29 Mai 2023
Aos 19 anos, quando ingressou na Casa de Cultura da Mulher Negra, Djamila Ribeiro conseguiu ampliar sua visão e enxergar para além das narrativas dominantes de sua sociedade, o que lhe permitiu descobrir as lutas de sua raça e seu gênero para superar os preconceitos e os maus-tratos.
Na ONG com sede no Brasil, a futura escritora e ativista trabalharia por um período de quatro anos, enquanto estudava filosofia política na Universidade Federal de São Paulo, concentrando-se no estudo das obras de autoras como Simone de Beauvoir e Judith Butler.
Contudo, o ativismo de Ribeiro nasceu, de fato, em sua casa. Sua mãe era participante de diversos espaços culturais e religiosos nos quais se reconhecia amplamente as raízes do povo brasileiro na África. Seu pai era um ativista antirracista que trabalhava como difusor cultural. Graças ao seu exemplo, a futura escritora se interessou pelas histórias e as lutas dos negros, especialmente as das mulheres.
Desde que iniciou seu trabalho como ativista, a autora de Pequeno manual antirracista busca visibilizar as vozes da população negra em sua luta contra a opressão. Além disso, retrata a realidade dessa população no Brasil, seu país natal, onde o racismo ainda hoje impera.
Em 2016, quando atuou como secretária-adjunta de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, Ribeiro publicou um de seus primeiros livros com alcance internacional, Lugar de fala. Desde então, estabeleceu-se como uma das referências do feminismo negro no continente. Seu trabalho no ativismo lhe rendeu o Prêmio Príncipe Claus, na categoria Filosofia.
A autora, nascida em 1980, é também uma das estudiosas que mais trabalha na reconstrução do pensamento em torno das estruturas sociais, apontando os preconceitos raciais e promovendo um trabalho integral e multidimensional a respeito desta problemática.
Seu livro Quem tem medo do feminismo negro?, publicado em 2018, tornou-se uma das obras indispensáveis para quem busca se aprofundar nesses conceitos. Além disso, seu trabalho acerca das heranças afro fez dela uma das autoras vitais do movimento antirracista, nos últimos anos.
Durante sua visita a Bogotá, a autora brasileira conversou com Leamos sobre sua participação na antologia Volver a contar, publicada pela Anagrama, suas concepções sobre o feminismo negro e a herança africana no povo brasileiro.
A entrevista é de Santiago Díaz Benavides, publicada por Infobae, 21-05-2023. A tradução é do Cepat.
Ao longo de sua obra, o conceito de mulher negra, principalmente a originária do Brasil, alimenta-se de diferentes referências africanas, inclusive de algumas que obedecem a certos estigmas europeus. De que modo esse conceito da mulher negra brasileira se relaciona com o conceito da mulher negra latino-americana?
É uma pergunta muito importante. Como mulher negra, há vários anos, venho desenvolvendo essa questão, e nesse tempo tenho tentado desmantelar e combater esse idealismo que desumaniza as mulheres negras. Nesse caminho, pude encontrar nas palavras de Lélia Gonzalez, uma destacada feminista brasileira, o eco do que me interessa trabalhar.
Em seu ativismo, ela propôs que as mulheres negras de toda a América Latina podem se unir para combater, justamente, seus preconceitos em relação à mulher negra. Ela fala de algo que se chama “amefricanidade”, que se refere ao fato de que todas as mulheres podem se unir em uma luta transnacional. É isso que também tenho tentado defender. Por mais que existam violências particulares em seus países, é possível que se congreguem em favor de uma mesma luta.
É necessário ter duas classificações? Feminismo negro versus só feminismo?
É uma pergunta recorrente. Para mim, na realidade, o feminismo negro não divide. O racismo, o patriarcado, o machismo e o capitalismo são as ideologias que colocam a mulher negra em uma situação de vulnerabilidade. Combater o racismo negro é combater uma divisão que já foi construída, então, o feminismo negro não divide, não exclui, ao contrário, coloca a mulher em um ponto central dentro da luta feminista.
Nós que cultivamos o feminismo negro também somos anticapitalistas, antissexistas e antirracistas. O que fazemos é também colocar sobre a mesa a realidade da mulher branca e, assim, conseguimos combater a exclusão histórica da mulher negra.
No texto que fornece para a antologia “Volver a contar”, uma de suas publicações mais recentes, chama a atenção para as origens africanas, descrevendo como essa herança marcou o devir da identidade do povo afro-brasileiro. No entanto, durante a leitura, dá a sensação de que está interessada em retratar o afro na dimensão latino-americana e não especificamente brasileira.
Não temos necessariamente as mesmas raízes, mas historicamente ocupamos os mesmos lugares. Dentro do candomblé há descendentes de Angola, Nigéria e Congo, por exemplo. Nessa diversidade, há uma matriz de origem africana, sem dúvidas, mas também há outras origens.
Para muitos brasileiros, é importante saber de onde vêm, pois sua história, infelizmente, foi destruída pelo colonialismo. O que procuro entender neste texto é a origem de nossas raízes, a partir do brasileiro, entendido como latino-americano, e neste exercício conceitual é possível compreender que para um brasileiro descendente de italianos não é a mesma coisa do que é para alguém que vem da África se perguntar sobre suas origens.
A religião, neste sentido, e a religião africana, especificamente, que não é uma só, foi vital neste caminho, pois permitiu reconstruir a origem de uma procedência e legar, por sua vez, um espaço de resistência política no qual as comunidades puderam se assentar.
Como compreende que seu ativismo também é mediado pela palavra? Existe alguma influência capital para você neste exercício?
Comecei trabalhando em uma organização de mulheres negras e tive acesso a uma biblioteca que tinha vários livros escritos por mulheres e grupos de mulheres negras. Lá conheci autoras como Carolina Maria de Jesus, Lélia Gonzalez e Toni Morrison, que foram fundamentais não só para minha formação, mas também para compreender o objetivo dessas lutas, um objetivo que tenho buscado ampliar com o passar dos anos.
Por isso, entre outras coisas, lancei meu próprio selo editorial, e assim procuro seguir o caminho que essas mulheres começaram a trilhar. Nesse momento, estamos prestes a publicar Velia Vidal, escritora colombiana, diga-se de passagem.
Que notícia boa.
Fui eleita uma das 100 mulheres mais influentes do mundo, em 2022, segundo a BBC. Estamos muito contentes.
Todo esse exercício em torno da difusão, da clareza a respeito dos feminismos negros, inclui uma forte presença, também, do africano como herança. Há muita santeria na cultura que retrata em seus livros, essas comunidades que vivem à luz dos costumes de seus ancestrais e que, de uma forma ou de outra, determinam sua identidade.
No Brasil, falamos do candomblé, que é nossa santeria, e constitui uma base muito importante para a formação de nossas identidades. Além de ser um assunto de ordem religiosa, é também uma filosofia de vida que aponta para uma ideia central: restituir à humanidade aquilo que o colonialismo nos tirou.
Há um bom número de escritoras afro-brasileiras que conceberam suas obras a partir da figura do ‘orisha’, que não é outra coisa diferente das divindades do candomblé, que vêm da tradição africana. Nessas obras, uma ideia é recorrente: não se pode homogeneizar todas as comunidades negras sob essa visão do candomblé, porque também pode haver comunidades que podem ser cristãs, católicas, ou ter outra visão. Se é verdade, no entanto, que algo em comum as congrega, é toda essa filosofia que, de uma forma ou de outra, tem a ver com elas.
Como você define a experiência da mulher negra no mundo de hoje?
É uma questão complexa, mas citando mais uma vez Lélia Gonzalez, posso dizer que a mulher negra é uma mulher que constrói, que elabora, que pinta um mundo em que sua raça e gênero não a tornam uma vítima ou um sujeito alheio à história. Nisso se concretizam as lutas e é o caminho que se espera continuar percorrendo.
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“O feminismo negro não divide”. Entrevista com Djamila Ribeiro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU