"O horror cometido em nome de Deus não deveria, por exemplo, reconhecer finalmente o pleno direito de expressão às mulheres de Deus? Celebrar a missa, confessar, pregar, exercer plenamente a vida pastoral? Não seria a hora de libertar a Igreja Católica do fardo de uma discriminação secular? Se o horror delirante do sistema teocrático-islâmico traz consigo a correção moral das mulheres como seu fundamento, a Igreja Católica não deveria dar um exemplo igualmente extraordinário livrando-se completamente desse jugo?", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pávia e de Verona, em artigo publicado por La Stampa, 14-12-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Pode-se matar, estuprar, torturar, espancar em nome de Deus? Isso é o que está acontecendo sob os olhos semicerrados do mundo nas ruas do Irã. O mal existe, não é um princípio abstrato. E existem pessoas perversas que culposamente o cometem. Com o desconcertante acréscimo de que o nome do Bem é muitas vezes a principal máscara com a qual ele se disfarça. Enforcar, atirar nos órgãos genitais, no peito, nos olhos pode ser uma expressão da vontade de Deus?
As mãos de seus seguidores mais fiéis e sanguinários são uma extensão das mãos de Deus? O Mal pode ser feito em nome do Bem? É a mesma pergunta que fazíamos diante do terrorismo islâmico. Mas no caso do Irã, o terrorismo é de fato uma política de estado. É o delírio coletivo que inspira o regime teocrático dos aiatolás.
No entanto, vimos esse delírio em ação também no Ocidente durante o século XX: invocar fanaticamente o ideal de uma Causa pode justificar os crimes mais hediondos. É a lógica que inspirou historicamente o caráter estruturalmente religioso de toda forma de patriarcado.
Também conhecemos bem o mecanismo: invocar a justiça de Deus é uma forma de justificar todo tipo de violência. De fato, quando o Supremo Bem é invocado para cometer o mal, não há mais limite para o mal que se pode fazer, porque o mal se torna o escudo necessário na defesa do Bem.
Mesmo nesta terrível violência que está ensanguentando as ruas iranianas, vemos em ação o caráter atroz da intenção corretiva, educativa e paradoxalmente pedagógica do sadismo delirante do patriarcado. Não é por acaso que a implacável ação repressiva da polícia a serviço do poder teocrático é definida, como num livro de George Orwell, “polícia moral”. Mas também experimentamos esse tipo de violência no Ocidente alguns séculos atrás, através das instituições reacionárias e repressivas das nossas Igrejas destinadas a perseguir e matar os hereges e os infiéis sempre em nome de Deus.
Ainda hoje, no Ocidente, em nosso mundo, ainda a podemos ver em seus residuais e maléficos espasmos cometidos nos feminicídios ou nos abusos de todos os tipos que visam reiterar um anti-histórico princípio de superioridade do homem sobre a mulher. A lógica pedagógica do patriarcado religioso permanece a mesma: reconduzir de volta ao bom caminho a anarquia do corpo feminino, amortecer seu impulso para a vida, enjaular sua liberdade, suprimir sua voz.
Não por acaso os cabelos femininos assumiram hoje o valor de um símbolo no Irã: representam o corpo feminino que não pretende se submeter à pedagogia delirante e mortificante do patriarcado. São a expressão do caráter ingovernável e radicalmente livre da feminilidade. Enquanto na revolução de 1979 o povo iraniano era guiado por uma legítima exigência de liberdade que, no entanto, não afetava os pilares do pensamento dogmático-religioso do islamismo mais intransigente, hoje é precisamente esse pensamento que está sendo subvertido. É sua vocação delirante que é denunciada abertamente.
O apelo à emancipação feminina da jaula moral do patriarcado coincide com o apelo à democracia contra a tirania. Não por acaso as mulheres são as protagonistas e não os líderes religiosos conservadores ao estilo Khomeini. Trata-se de um dos raros movimentos insurrecionais coletivos na história que surgiu e foi impulsionado pela voz protagonista das mulheres. É uma novidade extraordinária.
O Ocidente estará à altura? Não apenas interrompendo todo tipo de comércio e de acordo político com o Estado iraniano que, não surpreendentemente, recentemente reforçou sua aliança estratégica com o Império Russo compartilhando com ele o exercício malévolo de violência e do abuso santificado pela religião de Estado. Mas o Ocidente tem o ensejo de aproveitar esta oportunidade para abrir seus olhos para a discriminação que, em toda forma em seu próprio mundo, afeta as mulheres.
O horror cometido em nome de Deus não deveria, por exemplo, reconhecer finalmente o pleno direito de expressão às mulheres de Deus? Celebrar a missa, confessar, pregar, exercer plenamente a vida pastoral? Não seria a hora de libertar a Igreja Católica do fardo de uma discriminação secular? Se o horror delirante do sistema teocrático-islâmico traz consigo a correção moral das mulheres como seu fundamento, a Igreja Católica não deveria dar um exemplo igualmente extraordinário livrando-se completamente desse jugo?
Essa corajosa e comovente revolução marcará não somente o fim de uma tirania, mas também o fim de um mundo, de um determinado pensamento de Deus que gostaria que as mulheres estivessem em posição de menoridade e subordinação em relação aos homens? Não seria hora de o delírio machista do patriarcado também no Ocidente conhecer seu ocaso definitivo?