26 Setembro 2023
“Erasmo Dias não pode ser nome de coisa alguma”, destacou o jornalista Juca Kfouri contra a homenagem do governador ao coronel expoente da ditadura, responsável pela invasão da PUC há 46 anos. Nome da ex-reitora foi saudado em placa na rua por sua atuação e coragem.
A reportagem é de Clara Assunção, publicada por Rede Brasil Atual, 25-09-2023.
A esquina da rua Bartira com a Monte Alegre, em Perdizes, na zona oeste de São Paulo, foi renomeada simbolicamente nesta segunda-feira (25) com o nome da ex-reitora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Nadir Kfouri, que agora dá nome à placa do logradouro com a expressão: “Assistente social e professora, foi a primeira mulher no mundo a ser reitora de uma universidade católica, a PUC-SP, por duas gestões. Junto com Dom Paulo Evaristo Arns, enfrentou a ditadura na invasão da PUC-SP de 1977”.
A mudança, logo na esquina da instituição, é parte de uma provocação pública ao governador Tarcísio de Freitas pela homenagem prestada ao coronel Erasmo Dias, expoente da ditadura e que, há exatamente 46 anos, ordenou a invasão ilegal e truculenta da universidade.
Reitora da universidade na época da ação, Nadir Kfouri saiu em defesa da PUC e de seus alunos, desafiando o então secretário de Segurança Pública de São Paulo, negando-lhe um aperto de mão. “Nāo dou a mão a assassinos”, afirmou a Nadir. O gesto de coragem e resistência foi resgatado na cerimônia que teve início pela manhã sob o tema “Lembrar é resistir”. Realizado anualmente, o ato de memória como forma de resistência tornou-se ainda mais importante neste ano com a homenagem de Tarcísio a Dias.
Em junho, a gestão bolsonarista em São Paulo promulgou uma lei estabelecendo que um entroncamento de rodovias localizado na cidade natal do homenageado, Paraguaçu Paulista, no interior do estado, passe a ser denominado “Deputado Erasmo Dias”. A medida provocou protestos e parlamentares questionaram a constitucionalidade da lei no Ministério Público de São Paulo. Apesar da reação, Tarcísio seguiu com a legislação, alegando ter análise “técnica e jurídica”.
Um desagravo à PUC, à democracia brasileira e à inesquecível Nadir Kfouri, como destacou o presidente da Comissão Arns e advogado criminal, José Carlos Dias. Conhecido defensor de presos políticos na ditadura civil-militar, José Carlos abriu seu discurso lembrando que o ditador vociferava contra atos públicos na PUC-SP no dia da invasão. Aquele 22 de setembro de 1977 ficou marcado como a última grande operação da ditadura contra o movimento estudantil. Conforme lembrou o presidente da Comissão Arns, Dias estava enfurecido que a União Nacional dos Estudantes (UNE), na ilegalidade na época, articulava-se, com forte apoio, para se reconstruir.
O coronel da ditadura, contudo, também marcou sua trajetória na defesa de atos antidemocráticos com falas defendendo a tortura e até versão oficial do regime militar, já desmentida, de que o jornalista Vladimir Herzog, assassinado nas dependências do DOI-Codi, cometeu suicídio.
“(Ele) não pode ser homenageado sem que protestemos”, contestou José Carlos. “Nós temos o dever de lembrar quem ele foi e o que ele fez. Erasmo Dias representou o espírito antidemocrático e violento daqueles anos, assim como o governador Tarcísio representa hoje esse mesmo espírito de bolsonarimo em São Paulo. Seu chefe, o ex-presidente (Jair Bolsonaro) , endeusava o coronel Brilhante Ustra. E agora seu pupilo, o governador carioca de São Paulo, homenageia o feroz e truculento coronel Erasmo Dias. (…) Repudiamos homenagem de fascistas a fascistas”, afirmou o advogado.
O ato contou com representantes de diversas entidades em defesa da democracia e parlamentares que também incluíram no protesto a denúncia de violência perpetradas pelo Estado de São Paulo hoje. Entre elas, o caso da chacina no Guarujá, na baixada santista, que assassinou 27 pessoas. A letalidade policial em comunidades do Guarujá e de Santos é resultado da Operação Escudo, deflagrada no final de julho, como resposta à morte do soldado Patrick Reis, da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota).
“A nossa triste história de abusos, ditadores, escravidão, de pobreza e de fome, essa verdades precisam ser reveladas para que delas nos envergonhemos e contra elas continuemos nossa luta. Esse foi o escopo da criação de muitas Comissões da Verdade, cujas recomendações continuam não sendo seguidas”, completou José Carlos.
A presidenta da UNE, Manuella Mirella, também ressaltou que, 46 anos depois da invasão da PUC, ainda existem no Brasil aqueles que atentam contra a democracia. Por isso que nós, da UNE, reafirmamos que queremos a punição para os golpistas do 8 de janeiro. Sem anistia para quem ataca nossa democracia”, cobrou.
Ao prestar uma homenagem à tia, o jornalista Juca Kfouri classificou como uma “heresia” lembrar Nadir Kfouri e Dom Paulo Evaristo Arns no mesmo evento em que se fala de Erasmo Dias. “Ele não pode estar no mesmo lugar”, contestou, emocionado. Juca ainda lembrou que a figura do ditador marcou sua família uma segunda vez quando, em 1986, seu pai, um procurador de Justiça, foi assassinado durante uma tentativa de assalto na rua em que a família morava.
"É necessário, mais do que nunca, que a gente não permita que Erasmo Dias seja nome de coisa alguma em São Paulo ou no Brasil", afirmou Juca. (Foto: TV PUC | Reprodução)
O crime acabou sendo alvo de uma campanha sensacionalista pela pena de morte no Brasil, sob forte oposição da família Kfouri. Anos depois, durante um debate na Rádio Globo, Erasmo Dias trouxe à tona novamente a situação para dizer que Juca tinha “sangue de barata” por não querer a pena de morte.
“E eu tive a oportunidade de dizer a ele que eu podia ter sangue de barata, mas que ele tinha sangue de covardes, que ele tinha sangue de torturadores. Então eu queria dizer isso, que é necessário, mais do que nunca, que a gente não permita que Erasmo Dias seja nome de coisa alguma em São Paulo ou no Brasil. É necessário que a gente lute pela desmilitarização das PMs (polícias militares). Como foi dito aqui hoje, temos notícias de que inocentes foram torturados e mortos no Guarujá por PMs. E é necessário dizer sempre viva a PUC e viva os estudantes do Brasil”, compartilhou o jornalista.
Atual reitora da universidade, Maria Amalia Andery advertiu que nem todos “passam na pele certos momentos. Especialmente aqueles que são fundamentais para a construção de uma sociedade. Por isso que lembrar é resistir”, explicou a reitora. “Porque lembrar é contar a histórica, trazer a experiência contada a partir das gerações para todos aqueles que não viveram. E, assim, construir uma nova experiência”.
Maria Amalia concluiu, frisando que o principal valor da democracia, grande homenageada do evento, “é saber construir um mundo em que há memória que, de alguma forma, nos educa”.
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Com homenagem a Nadir Kfouri, ato na PUC-SP termina com provocação pública a Tarcísio de Freitas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU