30 Junho 2023
De: Faculdade Teológica Pugliese, Pontifícia Faculdade Teológica da Itália Meridional, Institut Catholique de la Méditerranée-Marseille, Grupo de Pesquisa "O Mediterrâneo como lugar teológico".
Nos dias 19 e 20 de junho foi realizada em Molfetta uma oficina que reuniu teólogos e pastores em discussões para a elaboração de um documento que expresse programaticamente as linhas de uma teologia do Mediterrâneo: as suas peculiaridades, o método, o contributo que pode dar às igrejas mediterrânicas e à construção de um Mediterrâneo de paz. No âmbito dessa reflexão, apareceu com força a ideia de uma teologia não neutra que saiba contribuir para interpretar o que está acontecendo com espírito crítico e profético à luz do Evangelho. Assim nasceu o Apelo por um Mediterrâneo de paz assinado pelos teólogos e pastores presentes. Uma narração do Mediterrâneo que, ao denunciar o naufrágio da civilização que nele está ocorrendo, abre-se ao reconhecimento do desejo e da promessa de fraternidade encerrados nesse mar.
O documento é publicado por Settimana News, 22-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Não se esqueçam da hospitalidade; foi praticando-a que, sem o saber alguns acolheram anjos" (Hb 13,1).
Vocês ouviram que foi dito que este mar é um mar traiçoeiro, mas não é assim.
Vocês ouviram que foi dito que este mar é um mar de morte, mas não precisa ser assim.
Vocês ouviram que foi dito que este mar é um mar de poucos, mas não pode ser assim.
Diante do enésimo massacre ocorrido nas águas do Mediterrâneo, como teólogos e teólogas de diversas margens do Mediterrâneo, não podemos nos calar. Sentimo-nos desafiados a tomar partido em relação a essa história de mortes, rejeições, trágicas desigualdades. Estamos convencidos de que uma outra narrativa do Mediterrâneo deve ser buscada.
Este Mediterrâneo, os seus rostos, as suas histórias, os gritos que se erguem deste mar, nos interpelam.
A teologia apresenta-se com um olhar de esperança, que não se distancia do túmulo, dos túmulos que esse mar representa, mas procura interpretá-los: entre memória e profecia.
Para nós, isso significa colocarmo-nos na escuta. Na escuta de Deus, a ponto de ouvir com Ele o grito desses povos; na escuta do grito desses povos até insuflar neles a vontade à qual Deus nos chama, como crentes e como seres humanos. Como nos indicou o Concílio Vaticano II, o gênero humano vive hoje um novo período da sua história: uma verdadeira transformação sociocultural, mutações profundas, questionamentos que tocam o sentido do humano ao lado de aspirações cada vez mais universais e que pedem ao pensamento crente para perscrutar os sinais dos tempos em tais acontecimentos, interpretando-os à luz do Evangelho (cf.GS).
Sentimos a urgência de uma teologia capaz de acolher a instância profética contida no grito de dor e nos pedidos de justiça que vêm dos tantos náufragos da história: daqueles que deixam os seus países empobrecidos e devastados por conflitos alimentados pelos interesses dos poderosos do mundo; daqueles que são explorados e humilhados em sua dignidade; daqueles que fogem da fome também causada pela mudança climática; mas também a instância encerrada no grito da terra e de um mar cada vez mais abalados por uma economia predatória.
Sabemos que devemos partir dessa escuta: do pranto e do silêncio das histórias dos submersos e não salvos, das vozes de quem acolhe ou rejeita nesse perder-se de fronteiras que também estão em caminho.
Queremos nos colocar diante de tudo isso com o estilo de uma teologia humilde que não dá respostas prontas, mas se deixa habitar pelas provocações desse mar.
E é precisamente a categoria do naufrágio que nos pode ajudar a reinterpretar o Mediterrâneo e a dar vida a novas narrativas.
Com os tantos que veem naufragar a sua esperança de uma vida melhor, o seu direito à liberdade, também nós e a nossa humanidade naufragamos. Estamos em um naufrágio de civilização. Nós todos somos náufragos (todos nós e não só alguns) e isso já rompe as fronteiras que gostaríamos de enrijecer.
O Mediterrâneo é um lugar de naufrágios. Mas na esperança que escapou ao desespero dos migrantes que desembarcam nas nossas costas, nos seus olhos que procuram e pedem salvação e futuro, justamente aí e já aí podemos perceber os sinais do Reino que também nós estamos procurando. A esperança vem do outro, daquele outro que acreditamos sermos nós a acolher, mas que talvez esteja nos salvando.
A profecia que surge dos tantos dramas do Mediterrâneo pede que se reencontre a identidade mais profunda desse mar de fronteiras móveis, impossível de encerrar numa definição, numa perspectiva cultural, que não pode ser de poucos, mas dos muitos que se debruçam sobre ele, “mare nostrum” em todas as línguas dos povos do Mediterrâneo.
Espaço de interconexões, encruzilhada de percursos, o Mediterrâneo testemunha a fecundidade da contaminação geradora de especificidades culturais. Não existe uma identidade cultural pura: é isso que o Mediterrâneo conta.
Acolher o outro é então um ato de justiça e de reconhecimento daquilo que somos nesse nosso mar, mar de mestiçagem. A instância profética está na hospitalidade que se torna paradigma cultural e de pensamento, critério de vida e de ação social. Reconhecer o outro, as nossas diferenças, as nossas contaminações, não pode ser considerado uma escolha opcional. Nesse reconhecimento está a nossa humanidade, mas também a própria dinâmica da Revelação: Deus é diálogo e o diálogo é o lugar de Deus.
Sentimos que devemos pedir perdão pelos fechamentos justificados em nome da fé, pelos conflitos sustentados por motivos religiosos, pela falta de coragem em denunciar os males provocados por sistemas ideológicos e de poder. Antes, gostaríamos de deixar-nos ensinar pelas vivências de tantas comunidades que se deixaram renovar e converter pelo acolhimento do estrangeiro, que redescobriram o sentido vivo da sua fé tornando-se acolhedores à fé do outro.
A teologia precisa partir das vivências, porque é aí que podemos reconhecer a ação reveladora e inovadora do Espírito: " Eis que faço uma coisa nova, agora sairá à luz; porventura não a percebeis?" (Isaías 43,19; cf. Ap 21,5).
Nos naufrágios como no acolhimento, o Mediterrâneo conta a promessa de uma fraternidade possível. De túmulo pode voltar a ser um ventre, um ventre de esperança. É a força do mistério pascal que pede para se transformar em responsabilidade para a história.
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Apelo por um Mediterrâneo de paz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU