27 Outubro 2022
Em sua segunda carta aos cristãos de Corinto, Paulo não combate o judaísmo, mas sim o apego a uma religiosidade territorial e étnica não aberta ao universalismo já preconizado pelos profetas. Em Paulo, há também a tensão apocalíptica, uma urgência a anunciar o evangelho antes da parusia de Cristo.
A análise é de Roberto Mela, padre dehoniano, teólogo e professor da Faculdade Teológica da Sicília, na Itália. O artigo foi publicado por Settimana News, 22-10-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Depois de fundar a comunidade de Corinto durante sua segunda viagem missionária (50-52 d.C.), Paulo se vê tecendo com ela uma densa e, em parte, conturbada correspondência epistolar.
Na introdução de seu novo livro – “Seconda Lettera ai Corinzi. Un apostolato a misura di Dio” [Segunda Carta aos Coríntios. Um apostolado na medida de Deus], o estudioso jesuíta Pasquale Basta, professor de Teologia Bíblica na Pontifícia Universidade Urbaniana e professor convidado do Pontifício Instituto Bíblico, reconstrói, na medida do possível, a trama dos eventos.
Seconda lettera ai Corinzi. Un apostolato a misura di Dio
A correspondência epistolar abrange os anos de 52 a 56 d.C., com um ponto de partida que varia entre Éfeso e Macedônia. A uma carta que se perdeu (A) segue-se a Primeira Carta aos Coríntios (B), depois uma carta escrita entre muitas lágrimas (C; cf. 2Cor 2,4), uma carta de reconciliação (D = 2Cor) e, enfim, uma carta polêmica (E), que provavelmente coincide com 2Cor 10-13.
A matéria da disputa é a correção e a autoridade de próprio apostolado, que Paulo se vê obrigado a ilustrar e a defender diante de adversários não totalmente identificáveis com exatidão.
Há discussões também sobre a unidade de 2Cor. Os estudiosos se dividem entre aqueles que defendem a unidade da escrita, aqueles que veem nele a colagem de bilhetes (de cinco a 11) e aqueles que – como Basta – tendem a ver duas letras unidas (1Cor 1-9 e 10-13).
O gênero literário é o da carta, mas nela aparecem gêneros literários diferentes: a apologia e a autodefesa são os principais, mas não faltam polêmicas, textos autobiográficos, cartas de reconciliação, de agradecimento e de congratulações, diários de viagem. Os principais campos semânticos são: competência e idoneidade em relação ao evangelho; autorrecomendação; orgulho paradoxal; confiança, esperança, coragem e franqueza. Há inúmeras antíteses: força e fraqueza, vida e morte, dissolução e renovação, tribulação e glória.
Paulo se sente servidor da nova aliança e, forçado pelas circunstâncias, recorre a um discurso “de louco” para tecer o elogio de si mesmo. Ele consiste em sublinhar a própria fraqueza, na qual se revela o poder de Cristo que se lhe revelou em Damasco e em uma revelação “ao terceiro céu” 14 anos antes.
Paulo defende a pureza do evangelho, que está posta em perigo por adversários judaico-cristãos judaizantes que se infiltraram na comunidade, difamando e deslegitimando a apostolicidade e a correção teológica de Paulo.
Os adversários poderiam ser judaico-palestinos, judeus helenistas, gnósticos, sincretistas, judaizantes palestinos ligados aos espiritualistas. Basta tende pela hipótese de adversários de origem judaico-palestina ou da diáspora que defendem o sonho de um pan-judaísmo, cultivado naquela época em particular pelos zelotes.
Os zelotes cristãos achavam que podiam explorar a expansão da Igreja por meio da missão paulina para instaurar um pan-judaísmo até mesmo com tons violentos e agressivos, para manter o movimento paulino dentro do leito da tradição mosaica transmitida de forma literal e fixista, acrescentando também à fé em Cristo dados da tradição judaica (sábado, circuncisão, regras alimentares) como elementos necessários para a salvação. Eles caluniam e difamam Paulo, porque ele não teria o status de apóstolo, pois não viu o Jesus histórico e não o acompanhou no seu percurso terreno até a ressurreição.
Paulo defende com circunspecção, mas também com força a legitimidade de seu apostolado como beneficiário de uma revelação particular e direta de Cristo ressuscitado, autorizado e recomendado pelos próprios resultados apostólicos alcançados (por exemplo, a própria fundação da comunidade coríntia), e pela capacidade, na qual ele não insiste, de realizar os sinais do verdadeiro apóstolo.
2Cor é verdadeiramente a carta magna do ministério apostólico de Paulo. Ele o ilustra e o defende com tons ora mais relaxados, ora mais violentos, forçado pela agressividade dos adversários que colocam em perigo a própria autenticidade do evangelho de Cristo.
O estudioso não pretende propor um comentário a 2Cor, mas sim apontar as coordenadas teológicas principais que subjazem às várias seções em que a carta pode ser subdividida.
Depois do prescrito, segue-se uma euloghia na tribulação (1,1-11). Ela antecipa os temas da carta. Na tribulação, Paulo foi consolado e pode recordar o perigo de morte experimentado em Éfeso e a subsequente libertação por obra Deus. Por esse motivo, a tribulação pascal (= copresença de sofrimento e de consolação por causa de Cristo) sofrida por Paulo torna-se possibilidade de consolar aqueles que se encontram em todos os tipos de tribulação.
Em 2Cor 1,12-2,17 recorda-se o incidente do caluniador de Corinto que ofendeu Paulo pessoalmente e a quem ele já perdoou, assim como ele convida a comunidade a fazer também. Em nível individual, o ofensor pode fazer parte do vasto círculo de adversários de Paulo mencionados em 2Cor.
Paulo não trata de um pequeno fato do cotidiano, mas permite entrever por trás do “ofensor” um possível expoente gnóstico que insiste mais no conhecimento do que na caridade. Um fator deflagrador para a comunidade. Talvez Paulo também fosse acusado de ser autorreferencial e presunçoso, de ser um homem interessado na gestão do poder. Alguém o identifica com o incestuoso de 1Cor 5, mas o “ofensor” em 2Cor parece ser um personagem de influência discreta, acreditado e ouvido.
Mais do que buscar a identificação precisa desse personagem, para Basta é melhor observar o método paulino de recuperar as pessoas e as situações, lendo-as à luz da fé e olhando além, para recompor a unidade da comunidade em busca de sua edificação.
2Cor 1-2 ilustra o método de ação com o qual Paulo pretende rejeitar as calúnias, o preconceito humano, a maledicência que tendem a frustrar a vocação e missão do Apóstolo, anulando o que ele construiu ao longo dos anos com trabalho e paixão.
Alguns veem em 2Cor 1,12-14 a exposição sintética do tema da carta, a chamada propositio. No entanto, segue-se a ela uma narratio biográfica em 1,15-2,17.
Em 2Cor 2, Paulo pode se orgulhar com base no testemunho de sua consciência, pois sua vida foi marcada pela simplicidade e pela sinceridade, por um agir transparente. As mudanças de itinerário não se deveram a oscilações e ambiguidades, mas à vontade de não amargurar ainda mais a comunidade, à qual já escreveu uma carta entre muitas lágrimas e que já mostrou que acolheu adequadamente o ofensor do Apóstolo.
De sua parte, Paulo já o perdoou e agora agradece a Deus por poder participar do triunfo de Deus em Cristo e da difusão do perfume evangélico de vida para aqueles que querem acolhê-lo. Para aqueles que o rejeitam, ele se torna odor de morte.
Em 2Cor 3,1-4,6 Paulo ilustra de modo pacato o ministério da Nova Aliança que ele está realizando. São páginas de teologia exigente e, ao longo dos séculos, foram lidas como um manifesto antijudaico.
Paulo avança por contraposições. Acima de tudo, enfatiza que suas cartas de recomendação não são humanas, mas são constituídas pela mesma comunidade de Corinto por ele ministerializada, mas escrita com a tinta do Espírito.
Sobre a Antiga Aliança, menciona-se: não com tinta, tábuas de pedra, ministros não da letra, a letra mata, ministério da morte, ministério da condenação, efêmero, véu sobre o coração.
Sobre a Nova Aliança, afirma-se por contraposição: com o Espírito, tábuas de corações humanos, ministros do Espírito, o Espírito dá vida, ministério do Espírito, ministério de justiça, duradouro, rosto descoberto.
Paulo compõe um midrash sobre o véu de Moisés contado em Ex 34. Por um lado, há uma comparação entre Paulo e Moisés, por outro, entre Cristo e Moisés. Deus agora se manifestou na carne dos seres humanos, nas tábuas dos corações humanos. As cartas de Cristo foram escritas no coração dos fiéis. A contraposição, porém, não deve ser feita entre Moisés que se cobre com o véu enquanto Paulo não o faz, ou entre os judeus “velados” e o “nós” de Paulo e dos fiéis em Cristo que seriam revelados.
Com um recorte muito original, Basta lê essas páginas não como um manifesto antijudaico ou de oposição entre o Antigo e o Novo Testamento, mas em estrita referência aos capítulos anteriores, à oposição encontrada por Paulo na figura do “ofensor”. O véu remete à escuridão, produz uma vida na sombra, no escuro, sem ver. Os que ofendem e caluniam Paulo vagam nas sombras, enquanto ele caminha na luminosidade e na clareza. Paulo e aqueles que creem em Cristo caminham na claridade da luz de Deus e não portam nenhum véu.
O discurso é amplo e remete à relação entre forma e substância. Entre os coríntios, há uma grande atenção a aspectos periféricos e não centrais da fé, enquanto Paulo recalibra as coisas insistindo na substância: a caridade mais do que a ciência, a relação entre carismas e o Espírito, entre os membros e o corpo. Paulo defende a unidade da comunidade na caridade.
Ele não está escrevendo contra os judeus, mas, muito provavelmente, “contra alguns judaico-cristãos de marca hipermosaica que estavam voltando a se apegar a velhos formalismos. Diante de adversários obscuros, que se movem de maneira obscura, Paulo reitera fortemente a não necessidade de recomendações externas, porque a única apresentação de que realmente se precisa é a dos corações e, portanto, de homens e mulheres que falam bem de nós. Qual é o sentido, então, das cartas de recomendação? Nenhum! Porque os verdadeiros escritos a serem postos em circulação são os corações dos fiéis. Consequentemente, é preciso dizer um ‘não’ claro às cartas de recomendação, à autorreferencialidade e à vaidade que se esconde por trás delas” (pp. 54-55).
Os adversários “se movem nas sombras, não dão glória a Deus, mas voltaram a glorificar a si mesmos e a própria visão de fé. Manipulam as palavras de Paulo, mas, no fim das contas, acabam manipulando Cristo, tornando-se porta-vozes de tendências que não vão mais na direção do bem espiritual comunitário, mas defendem interesses de parte, de facções, com recomendações de si mesmos e do próprio grupo. Em suma, são personagens muito provinciais, enredados em altercações paroquiais” (p. 55).
O método de resposta de Paulo é o de levantar o olhar para o que está situado mais acima, recuperando um ponto de vista teológico e cristológico, sem cair em personalismos e localismos diversos.
O ataque dos adversários não é apenas contra o homem Paulo de Tarso, mas se dirige mais profundamente contra a visão de fundo que ele tentava propor com grande paixão e em níveis muito elevados de inteligência teológica, cristológica e eclesiológica.
Em toda a seção 3,1-4,6, o apóstolo visa a exortar, de forma indireta. Ele convida a ver além, a se referir ao evento de Damasco em que ele ficou cego em relação à sua antiga visão e começou a ver Deus de uma maneira radicalmente diferente do modo como o entendia antes. A mudança ocorreu sem mediação humana e é uma experiência sempre presente em Paulo.
Paulo retorna para isso porque os adversários estão atentos a aspectos formais mais do que substanciais e dobram as Escrituras à sua visão particular. Paulo tem uma forma diferente de anunciar, baseada no Espírito do Deus vivo a ser impresso nas tábuas dos corações humanos. Muitos não se deixam envolver pela luz de Cristo, mas preferem permanecer ligados às regras. Quando a regra se torna deus, o mal começa a entrar em ação.
Os adversários são feitos em sua maioria de carne, com pouco Espírito. Ainda se movem em uma zona de sombra, de véu, de trevas. Por trás da guerra movida contra Paulo, “esconde-se, em última análise, a busca do prestígio e do comando, e não a nobre missão de escrever o Espírito Santo no coração dos novos fiéis” (p. 57).
Após a euloghia e a narratio biográfica, segue-se em 2Cor 4,7-5,10 e até 7,4 a continuação da argumentação sobre o ministério da Nova Aliança. O discurso se amplia por concatenação a temas que dizem respeito à antropologia e à escatologia. Paulo se interroga sobre quem é o ser humano e sobre como ele é feito, mas prolonga a reflexão até considerar o destino final do ser humano.
Na seção que fala de um tesouro em vasos de barro, predominam os catálogos peristáticos ou das adversidades, com a lista dos esforços que o apóstolo teve que suportar por causa do evangelho. Ele sempre carrega consigo a nekrosis, o morrer, de Jesus, para que a vida triunfe nos outros. São páginas que – segundo Schweitzer – ilustram a mística de Paulo (cf. 2Cor 4,10 com Gl 6,17 sobre os estigmas carregados pelo apóstolo).
Depois dos aspectos gloriosos do apostolado descritos anteriormente, sublinham-se agora os elementos de fadiga que acompanham o ministério.
Paulo usa metáforas. O thesauros é o evangelho de Cristo ou o próprio Cristo, enquanto o vaso de barro, frágil, refere-se ao corpo terreno dos ministros, em toda a carga de sua fraqueza.
No ministro do evangelho, coexistem dois princípios: uma realidade espiritual profunda e eterna, que sobrevive à própria vida do ser humano. É o evangelho ou a vida de Cristo em nós. A outra realidade é o corpo terreno, uma parte degradável, sujeita à decadência e à morte.
O discurso sobre o ministério se entrelaça com os níveis da antropologia e da escatologia. O processo espiritual sempre avança até o comparecimento perante o tribunal de Cristo. Ele compensará a todos, de acordo com a medida do bem realizado. Não condena ninguém, mas recompensa de forma desigual conforme a intensidade da vida espiritual implementada nas obras. A tese exposta em 4,7 reaparecerá na probatio que se segue.
O catálogo peristático empregado várias vezes por Paulo não é sinal de orgulho soberbo, mas encontra sua razão no costume dos oradores da antiguidade de recordar as adversidades superadas para chegar ao seu estado atual e o fato de ser por elas recomendado. Era preciso fazer um uso discreto disso. As provas do discurso do orador tinham que tocar o nous, estimulando a mente; tinham que tocar e mover os sentimentos do auditório (pathos) e, por fim, fornecer as provas éticas que remetessem ao testemunho da vida (ethos).
Seguindo esse costume, Paulo se credencia com um primeiro catálogo peristático (3,1-6). São todas as provações e os sofrimentos sofridos e superados pela graça de Deus para anunciar o evangelho de Cristo. As travessias chegaram perto do nível de guarda da aniquilação, mas nunca o alcançaram.
As adversidades de Paulo referem-se às sofridas pelo povo de Israel. No entanto, o Apóstolo quer desvincular os ouvintes da ideia etnocêntrica de território e de nação, para os levar ao universalismo proposto por Jesus e já preconizado pelos profetas.
Paulo é muito humano, porque se dirige a étnico-cristãos e judaico-cristãos como irmãos que são tentados a territorializar até mesmo a fé em Cristo. Ao mesmo tempo, Paulo é espiritual na medida em que convida todos a se abrirem à graça de Deus manifestada em Jesus Cristo, consciente do fundamento de seu evangelho e dotado de uma visão muito profunda em seus níveis de teologia, cristologia, eclesiologia, antropologia e escatologia.
A antítese morte/vida mostra como a história da morte e da vida de Jesus já está inscrita no próprio corpo de seus ministros. Há um par polar morte/vida em referência ao corpo de carne. Existe uma estrutura biológica degradável, mas “o processo de degradação não é total, porque a vida de Jesus toca de algum modo o ‘nós’ dos apóstolos e o ‘vocês’ dos beneficiários de seu ministério” (pp. 67-68). A ressurreição é o testemunho supremo de que se viverá para sempre, apesar de se habitar dentro de um corpo de carne que não dura eternamente. Paulo se preocupa e espera que o fato e a graça da ressurreição toquem o maior número de pessoas.
A nekrosis de Paulo, o seu morrer, torna-o próximo da morte de Cristo, mas também o torna partícipe da vida do Cristo morto e ressuscitado, com todas as repercussões eclesiológicas e éticas que isso acarreta. É o núcleo da mística paulina. O apostolado de Paulo está totalmente comprometido com a formação de Cristo nos fiéis, até que estes alcancem sua estatura e maturidade.
Não se deve esquecer, além disso, a linha teológica que se refere aqui a Paulo como um grande teólogo da reconciliação.
A polaridade vaso de barro/tesouro reaparece com a metáfora do homem exterior e do homem interior. Não são elementos separados no ser humano, mas elementos interagentes de uma forma muito intensa.
O homem interior deve ser fortalecido, fixando o olhar nas realidades invisíveis e não nas visíveis, ou seja, a ter confiança, não se baseando nas certezas humanas, a buscar a lógica de quem se dedica à confecção da veste espiritual do homem interior.
A metáfora da veste se mistura com a da casa. A ressurreição começa no momento em que o fiel se põe a realizar a veste da glória, impregnado com o Espírito Santo, antes que o manto da ressurreição seja colocado sobre ele. Este é como que um indumentário que Deus enxerta no homem interior e espiritual.
“Tal processo começa já na terra com o dom do Espírito que é a garantia, a antecipação em vista da plenitude daquilo que será dado somente no momento em que formos revestidos com o corpo ressuscitado, que é um corpo espiritual. O intervalo de vida é o tempo para confeccionar a veste realizada a partir da garantia do Espírito, dado no batismo, cuja referência aqui é evidente. Será com base no hábito que cada um conseguiu realizar que se receberá, no fim, uma recompensa para o bem ou para o mal. Ou, melhor, o metro da recompensa será medido a partir dos traços da veste com que nos apresentarmos diante de Cristo” (p. 73).
Em 5, 1-10 vai-se além: “O homem interior a ser trabalhado é aquele que recebeu a semente do Espírito, cuja plenitude será conferida na ressurreição, momento em que o fiel será revestido de uma habitação celeste, isto é, de um corpo espiritual” (p. 74). Paulo espera que essa possibilidade não seja negada a ninguém.
No fim, o que é mortal será absorvido pela vida eterna. A casa celeste não se baseia em uma territorialidade étnica, ligada às tradições de um povo (como defendiam os adversários de Paulo de corte judaico e hipermosaico). Paulo não está preocupado com territórios étnicos, pois para ele a casa, a habitação, a tenda, todo o léxico ligado ao território, remete agora à pátria celeste.
O caminho terreno do discípulo ocorre na fé, na confiança na confecção da veste já com base na garantia, como antecipação em relação ao saldo final. Caminhar na fé significa alimentar uma expectativa de vida eterna.
Paulo usa uma inversio muito bonita: a condição atual de quem habita em um corpo mortal corresponde ao exílio longe do Senhor, enquanto, inversamente, o exílio do corpo mortal significa habitar junto do Senhor. Vai-se do exílio desta vida à habitação junto do Senhor, com o corpo absorvido pela vida.
Paulo nunca menciona uma oposição alma-corpo. Sua antropologia permanece profundamente judaica quando evidencia uma interação estrutural e contínua entre o interior e o exterior. O importante é que já nesta vida, em virtude da garantia dada no Espírito e na fé, possa-se confeccionar a veste celeste que permite não chegar nus diante de Cristo. Todos podem aparecer com a cabeça erguida à sua frente, com a atitude responsável de quem confeccionou sua veste em vida.
O tribunal de Cristo não condena. Recompensa proporcionalmente à veste confeccionada. Paulo usa apenas o verbo “compensar”. Um tribunal nunca compensa o mal! Talvez haja uma espécie de proporcionalidade em jogo. A justiça de Cristo não é forense. O tribunal “deve ser lido de forma espiritual e simbólica, como um momento em que o Senhor pondera a recompensa e estabelece que tipo de veste cada pessoa conseguiu construir para si ou se, pelo contrário, foi encontrado em parte ou até mesmo completamente nu. É o tema da proporcionalidade, sobre o qual Agostinho produziu páginas de uma perspicácia grandiosa” (pp. 77-78).
Deus pôs seu Espírito no ser humano. É preciso fortalecer o homem interior também com as tribulações que ocorrem, transformando-as em próprio proveito, fazendo com que o mortal se torne imortal. “É o tema da ressurreição que absorve a vida, com o corpo mortal que chega à morada eterna com base em uma obra não realizada por mãos humanas, mas diretamente por Deus. Contanto que, porém, o ser humano, durante a viagem de êxodo que faz nesta terra com seu corpo exterior, também seja capaz de fazer crescer o homem interior e de se fabricar uma veste, para não correr o risco de aparecer nu perante do tribunal de Cristo” (p. 80).
Quanto à escatologia dessa seção, interrogamo-nos se, para Paulo, existe um tempo além do presente terreno, em que ainda será possível e permitido “colocar ainda mais algumas peças para reparar a veste espiritual. A proxêmica dos céus e a dilatação dos tempos nada mais são do que a esperança cristã dilatada” (p. 82).
Paulo tem experiência da relação entre a morte e a vida eterna, e se apresenta muito humano em relação aos coríntios e muito espiritual na medida em que percebe profundamente aquilo sobre o qual discorre. Ele cuida para “levar o maior número possível de pessoas para a habitação eterna construída por Deus, depois que a tenda deste corpo for desfeita” (ibid.).
A parusia em 2Cor ainda é percebida como iminente, mas de uma forma já mais matizada. Ela é incumbente, e é preciso se preparar bem, fazendo com que sejamos encontrados vestidos e não nus. Paulo tem uma fé inabalável na ressurreição de Cristo, mas, com o tempo, atrasa o retorno de Cristo. Sobre esses pontos, provavelmente não havia muita clareza na Igreja primitiva. Paulo fala por meio de sugestões apocalípticas e escatológicas.
Em 2Cor 5, 11-21 o Apóstolo tece um discurso sobre a palavra da reconciliação, a partir do vocabulário dos tratados de paz. A reconciliação entre Deus e o ser humano tem um significado cristológico.
Explorando uma figura do pensamento judaico, Paulo enfatiza que o efeito produzido por um indivíduo repercute sobre todos. Há solidariedade entre discípulo e mestre. A reconciliação está ligada à ética, porque deve ser encarnada na vida da comunidade. Paulo exorta a isso.
Não se deve esquecer que seus contestadores usavam uma tática mentirosa para desacreditá-lo: origem humana e não divina de seu apostolado; conteúdo da mensagem não recebido diretamente de Cristo.
De acordo com Basta, os adversários de Paulo são figuras secundárias, não intimamente relacionadas com os apóstolos. O Apóstolo rompe com o judaísmo cristianizado de marca territorial que pretendiam impor: pan-judaísmo e territorialidade da fé não são aceitáveis para Paulo.
O trecho sobre a reconciliação também tem um sabor “político”, no sentido de que a comunidade é convidada a seguir as razões de Cristo. A resolução do conflito deve se dar movendo-se sobre uma base cristológica.
Paulo está credenciado a pedir a reconciliação porque, primeiro, em Damasco, credenciou-se a buscar e a perseguir aquela reconciliação que nada mais é do que um novo modo de ver.
Em 2Cor 6–7, o Apóstolo ilustra mais uma vez a forma a ser seguida para enfrentar as adversidades. Nessas páginas, encontram-se outros catálogos peristáticos, que demonstram os esforços suportados por Paulo para proclamar o evangelho, junto com listas de virtudes que descrevem as qualidades demonstradas por ele no exercício do ministério.
Segue-se uma página com uma linguagem muito particular, talvez não de origem paulina, que recorda a impossibilidade da comunhão entre Cristo e Beliar – o diabo, nunca chamado assim por Paulo em outros lugares –, isto é, entre o puro e o impuro.
Paulo conclui com uma exortação na qual se regozija da consolação na tribulação, porque esclareceu as conflitualidades com os coríntios e mencionou o fato de que não prejudicou nem explorou ninguém. O Apóstolo tem algo para se orgulhar dos coríntios e está feliz com isso.
Basta dedica ainda algumas páginas à modalidade de comunicação de Paulo por meio de cartas e ao seu método “político” e estratégico de construir a paz por meio do debate franco e construtivo com os pares.
2Cor 8-9, que, para Basta, conclui a carta antes da parte polêmica dos capítulos 10–13, que parece ser outra carta, se concentra na coleta. Paulo sempre teve o cuidado de ajudar os pobres, como lhe pediram Tiago, Cefas e João ao término da assembleia em Jerusalém (cf. Gl 2, 9-10).
O Apóstolo dirige-se primeiro aos macedônios e depois aos cristãos de Acaia, convidando-os ao serviço sagrado, à “diaconia”, à “liturgia” da ajuda económica aos irmãos cristãos, “os santos”, que em Jerusalém sofrem com a carestia. É necessário criar equidade entre as comunidades mais prósperas dos fiéis e as mais pobres, retribuindo os bens espirituais recebidos da Igreja mãe com os bens materiais de que elas podem dispor.
Paulo recorda o fundamento cristológico e bíblico da solidariedade fraterna, pois Cristo enriqueceu os seres humanos mediante sua pobreza, o dom da própria vida. A equidade e a igualdade exigidas são fortalecidas pelo motivo bíblico do maná.
Recorda-se que a coleta não é esmola, uma troca, mas a possibilidade de gozar dos motivos espirituais da alegria, da generosidade do coração, da comunhão fraterna, do louvor multiplicado a Deus pelo bem feito e recebido.
A comunhão de bens é muito enfatizada nos escritos do Novo Testamento, e a coleta também possui valores estratégico-políticos, pois fortalece os laços de comunhão entre a Igreja mãe judaico-cristã e as comunidades étnico-cristãs fundadas por Paulo.
2Cor 10-13 contém aquela que comumente é chamada de “a carta polêmica”, que – segundo Basta – constitui uma carta originalmente em si mesma. O registro muda, e a linguagem torna-se áspera e às vezes muito violenta.
Paulo se dirige aos seus adversários, definidos como “superapóstolos”, que contestam a fraqueza de sua presença física, o valor modesto de seu discurso, seu interesse pelo poder, a falta de credenciamento de seu ministério apostólico.
Paulo vê posta em perigo a verdade de seu anúncio evangélico e da centralidade de Cristo em relação às normas mosaicas periféricas. Ele se encontra diante do movimento pan-judaico de marca zelote que, valendo-se do apoio de personagens de autoridade (talvez de Jerusalém), contesta e deslegitima Paulo.
Contra sua vontade, o Apóstolo se vê forçado a um orgulho paradoxal, a um “autoelogio imoderado”. Ele faz um discurso “de louco”. Ele o faz apenas para defender a verdade do evangelho anunciado por ele e sua legitimidade como apóstolo amparada pela imponente série de adversidades enfrentadas e superadas graças a Cristo (lista peristática) e pelas revelações recebidas 14 anos antes no “terceiro céu” (= plena comunhão com Deus), cujos conteúdos não são comunicáveis por Paulo.
Ele expõe todas as atestações de apoio à legitimidade de seu ministério apostólico. Estas incluem sua biografia, o catálogo das perístases, o evento de Damasco e as revelações ocorridas “no terceiro céu”.
O apóstolo, porém, não quer se orgulhar desses elementos gloriosos, mas sim do poder de Deus que se manifesta precisamente em sua fraqueza em nível humano. Paulo disputa uma partida a três entre ele, os adversários e a comunidade.
Segundo Basta, a estrutura encontrada em 2Cor 11-12 pode ser delineada com um esquema concêntrico (cf. pp. 135).
Em 11,1-21 (A) Paulo assume as vestes do louco, descendo ao mesmo campo do orgulho tão caro aos seus opositores; em 11, 22-12, 10 (B) Paulo motiva seu orgulho elevando detalhadamente todas as situações de honra e de glória que marcaram sua vida apostólica, detendo-se, porém, paradoxalmente, sobretudo em sua fraqueza, a única realidade da qual ele realmente se orgulha. Em 12,11-13,10 (A’) Paulo se lembra de ter assumido as vestes do louco, mas apenas por ter sido forçado pelos coríntios.
O Apóstolo rejeita a acusação de fraqueza, pronto como está para mostrar presencialmente toda a energia que se mostrasse necessária. Ele também rejeita a acusação de que não aceitou dinheiro porque não amava os coríntios. Concretamente, Paulo rejeita o estatuto jurídico do patronatus e dos clientes que regia o Império Romano.
Por trás de sua “loucura”, esconde-se a vontade de Paulo de ser paraninfo das bodas entre a Igreja de Corinto – virgem casta – e Cristo, seu único esposo.
À argumentação caracterizada pela loucura (11.1-21) segue-se a do orgulho paradoxal mencionada antes (11,22-33), centrado no catálogo peristático.
Paulo recorda, depois, uma única situação de glória em que ele foi protagonista (12,1-10), mas da qual não quer se orgulhar: um momento de visão e de revelação divina desfrutado “no terceiro céu”. Não se refere ao evento de Damasco, mas a um fato ocorrido 14 anos antes, entre 40 e 42 d.C.
Na cosmologia judaica, o primeiro céu era destinado aos homens, o segundo às potências intermediárias tanto positivas quanto negativas, o terceiro é a altura suprema, destinada apenas ao Altíssimo. Paulo também o chama de “paraíso”.
Deus raptou Paulo, levando-o para um lugar próximo a ele, dizendo-lhe palavras irrepetíveis por parte do Apóstolo. No entanto, ele não pretende se orgulhar desse fenômeno, mas sim da própria fraqueza na qual se manifesta plenamente o poder de Deus e de Cristo. Em sua fragilidade humana, ilustrada com quatro elementos peristáticos, manifesta-se o fato de que Paulo sofre por causa de Cristo e permite que Cristo coloque “sua tenda” em sua fraca carne humana.
Nesse contexto, Paulo menciona um “espinho na/à carne” que o atormenta – atribuído a um enviado de Satanás para mantê-lo na humildade – e do qual pediu três vezes para ser libertado.
Os estudiosos pensaram em uma doença física com possíveis aspectos repulsivos: enxaqueca severa, epilepsia, problemas oculares, retinite ocular com erupções de pus amarelado (devido à areia do deserto). Outros falam de febres periódicas da malária, lepra, artrite, ciática, surdez, gagueira.
Porém, deve-se lembrar que Paulo demonstra um vigor físico impressionante, testemunhado por suas longas e extenuantes viagens apostólicas.
Há quem pense em uma doença psíquica de depressão, subsequente ao momento de êxtase. Alguns levantam a hipótese de tentações sexuais, baseando-se na tradução equivocada de Jerônimo (stimulus carnis). Paulo não sofre do estímulo da carne, mas “à carne/na carne” (skolops en tēi sarki).
Aqueles que pensam em ataques do demônio se baseiam em uma literatura externa à Bíblia, que atesta assédios satânicos na vida de muitos místicos. Teoria que não tem base na carta paulina.
Certamente, não se pode pensar que os adversários são demoníacos, mas Paulo afirma: “Esses tais são falsos apóstolos, operários fraudulentos, disfarçados de apóstolos de Cristo. E não é de estranhar! O próprio Satanás se disfarça em anjo de luz!” (2 Cor 11,13-14).
Basta identifica o “espinho na carne” com os adversários imprecisos de Paulo, que deslegitimam, desacreditam e se opõem a seu ministério apostólico. Mais do que a um grupo específico, o estudioso explica o “espinho na carne” com o não reconhecimento da origem do evangelho de Paulo e de seu apostolado. Pensemos na dor sentida por Paulo pelo não reconhecimento da messianidade de Jesus por parte de seu povo (cf. Rm 9,1-3).
A alusão ao símbolo usado sugere assim que o Apóstolo se importava menos com a natureza precisa do espinho, mas sim com seu significado.
Basta dedica um capítulo de seu livro às razões de um embate épico entre Paulo e os superapóstolos, recuperando dados que já surgiram ao longo da obra.
Paulo é um pioneiro em territórios inexplorados e combate os adversários que entram em seu campo, deslegitimando seu trabalho e poluindo a vida das comunidades. Ele se defende tentando esclarecer as dúvidas sobre ele e sobre o reconhecimento de seu status apostólico (Paulo sempre teve dificuldade em ser reconhecido como apóstolo).
Apesar dos critérios internos e externos presentes nos textos bíblicos para reconhecer os verdadeiros profetas, em última análise, somente quem tem o Espírito pode distinguir o verdadeiro apóstolo do falso.
O evento de Damasco permanece central, com a revelação pessoal de Jesus Cristo ressuscitado a Paulo. É evidente a dificuldade dos adversários em aceitarem esse critério de discernimento. No entanto, o Apóstolo se refere a vários motivos de credenciamento: sucessos apostólicos, perístases sofridas por Cristo e superadas graças ao seu poder, identificação com Cristo com toda a sua pessoa.
Basta conclui o capítulo traçando um interessante perfil físico, biográfico e espiritual de Paulo.
Nas Conclusões do livro, o autor relembra vários temas: o ceticismo que sempre cercou Paulo, o sonho pan-judaico de marca zelote já mencionado, o paradigma luterano clássico que vê a justificação pela fé o centro da teologia paulina, enquanto a New Perspective dos estudos sobre Paulo (Sanders, Dunn etc.) está atenta a uma avaliação mais equilibrada do complexo variegado do judaísmo e de seu fundamento na fé e não nas obras.
Basta enfatiza que Paulo não combate o judaísmo, mas sim o apego a uma religiosidade territorial e étnica não aberta ao universalismo já preconizado pelos profetas. Em Paulo, há também a tensão apocalíptica, uma urgência a anunciar o evangelho antes da parusia de Cristo.
Por fim, recordamos a memória dos sinais do verdadeiro apóstolo – Paulo também é capaz de fazer sinais e milagres –, o anúncio da terceira visita e o pós-escrito epistolar com o convite ao “beijo santo” (talvez um forte abraço de natureza interclassista que devia surpreender a sociedade greco-romana).
A saudação final é de marca trinitária: a graça é atribuída ao Senhor Jesus Cristo, o amor ao Pai e a comunhão ao Espírito. Uma trilogia muito original, um unicum dentro do epistolário paulino, que será retomada nas formulações litúrgicas mais antigas.
O livro de Basta analisa com originalidade de perspectiva muitos aspectos da nada simples Segunda Carta aos Coríntios (pensemos apenas no capítulo 3, com seu possível uso antijudaico e o tratamento complicado, mas apaixonante, da antropologia e da escatologia). Continua sempre sendo decisivo ter em mente a razão retórico-argumentativa dos vários trechos paulinos, sob pena de atribuir ao Apóstolo características negativas imerecidas e falsas.
O estudo da introdução e do capítulo conclusivo pode favorecer, desde o início, o enquadramento geral das problemáticas enfrentadas e permite degustar a grandeza humilde de Paulo, um gigante – forte na sua fraqueza – do amor a Cristo e da difusão de seu evangelho.
A linguagem do autor – que pudemos ouvir sobre esse assunto em um congresso em Camaldoli – permanece sempre acessível, e o conteúdo é muito útil a estudantes de teologia, catequistas, guias de grupos bíblicos e apaixonados pela Bíblia, especialmente dos textos nem sempre simples do apóstolo Paulo.
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2ª Carta aos Coríntios: apostolado na medida de Deus. Artigo de Roberto Mela - Instituto Humanitas Unisinos - IHU