16 Novembro 2022
“'Nada de Novo no Front' chega ao público no meio da guerra mais devastadora na Europa desde 1945. É verdade que nem todo filme de guerra será necessariamente um comentário sobre qualquer batalha que esteja se desenrolando no momento de seu lançamento. Os campos da França não são as estepes ucranianas: onde a Primeira Guerra Mundial foi uma tomada desesperada pelo poder encoberta com a escória que sobrou do ancien régime, a invasão da Ucrânia por Vladimir Putin é o resultado de um ódio genocida profundamente enraizado”, escreve Doug Girardot, bacharel em História pelo Boston College, em artigo publicado por America, 11-11-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Segundo ele, "há um denominador comum entre a Primeira Guerra Mundial e a Ucrânia. Essa característica comum é a insensatez: a disposição dos que estão no poder de submeter as pessoas comuns à privação e miséria, morte e destruição, tudo por causa do orgulho ferido".
"Por mais perturbador que seja dizer,- conclui - depois de se acostumar com as atrocidades do conflito atual, é revigorante e humanizador sentir terror novamente ao ver a guerra".
A Primeira Guerra Mundial foi uma combinação única de crueldade devastadora e vazio ideológico e, como tal, representa a essência da guerra. Sua sequência mais famosa tinha lados bons e ruins que eram relativamente fáceis de distinguir. Em contraste, quem de nós pode dizer com alguma convicção que os Aliados tinham uma reivindicação moral inequívoca sobre os alemães, austro-húngaros ou otomanos na década de 1910?
Reis e líderes já haviam disputado terras antes, mas nunca antes seus peões haviam sido equipados com lança-chamas, gás de pimenta e metralhadoras: ferramentas projetadas para produzir uma saída constante de morte. A Grande Guerra – tão horrenda que ninguém na época conseguia imaginar nada para igualar sua escala novamente – foi apenas a primeira vez que a guerra foi capaz de aguentar seu semblante feio sem qualquer pretensão de cavalheirismo.
“Nada de Novo no Front” (lançado na Netflix em 28 de outubro) é um documentário dessa guerra, mesmo que tecnicamente seja uma obra de ficção. A adaptação alemã do diretor Edward Berger do romance de memórias de Erich Maria Remarque de 1928 (transformado em um filme de Hollywood em 1930) funciona como um espelho, tão claro que nos mostra as falhas do nosso passado que preferimos ignorar.
Comparado com outras representações de palco e tela da Primeira Guerra Mundial na década passada, “Nada de Novo no Front” não é muito embelezado. Não há marionetes de cavalos, como na produção do Teatro Nacional de “War Horse”, que chegou à Broadway em 2011. Nem tem os truques cinematográficos de “1917” (lançado em 2019), que foi editado para parecer filmado em plano sequência. Até o documentário “Eles não envelhecerão”, de Peter Jackson (2018), baseou seu sucesso no relato da meticulosa restauração de Jackson de imagens de guerra (mesmo que não tenha sido menos brilhante por isso).
Este “Nada de Novo no Front” não precisa de efeitos especiais, poder de estrela ou inovação cinematográfica para se manter. É uma questão de fato, e essa é a sua força. Isso não é surpreendente, pois foi a honestidade brutal do romance de Remarque que o tornou tão atraente. “Nada de Novo no Front”, o livro, foi revolucionário por seu retrato igualmente cínico e empírico da batalha. Como um bom jornalista, Remarque escreve com escassa elegância, deixando que a lama gelada e os cadáveres perfurados a bala falem por si.
A narrativa segue Paul Bäumer (Felix Kammerer), um jovem do norte da Alemanha que é incitado a se alistar no exército por seus amigos. “Nada de Novo no Front” é um retrato do comum em meio a perdas extraordinárias, nunca procurando persuadir com nada mais do que uma representação precisa das batalhas da Primeira Guerra Mundial. Antes dos créditos finais, um pós-escrito observa como milhões de vidas foram tiradas por causa de talvez algumas centenas de metros de terreno inimigo; as linhas de batalha em 1918 não pareciam muito diferentes das de 1914. Assim, a primeira tomada do filme – um panorama crepuscular da floresta – é a mesma que a última.
Claro, o filme não é um mimeógrafo do livro, e alguns dos enredos e personagens do romance não terminam no roteiro. Alguns críticos até levantaram preocupações sobre a historicidade (ou falta dela) dos eventos retratados no clímax do filme. Embora os fatos sejam importantes, dentro do contexto desta história eles são subterfúgios. É o espírito do livro de Remarque que está presente, apesar das discrepâncias.
Uma das características definidoras de “Nada de Novo no Front” é seu retrato inabalável de carnificina no campo de batalha. Mesmo para alguém que viu sua cota de filmes de terror ao longo dos anos, o detalhe com que Berger retrata a carnificina da Primeira Guerra Mundial é chocante; é tão sangrento que muitas pessoas podem não conseguir passar pelo filme sem se sentirem fracas ou doentes.
Para muitos filmes e seriados, o derramamento de sangue é usado para compensar a narrativa anêmica; quando a potência da morte é assim diluída, o resultado final é pouco mais impactante do que um faroeste computadorizado. Mas para “Nada de Novo no Front”, a violência – violência desesperada, nunca heroica – é a força motriz da própria história, e é necessária. Um dos momentos mais impactantes do filme ocorre quando Paul e seu companheiro Albert Kropp (Aaron Hilmer) testemunham a aproximação dos tanques aliados: os olhos de Kropp se arregalam de terror e ele dá um grito primal enquanto observa os tanques esmagarem e explodirem soldados enquanto indiscriminadamente como os tripés dos marcianos em “A Guerra dos Mundos”.
A carnificina no filme não faz mais do que encarnar a realidade da Primeira Guerra Mundial sem nunca ultrapassar o limiar da plausibilidade. O retrato do filme de olhos arrancados, nuvens de sangue e corpos em chamas não pode ser chamado de explorador quando sua base é a guerra real que explorou vidas humanas. Depois que Paul ataca um soldado francês em batalha, ele enfrenta a tortura de ver seus companheiros humanos cuspindo sangue e lutando para respirar; somos igualmente compelidos a ver o que o homem fez contra o homem.
No entanto, Berger é capaz de equilibrar a escala do derramamento de sangue com a humanidade individual das vidas perdidas. A câmera varre a terra de ninguém e examina os cadáveres, colocados em um quadro agonizante exatamente quando eles estavam carregando um rifle ou rastejando na lama. Nessas tomadas, cada corpo, cada rosto consegue transmitir uma vida florescente interrompida. Uma vala comum está cheia de muitas tragédias individuais.
“Nada de Novo no Front” chega ao público no meio da guerra mais devastadora na Europa desde 1945. É verdade que nem todo filme de guerra será necessariamente um comentário sobre qualquer batalha que esteja se desenrolando no momento de seu lançamento. Os campos da França não são as estepes ucranianas: onde a Primeira Guerra Mundial foi uma tomada desesperada pelo poder encoberta com a escória que sobrou do ancien régime, a invasão da Ucrânia por Vladimir Putin é o resultado de um ódio genocida profundamente enraizado.
Mas há um denominador comum entre a Primeira Guerra Mundial e a Ucrânia. Essa característica comum é a insensatez: a disposição dos que estão no poder de submeter as pessoas comuns à privação e miséria, morte e destruição, tudo por causa do orgulho ferido.
No espaço de menos de um ano, as manchetes sobre a Ucrânia tornaram-se menos frequentes e menos urgentes, combinando com a capacidade cada vez menor do público de se sentir chocado com as últimas revelações de crimes de guerra. “Nada de Novo no Front” procura nos tirar de nossa lânguida complacência, nos sensibilizando para os gritos sombrios do campo de batalha – tanto a própria Primeira Guerra Mundial (que é cronicamente negligenciada em retrospectivas do século XX) quanto as guerras que marcam a terra hoje.
Por mais perturbador que seja dizer, depois de se acostumar com as atrocidades do conflito atual, é revigorante e humanizador sentir terror novamente ao ver a guerra.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Nada de Novo no Front”, filme da Netflix, é um retrato inabalável do terror da guerra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU