14 Março 2023
Este ensaísta inglês está convencido de que a agricultura, como a conhecemos e subsidiamos, é tão prejudicial ao planeta quanto os combustíveis fósseis. Em seu novo livro, Regénesis (Capitán Swing), ele oferece uma visão radical e surpreendente do futuro da alimentação.
A entrevista é de Tom C. Avendaño, publicada por El País, 11-03-2023. A tradução é do Cepat.
Se não é possível mudar o mundo a partir de uma cidade de 8.000 habitantes e situada a cerca de 300 quilômetros de Londres – o que ainda está para ser visto –, pelo menos é possível imaginar a mudança. O vegano mais famoso da Inglaterra, George Monbiot (Londres, 60 anos), um dos principais divulgadores ambientais do Reino Unido, um gigante da esquerda graças a seus livros e séries documentais, assim como suas colunas no The Guardian, dedicou seus últimos anos a isso.
Prolífico, provocador e certamente mais intrépido do que qualquer outro pensador de sua geração (em suas andanças pelo mundo superou um coma provocado por ferrões de abelha na Indonésia, sobreviveu a um tiro na Amazônia, à própria morte cerebral no Quênia, a um câncer e um naufrágio), este zoólogo acredita que o futuro do planeta depende dos humanos de maneiras que raramente falamos. Sua tese central é que o consumo de carne e a forma como entendemos a produção de alimentos são as maiores ameaças ambientais perpetradas pelos humanos.
De fato, por essa razão ele próprio se tornou vegano, para reduzir a pegada negativa causada pelo consumo de produtos de origem animal. Seu novo livro, Regénesis. Alimentar al mundo sin devorar el planeta (Regênesis: alimentando o mundo sem devorar o planeta) é dedicado a demonstrar até que ponto alimentar a humanidade da maneira como o fazemos nos condena ao fracasso.
Contra a catástrofe, Monbiot propõe a renaturação: que os seres humanos reduzam sua presença na Terra e permitam que os ecossistemas naturais se restaurem por conta própria. Ele enumera, evitando com o olhar os coelhos esquartejados que aparecem na vitrine do açougue em Totnes pelo qual acabamos de passar: “Derrubar muros, permitir que as plantas e os animais que espantamos voltem e impedir a contaminação da água”. No livro também desenvolve a necessidade de enfrentar de uma vez por todas a intervenção no preço dos alimentos, cultivar pastagens silvestres e retomar a prática do pousio e inclusive as bondades de comer kernza, um tipo de cereal que, por ser perene, causa menos erosão.
O principal inimigo, não industrial, mas cultural: nosso apego a ideais bucólicas permite que os pecuaristas vivam e poluam como quiserem. De todas as ideias que publicou ao longo dos anos – e entre elas está o encarceramento do ex-primeiro-ministro Tony Blair por suas mentiras sobre a invasão do Iraque (“sejamos generosos e estendamos esse convite a José María Aznar, por que não”, acrescenta hoje) –, esta é a que mais desenvolveu nas últimas décadas. Nunca tanto como hoje, em Totnes, onde ninguém dispara contra ele, não é picado por nenhum inseto nem naufraga, e onde pode pensar à vontade sem impactar o meio ambiente.
Você projeta um mundo bastante deprimente, mas garante que este é um bom momento para mudar mentalidades.
A pandemia pôs fim a duas ideias profundamente arraigadas de tanto serem repetidas nos últimos 40 anos. Uma, que os governos não deveriam governar, e a outra, que os cidadãos não deveriam agir, que deveríamos ser passivos e delegar todas as decisões a uma abstração que chamamos de mercado. A definição de mercado raramente é explorada. Deus nos livre de chegar à conclusão de que realmente se refere ao poder dos ricos de decidir como os outros devem viver.
Segundo essa lógica, um governo não só não pode interferir nas decisões de uma transação comercial, como deve afastar tudo que possa interferir nela: impostos dos ricos, serviços públicos, sindicatos... Tudo o que atrapalha uma lógica puramente mercantil. Devemos aceitá-lo, como aceitamos o nosso papel de meros consumidores. Mas penso que a pandemia nos mostrou de forma clara que essa ideia de que o mercado resolve os problemas é um mito completo. Que os governos devem governar se quisermos evitar a catástrofe e que os cidadãos, vendo que estamos todos juntos, estão dispostos a se dedicar a projetos públicos para o bem comum.
Neste momento, a renaturação é a melhor solução?
Repensar a produção de alimentos em si deveria ser a nossa maior preocupação. Há duas coisas que teríamos que fazer para proteger e restaurar a vida no planeta. Uma é deixar os combustíveis fósseis no subsolo, algo que passamos a aceitar muito lentamente e com muita relutância. Mas quase não se fala que devemos parar com a pecuária, uma ameaça que certamente é ainda maior do que os combustíveis. Atiça todos os sistemas da Terra e é a maior causa de destruição de habitats, de extinções, de decomposição climática, de degradação dos solos, de poluição da água e do ar; é o principal uso da terra. E esse último é crucial.
Por que é crucial?
Cada hectare que usamos para nossos próprios fins é um hectare que não pode ser ocupado por ecossistemas naturais, como florestas ou savanas. A grande maioria das espécies depende de ecossistemas naturais para sobreviver. Ao retirar o solo dos ecossistemas para entregá-lo à pecuária, fazemos mais para destruir os sistemas que nos sustentam do que qualquer outra ação, porque a pecuária usa muito mais terra do que outras atividades humanas juntas. Se a reformarmos agora, poderemos restaurar ecossistemas em larga escala, muito mais do que com qualquer outra medida. A renaturação pode ser a única coisa que fica entre nós e o colapso ambiental.
A agricultura é uma coisa gigantesca. Ela estrutura o mundo inteiro. Mais da metade dos fundos europeus são destinados à sua manutenção. Gostaria de mudá-los?
Os fundos de Política Agrícola Comum [PAC] são como se fossem destinados à mineração de carvão. É o uso mais destrutivo do erário público que se possa imaginar. E nem podemos dar nossa opinião: o sistema de subsídios já está amarrado e rematado muito antes que o público possa vê-lo e julgá-lo. É uma tributação sem representação [diz, fazendo alusão ao grito de guerra das colônias americanas contra a tirania inglesa], um sistema que também é completamente corrupto. A renda dos agricultores e pecuaristas [pilar I do orçamento da PAC] só dá dinheiro se você mantiver a terra dentro do que é considerado como condições agrícolas, ou seja, não pode ter elementos como açudes, florestas regeneradas, pântanos ou sebes de determinado tamanho. Se você os tiver, eles cercam sua fazenda com linhas vermelhas no mapa por satélite e você não vê um euro. É um grande incentivo para evitar que o habitat selvagem retorne à sua terra.
É assim que acontece?
Eu vi isso com meus próprios olhos na Transilvânia, quando cruzei uma série de florestas magníficas, absolutamente repletas de vida. Tantos cucos que voavam em bandos, papa-figos, águias pomarinas; lobos, linces, répteis, anfíbios... E do outro lado da floresta, uma série de locais com árvores derrubadas, destinadas a produzir subsídios. Não havia produção de alimentos. O objetivo é que a terra esteja em condições de produzir, não que ela esteja produzindo. É um sistema que não tem reforma. É preciso que seja desmontado.
Pelo menos reduz o preço dos alimentos?
Em absoluto. Se você quisesse baixar o preço, subsidiaria os alimentos saudáveis diretamente nos pontos de venda, não seriam desvalorizados na fazenda. Além disso, não há relação direta entre as grandes somas de dinheiro que vêm da PAC e o preço que o consumidor paga. Se esse fosse o objetivo, teriam fracassado completamente.
Qual é o objetivo, então?
Manter uma classe rural dominante. Se fosse para o bem-estar, o dinheiro iria para os mais pobres nas áreas rurais. Não é o caso. 97% da população rural não vê um euro. Os subsídios vão para algumas das pessoas mais ricas da Europa. Ou mesmo de fora da Europa. Qualquer oligarca russo, xeque do petróleo saudita ou magnata da mineração do Texas pode comprar terras na União e receber dinheiro por isso. Não é apenas uma questão ambientalmente destrutiva, mas também socialmente retrógrada.
Então nos dedicamos a comer galinhas caipiras?
Nem de longe! As galinhas caipiras causam um impacto ambiental maior do que as criadas em confinamento. Sim, há uma certa melhora no seu bem-estar, não muito grande porque ainda continuam em fábricas, mas suas fezes chegam aos rios mais livremente e também ocupam mais terra do que as galinhas confinadas. Surgiu a ideia, absolutamente catastrófica e promovida por certos agricultores orgânicos, de soltar as galinhas no meio do gado, tornando-as verdadeiramente caipiras. Mas elas são onívoras. Comem os girinos, os casulos de borboletas e qualquer outro inseto. Acredita-se que, se as deixarmos livres, as galinhas se virarão sozinhas, mas não. É um mito. Se forem bem-sucedidas, o que resta por se ver, acabarão com toda a vida selvagem da área e aumentarão o dano que as vacas já estão causando. Essa imagem de um conto infantil das galinhas com as vacas, se dando bem em uma granja feliz, nos conforta porque nos lembra nossa infância. Mas, na realidade, a vida de uma granja de animais é horrível.
Esse ideal de uma granja feliz e um fazendeiro nobre é, para você, prejudicial?
Vendem-nos essa ideia de que o campo é um lugar inocente, puro, principalmente a granja com animais no meio da vegetação. Podemos voltar no tempo que quiser, a Teócrito no século III, ao Antigo Testamento, ao Novo Testamento e daí ao Renascimento. Ainda hoje é um tema recorrente na literatura infantil, principalmente a de cunho pré-literário: 50% desses livros se passam em uma granja de animais idealizada. E assim, sobrevive o ideal bucólico e romântico de que não há conflito político no campo. Nada poderia estar mais longe da realidade. É um lugar implacável e violento, geralmente dominado por máfias locais que destroem tudo o que entra no seu caminho, seja na Sicília ou na Inglaterra. Estamos falando de famílias de fazendeiros que possuem enormes extensões de terra e que compraram os vereadores e a imprensa local. Os vilarejos têm eleições, mas o campo não. É governado por forças pré-democráticas, aqui e em quase toda a Europa.
E esse ideal é o que nos impede de progredir no campo? A ideia de destruir empregos rurais soa como suicídio político.
Poderíamos ter parado com as máquinas de escrever. Em qualquer campo se aceita que as coisas evoluem. Mas há algo na agronomia que nos faz dizer: “Não, não podemos aplicar essa lógica evolutiva à produção de alimentos, não devemos nos envolver nisso, devemos manter o sistema neolítico para alimentar o mundo do século XXI”. Por quê? De novo, essa metáfora de que o campo é bom, puro e autêntico: que gente de verdade é quem cuida do gado e das ovelhas na montanha. E é por isso que vamos dar a este setor privilégios especiais que não damos aos outros?
Você concorda com Eric Hobsbawm, que dizia que o mito do cowboy, com sua solidão e liberdade, tem muito de ideologia. Ainda é assim?
Essa liberdade tão idealizada e associada ao campo, ao rancho em particular, é a mesma que tanto proclamam os libertários, os neoliberais e os fundamentalistas do mercado: a liberdade de fazer o que quiser independente do impacto que tenha sobre os outros. A história dos cowboys é essa. Você mata os nativos americanos porque na verdade fazer isso é bom, permite que você leve seu gado de um Estado para outro. Você mata qualquer animal selvagem que encontrar, sejam lobos, ursos ou pumas. E quanto mais matar, mais nós te adoramos. É o ideal libertário de que aqueles com capacidade e poder façam o que der na sua cabeça.
Este mito vem das histórias pastoris: os cowboys, que não se parecem em nada com os verdadeiros pastores de vacas, são uma reconfiguração dos mitos da Sicília ou da Arcádia, dos pastores de Teócrates ou de Virgílio, que também não tinham nada a ver com os reais, passados para o Oeste americano. E são perpetuados até hoje. De fato, as principais milícias que invadiram os Congressos de Washington e de Brasília, em 2021 e 2023, respectivamente, eram formadas por fazendeiros. Gente acostumada a pressionar, extorquir e ameaçar para conseguir o que querem em cada momento.
Se ir contra o campo é tão suicida, é bom para a esquerda adotá-lo e correr o risco de perder esses eleitores?
Você poderia dizer isso de qualquer mito. Os salários, por exemplo.
Mas todo mundo gosta de dinheiro. A mensagem “devemos fazer todo esse sacrifício para manter as coisas como estão” talvez não seja muito sedutora.
Essa costumava ser a mensagem padrão sobre questões ambientais. “Sigam-nos e tudo será um pouco menos ruim do que se vocês não o fizerem”. Precisamos de outras mensagens mais positivas. “Sigam-nos e o mundo será melhor que agora”. Essa é a mensagem. E diante dela temos o colapso ambiental.
Se o eleitor sobrecarregado vai para a direita, que favor está fazendo à causa?
Necessitamos de bons cidadãos, assim como de bons políticos. E necessitamos que esses cidadãos participem mais. A ideia de que delegamos todo o nosso poder de decisão a algumas centenas de pessoas é odiosa para quem acredita na verdadeira democracia. Fazemos um X em uma cédula um dia e, nos anos seguintes, o governo que obtiver a maioria dos votos da população adulta assume o poder de fazer tudo o que o Congresso aprovar. De onde vem esse poder? A maioria dos eleitores nem sequer leu o programa eleitoral, e se o fizesse, não fazia diferença, porque uma vez no poder, os governos fazem o que lhes der na cabeça. E eles podem. Porque uma vez, um dia, fizemos um X em uma cédula.
Mas o Brexit não lhe ensinou nada?
O Brexit foi a primeira vez que o povo britânico teve a oportunidade de estar diretamente envolvido em uma decisão que afetou suas vidas. Todo o resto tinha sido indireto. Não culpo as pessoas por usá-lo para dar um pontapé no sistema. “Votamos pela mudança porque não queremos deixar de usar esse poder que nos foi dado”. Claro, havia uma lacuna muito grande entre o que pensavam que estavam votando e o que efetivamente estavam votando. Mas quanto mais oportunidades as pessoas tiverem de se manifestar, o que acontece na Suíça, por exemplo, mais provável será que seja usado com mais responsabilidade. O que as pessoas iriam fazer? Era sua única chance de mudar as coisas.
De onde tira a crença de que as coisas vão melhorar?
Do fato de estudar sistemas complexos. É um fracasso total do nosso sistema educacional que 99% da população não o faça. Tudo o que tem importância material para nós é um sistema complexo, do cérebro ao corpo e à sociedade; do sistema financeiro ao sistema alimentar. Nós os estudamos individualmente como sistemas simples quando estão interconectados entre si e regidos pelas mesmas regras. E um desses sistemas complexos é a sociedade humana. Como qualquer sistema complexo, tem seu ponto de inflexão. Este é muito baixo, porque somos o mamífero mais social da Terra, com a possível exceção do rato-toupeira-pelado. Vivemos dependentes de mudanças porque não queremos ficar para trás e, se virmos que o status quo muda, vamos querer nos adaptar ao novo. Isso nos levou a situações terríveis, mas, aplicado em uma direção positiva, significa que a humanidade está pronta para aceitar um novo paradigma.
Esse ponto tem um número?
A observação e a experimentação situam-no em 25%. Se você conseguir que 25% das pessoas se juntem a uma nova realidade, notará uma repentina aceitação geral dela. Aconteceu com o hábito de fumar: antes, você e eu e todos neste lugar estaríamos fumando durante esta entrevista. Agora, quem ainda quer fumar precisa ir para um lugar aberto. Já passamos do ponto crítico de aceitar a fumaça, inclusive o fato de querermos ser fumantes passivos.
Algo semelhante aconteceu com o casamento igualitário. Os ativistas sabiamente decidiram ignorar os fanáticos religiosos que nunca iriam aceitá-los e se concentraram em recrutar pessoas para suas fileiras. Chegou um momento em que foi simplesmente aceito. Inclusive na Polônia. Até mesmo na Irlanda, por Deus! A persuasão é altamente superestimada na sociedade humana. Dirija-se aos seus e espera esse grupo crescer. Quando atingir esses 25%, os muros começarão a cair, um após o outro. Logo verá. Depois da guerra, todos afirmaram ter sido membros da resistência.
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“O ideal romântico do campo sobrevive, mas o campo é um lugar implacável e violento”. Entrevista com George Monbiot - Instituto Humanitas Unisinos - IHU