rápida de posições no Ministério da Fazenda?
Eu acho que existem contradições, não há uma posição única. Acho que há uma pressão muito grande dos segmentos conservadores, da sociedade, do mercado, representados no Congresso. E o que a gente percebe é que o governo fez um movimento, no início da gestão, até antes mesmo de tomar posse, de colocar recursos para a saúde, de valorizar.
E aí, em 2024, o governo retomou o piso de 15% da receita corrente líquida para a saúde. O orçamento foi para 218 bilhões em 2024, que representou, em relação àquilo que tinha em 2022, 68 bilhões a mais. Isso não é algo desprezível, mostra o compromisso.
Mas há outros problemas que precisamos rever. Só para te dar um número: em emendas parlamentares, na média de 2008 a 2013, em valores nominais, havia 1 bilhão. No ano passado foi para 16 bilhões. Ou seja, cresceu 16 vezes em 10 anos. O orçamento da saúde cresceu, talvez, 6 vezes. São coisas que a gente precisa ponderar. Mas não tem dinheiro sobrando para tirar da saúde. Não se aplica demasiadamente na saúde – e agora vamos ter que reduzir?
Não. O subfinanciamento do SUS é crônico. Passou por um processo de desfinanciamento brutal com a Emenda 95. O que chamo de desfinanciamento é essa perda de recursos com o congelamento dos gastos sociais. E o subfinanciamento crônico significa que o SUS, por conta dessa competência de tributários, nunca teve recursos adequados e suficientes para cumprir o preceito funcional, de que a saúde é direito de todos os deveres do Estado.
E agora vem uma tentativa de dizer que, para fazer o “ajuste fiscal”, é preciso tirar recursos. Por que não se pressiona para aumentar a tributação de quem tem mais capacidade de renda e de pagamento? Por que não há uma ação mais forte na cobrança da dívida ativa, que são os tributos que estão atrasados, na casa de trilhões de reais?
Estamos vivendo uma situação em precisaríamos rever a decisão do “ajuste fiscal”. Por que só pelo lado da despesa, quando a receita teve um comportamento muito ruim nos últimos 10 anos?
A gente também não pode perder de vista que o que está se buscando, com essa redução do gasto da saúde e da educação, é ter superávit primário. Isso para pagar juros da dívida. Por que não se discute uma revisão dessa dívida? O Brasil pagou, de juros da dívida, no ano passado, mais de 700 bilhões de reais.
Não tem o menor sentido: o Brasil quer reduzir o direito à saúde de 100% da população para favorecer alguns poucos milhares de rentistas. Por isso que acho que o presidente da República não vai aprovar essa medida proposta por Haddad.
São essas questões que precisam vir para a mesa, para a discussão.
Qual o papel dos movimentos sociais da Frente Pela Vida se esse projeto for para frente?
A gente quer que o governo abra para a sociedade qual é o problema que está colocado, inclusive em relação à crise com o Congresso. E então temos que nos mobilizar. Eu acho que existe uma falha de uma maneira geral, dos movimentos, de não haver uma tradição na defesa do aumento de receita.
Porque tudo que envolve imposto soa impopular. Mas é preciso mostrar que há propostas de mudança de tributação que vão na linha da justiça fiscal, de onerar mais quem tem mais capacidade de pagamento. Ao tornar tributação mais justa, se fortalece a capacidade de financiamento das políticas públicas. E fortalecer política pública é beneficiar todo mundo, inclusive quem está sendo tributado.
Essa é a lógica do princípio da tributação: paga mais aquele que tem mais capacidade contributiva. Acho que nós também temos que ter ações mais fortes na defesa de mostrar que é possível melhorar a receita.
Agora, temos que ter a ação bastante forte para impedir que esses segmentos mais conservadores do mercado venham tentar impor essa visão de que tem que ter “ajuste fiscal” cortando despesa, quaisquer que sejam.
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Lula entre a Saúde e os rentistas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU