31 Março 2023
"Após a noite escura dos últimos anos de declarado anti-indigenismo, chegou o momento do Estado Democrático de Direito se impor frente às sistemáticas violações infligidas aos Povos Indígenas. É preciso que o governo popular recém-empossado observe seus compromissos políticos, revogue todas as normas restritivas dos direitos indígenas e demarque os seus territórios. Do contrário, também terão sangue indígena nas mãos!".
O artigo é de Gabriel Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP - São Paulo/SP) e bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE - Belo Horizonte/MG). Membro da Pastoral Indigenista da Diocese de Roraima, onde vive com os povos Wapichana e Macuxi, na Região Serra da Lua.
Cansados de esperar as providências de um Estado historicamente anti-indígena, as comunidades da Terra Indígena Manoá-Pium, pertencentes à Região Serra da Lua, em Roraima, retomaram, no dia 27 de fevereiro passado, parte de seu território ancestral, excluído do processo de homologação. Após longos anos de espera e angústia, os legítimos donos da terra resolveram agir. Conscientes de seus direitos, discutido e deliberado o assunto de forma comunitária, um grupo de lideranças, mulheres, crianças, jovens, professores e anciãos dirigiram-se para o lugar que lhes foi tomado indevidamente, algumas décadas atrás. E na posse de parte do território almejado avisam que ali permanecerão enquanto aguardam que a Constituição Federal seja cumprida.
A luta dos Povos Indígenas não é recente. Desde a chegada dos colonizadores sofrem a expulsão de seus territórios, a escravização de seus corpos e o extermínio de suas culturas e suas vidas. Resistir não é uma opção, mas condição de sobrevivência. Infelizmente, o cruel genocídio e silencioso, porém, permanente apagamento da existência dos povos originários é uma constante na história da formação da nação brasileira. Uma história perpassada por muitas violências e injustiças!
Mesmo atualmente é comum escutar, com um certo tom de orgulho, muitas pessoas dizerem: “minha avó era índia brava que foi pega no laço”. Quando essa informação deveria despertar no mínimo choque e repulsa por uma relação fundada no estupro, ainda se verifica inexistir qualquer consciência sobre a gravidade da situação. Como se o “ser indígena” fosse um traço exótico ou animalesco na árvore genealógica do Brasil. Algo que remete a um passado longínquo, já quase desaparecido e esquecido. Entretanto, o sangue indígena escorre dos dedos desta pátria nada gentil com as populações tradicionais.
Em Roraima não foi diferente. A luta pelo território ocorreu de modo sangrento para os Povos Indígenas. Dezenas de lideranças foram assassinadas, outras tantas ameaçadas, violentadas e espancadas. O Estado sempre esteve comprometido com os interesses dos grandes e poderosos, a elite agrária local. Com raras e custosas exceções, como o território da Raposa Serra do Sol assegurado com o preço de muitas vidas perdidas, as terras indígenas foram demarcadas de modo descontínuo ou também chamado de demarcação em ilha. Ou seja, pequenas extensões de terra cercadas por fazendas.
Assim aconteceu na Região Serra da Lua, formada por nove Terras Indígenas e suas 21 comunidades, resistentes entre as fazendas. Dentre elas está a Terra Indígena Manoá-Pium, homologada em 16 de fevereiro de 1982. Localizada no município de Bonfim, é habitada por 3.259 pessoas (SESAI, 31/12/2022) e possui uma área de 43.336,73 hectares. Com o crescimento da população nos últimos 40 anos, a terra é insuficiente para salvaguardar o modo tradicional de vida dos Povos Wapichana e Macuxi.
Conforme o Protocolo de Consulta dos Povos Indígenas da Região Serra da Lua (n. 1, pág. 6) o conceito de território adotado é bem mais amplo do que a concepção ocidental-capitalista. Não se trata aqui de manter uma propriedade com o fim econômico, mas como afirma uma das lideranças consiste em “uma área de pesca, uma área de pasto para o nosso rebanho ali dentro, é uma área também de a gente conservar, seja na nossa caça, de tirar as palhas para as nossas casas”. Portanto, terra tradicionalmente ocupada por indígenas deve abranger tudo aquilo que permite uma vida digna aos seus habitantes, inclusive os espaços sagrados, os buritizais de onde se retira material para os artesanatos, os igarapés:
“Cada família tem sua própria casa. (...) Mas quando falamos de territórios indígenas abrangemos tudo: rios, igarapés, lagos, lavrado, floresta, serras, roça. É por onde andamos, e onde fazemos pescaria, caçada, roça, canto, reza, dança. Nosso território não tem valor em dinheiro. É um bem coletivo. É de onde tiramos nossa sobrevivência. Quando cuidam dos doentes, os pajés pedem ajuda dos espíritos da floresta. Esses espíritos curam. Também temos rezas, plantas medicinais e parteiras que cuidam da saúde de nosso povo. Por isso falamos: quando destroem a natureza, estão nos matando. Nossa história não está nas bibliotecas, está em nossos territórios. É aqui que nossos avós estão enterrados”.
Originalmente, como relatam as lideranças da região, foram identificados e delimitados 67.000 hectares pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI). Acontece que, por pressão dos fazendeiros locais e anuência do órgão indigenista, os tuxauas da época foram iludidos de que o processo avançaria mais depressa se esses 24.000 ha fossem excluídos da demarcação. Pressionados e sem qualquer auxílio que zelasse por seus interesses, cederam. Segundo depoimento de uma liderança jovem da retomada, os antigos foram enganados com falsas promessas, pois “naquele tempo de negociação, alegaram que nossas lideranças não sabiam falar, não sabiam escrever” e dessa forma “aconteceu esse processo e hoje as nossas terras indígenas são demarcadas em ilhas”.
O processo legal de reestudo, para que a reparação seja feita e devolvida a área original às comunidades da Terra Indígena Manoá-Pium, dormita em berço esplêndido nos escaninhos da FUNAI. O último relatório antropológico é de 2015 e nesses anos de bolsonarismo não houve qualquer avanço. Nesse sentido, considerando que o Estado brasileiro não tem pressa em cumprir a constituição no que se refere aos direitos dos Povos Indígenas, a pressão político-social revela-se o único caminho possível no horizonte. Como reconhece essa jovem liderança, “a gente tem nossos parentes enterrados ali dentro” e “vamos permanecer porque o território é nosso por direito”.
Conforme denunciado pelo movimento indígena, dias após a entrada na terra ancestral, as intimidações e tentativas de criminalização, inclusive, com a utilização do aparato estatal, tiveram seu início. Primeiro, o fazendeiro mobilizou a Polícia Civil, chegando ao território no carro oficial da força. Houve a intimação de lideranças para prestarem esclarecimento na Delegacia do município. Munícipio este majoritariamente indígena e que conta, pela primeira vez na história, com um vice-prefeito do Povo Wapichana, Mário Nicácio, ex-coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR). Apesar de um ambiente hostil aos Povos Indígenas, os votos dessa parcela da população são imprescindíveis para qualquer eleição local.
Posteriormente, a Polícia Militar e o seu batalhão de choque estiveram presentes por duas vezes na área, causando apreensão aos membros das comunidades. Ademais, trata-se de um movimento absolutamente pacífico, integrado por mulheres, crianças, adolescentes e anciãos. Qualquer ação violenta das forças policiais seria catastrófica e poria em risco a integridade física de dezenas de pessoas indefesas. Uma decisão como essa, ainda que com roupagem jurídica, seria eminentemente política e deveria ser debitada de modo direto ao secretário de segurança pública e ao governador do Estado de Roraima.
No bojo da ação de reintegração de posse, em trâmite na Comarca de Bonfim, a juíza Liliane Cardoso concedeu liminar determinando a saída dos indígenas no prazo de 15 dias, sob pena de multa diária de mil reais. Em meio a tensão, as lideranças da Retomada reafirmaram a sua intenção de permanecer na terra de seus avós. Informado da situação conflitiva e da probabilidade de acontecer uma tragédia, o titular do 7º Ofício da Procuradoria da República em Roraima, Dr. Alisson Marugal, manifestou-se no processo requerendo a revogação da liminar e a consequente declinação da competência para a Justiça Federal, por se tratar de questão indígena. Para o alívio das comunidades indígenas, no dia 16 de março, o referido pleito foi acolhido pela magistrada, a liminar revogada e o processo remetido para a esfera apropriada.
Na madrugada do dia 22 de março houve o incêndio de uma casa em que vivia uma família indígena, dentro dos 24.000 ha ilegitimamente excluídos da homologação. Diante desse ato de violência, as comunidades indígenas decidiram também ocupar essa área, na mesma manhã do ocorrido. Com a força da resistência, outras regiões foram mobilizadas e vieram prestar a sua solidariedade às agressões sofridas pelos “parentes”.
Acionada pelo fazendeiro, a Polícia Militar prostrou-se na entrada da dita propriedade, obstaculizando a entrada de outros apoios e aumentando o clima de terror entre os indígenas. Passados alguns dias os policiais deixaram o local. Mas não satisfeitos, segundo nova denúncia do Conselho Indígena de Roraima, na manhã do dia 24 de março, um carro com emblema oficial do governo do Estado de Roraima protagonizou uma lamentável cena de violência ao perseguir e derrubar uma liderança indígena que trafegava com a sua moto, causando um ferimento em sua perna.
O último episódio, ocorrido na manhã do dia 29 de março, foi a agressão de uma liderança indígena, por dois homens encapuzados, enquanto voltava para a sua comunidade. Em que pese as recorrentes tentativas de intimidação da luta pela terra assumida pelas comunidades indígenas, seus líderes dizem que não irão retroceder, afinal como afirmou um deles “esse território é nosso e a gente vai lutar por direito”, porque esta é “uma terra sagrada pra nós, é uma terra ancestral e a gente vai continuar essa luta”. Mesmo porque, continua com convicção, “a gente está pacificamente ocupando o que é nosso”.
Importante salientar que as comunidades indígenas da Retomada não estão sozinhas. As demais comunidades da Região Serra da Lua e as outras regiões pertencentes ao Conselho Indígena de Roraima já reafirmaram o seu apoio à fundamental luta pela terra. Também, como não poderia deixar de ser, os missionários e as missionárias da Pastoral Indigenista da Diocese de Roraima, aliados históricos dos Povos Indígenas, têm acompanhado de perto as legítimas aspirações dessa parcela do Povo Santo que caminha em busca da terra prometida, reiterando seu compromisso com o Rosto Indígena de Deus.
Articulados como movimento indígena, na última segunda-feira (27), as comunidades da Retomada mantiveram reuniões com a coordenadora regional da FUNAI, Marizete de Souza Macuxi e o procurador da República, Dr. Alisson Marugal. Entre outras demandas, expuseram a necessidade de que o Estado cumpra com seus deveres constitucionais e retome as políticas públicas em diálogo com as lideranças indígenas. Aproveitaram a ocasião para denunciar as ameaças e as violências a que vêm sendo submetidos, cobrando as providências legais cabíveis.
Como bem tem nos ensinado o Papa Francisco, em consonância com o Ensino Social da Igreja e com o próprio Evangelho, comprometer-se com a justiça social é dever de todo cristão. A Igreja, Povo de Deus que caminha na história, não pode se manter alheia aos sofrimentos dos marginalizados desse tempo. Afinal, o próprio Jesus de Nazaré se identificou com os excluídos, levando seu projeto de amor até as últimas consequências. Nesta esteira exorta o pontífice:
“A luta social implica capacidade de fraternidade, um espírito de comunhão humana. Então, sem diminuir a importância da liberdade pessoal, ressalta-se que os povos nativos da Amazónia possuem um forte sentido comunitário. Vivem assim «o trabalho, o descanso, os relacionamentos humanos, os ritos e as celebrações. Tudo é compartilhado, os espaços particulares – típicos da modernidade – são mínimos. A vida é um caminho comunitário onde as tarefas e as responsabilidades se dividem e compartilham em função do bem comum. Não há espaço para a ideia de indivíduo separado da comunidade ou de seu território». Estas relações humanas estão impregnadas pela natureza circundante, porque a sentem e percebem como uma realidade que integra a sua sociedade e cultura, como um prolongamento do seu corpo pessoal, familiar e de grupo (...)” (Querida Amazônia, n. 20).
Conscientes de que essa é uma luta coletiva dos Povos Indígenas e qualquer retrocesso nos direitos indígenas atinge todos, o pedido das lideranças da Retomada é claro, para que o marco temporal “seja pautado imediatamente, porque tem pessoas nossas, do nosso povo, seja aqui em Roraima, seja no estado do Brasil, que necessitam”. Esse sentido de solidariedade é impressionante. Mesmo tão distantes e nunca sequer tendo-os conhecido, também lutam pelos povos mais massacrados. “Que terra tem nossos parentes Guarani Kaiowá?” Questionam com lucidez, para constatar com um grave tom de indignação, “eles estão nas estradas”. E um povo indígena desterrado é um povo que padece e se desintegra.
À espera de “uma resposta concreta para nós, povos indígenas”, as comunidades da Retomada alertam com uma urgência incômoda, “quem está segurando a Mãe Terra hoje somos nós”. A civilização devoradora da floresta reconhecerá seus territórios, permitindo-lhes que continuem a segurar a Mãe Terra? Qualquer outra solução que não seja o cumprimento estrito do estabelecido no art. 231 da Constituição Federal é inaceitável. Após a noite escura dos últimos anos de declarado anti-indigenismo, chegou o momento do Estado Democrático de Direito se impor frente às sistemáticas violações infligidas aos Povos Indígenas. É preciso que o governo popular recém-empossado observe seus compromissos políticos, revogue todas as normas restritivas dos direitos indígenas e demarque os seus territórios. Do contrário, também terão sangue indígena nas mãos!
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A retomada de um território ancestral: os povos que seguram a Mãe Terra. Artigo de Gabriel Vilardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU