Os grandes desafios da Enfermagem Intercultural. Entrevista com Gabriel Gomes

Foto: Ministério da Saúde

12 Outubro 2022

 

De que maneira incluir, no SUS, populações com questões singulares, como os indígenas, quilombolas, imigrantes e LGBTQIA+? A Enfermagem pode contribuir para sua integração? Aconteceu na cidade de Caruaru, em Pernambuco, o primeiro Encontro de Enfermagem Intercultural, em 29 de setembro, com discussões em torno dessas perguntas. A iniciativa também incluiu setores mais invisíveis, como população carcerária e mulheres que trabalham na própria área da enfermagem e chefiam lares.

 

Um dos princípios SUS, da maneira como foi idealizado, é o de equidade: ao compreender as desparidades do país, o sistema busca tratar desigualmente os desiguais, investindo mais onde a carência é maior. Pensando nisso, o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) criou a Comissão Nacional de Enfermagem em Saúde Intercultural. Trata-se de “assessorar na elaboração de estudos e apresentação de ações, propostas e pareceres relativos às questões relacionadas com profissionais de saúde de comunidades tradicionais pelos grupos identificados (indígenas, quilombolas, ciganos, ribeirinhos e extrativistas), LGBTQIA+ e imigrantes”.

 

Trata-se de um aprimoramento do conceito dito transversal de saúde pública, reconhecendo, ainda, a integração dos diferentes saberes e culturas, que podem ser usados para fortalecer políticas públicas. “Precisamos subsidiar práticas mais equânimes no serviço de saúde pública dentro da garantia do princípio da equidade, de tratar o diferente de forma diferente dentro de suas necessidades em saúde”, explicou Gabriel Gomes, do Conselho Regional de Enfermagem de Pernambuco, ao Outra Saúde.

 

O conceito é relativamente novo e pouco chegou ao público, inclusive aquele que é alvo da iniciativa que visa aprimorar a Atenção Primária, a mais utilizada pelo brasileiro e porta de entrada do SUS. O nome do evento – “Interculturalidade, diversidade, equidade e cuidado: ressignificando a práxis da Enfermagem” – demonstra as ambições inovadoras.

 

Diante do contexto de pandemia que vive o Brasil, com toda sua devastação social e sanitária, vem muito bem a calhar. “A pandemia, claro, evidencia outras questões para além da saúde epidemiológica e percebemos que alguns segmentos dessas populações acabaram se expondo mais, porque o acesso ao SUS é mais generalista e não conseguimos trabalhar a particularidade e a individualidade”, explicou Gomes.

 

Trata-se, como dito por Gomes, de reduzir as desigualdades e compreender as necessidades de grupos minoritários, pois suas necessidades variam de acordo com o contexto socioeconômico vivido. E isso influi até na possibilidade de acesso ao posto de saúde, que parece trivial mas também varia entre grupos sociais e mesmo regiões e cidades do país.

 

O desafio de criar uma enfermagem que enriquece a relação do SUS com seus usuários é imenso se considerarmos o atual momento. Pois a política de desmonte e desfinanciamento da saúde pública bate mais forte exatamente nesses grupos abordados pela enfermagem intercultural – desde Saúde Indígena aos remédios usados pelas parcelas mais pobres da população, mais excluídas e precarizadas em seu cotidiano.

 

“O orçamento impacta diretamente nos serviços prestados à população como todo. No contexto da interculturalidade não seria diferente. Percebemos que no âmbito do SUS precisamos de um olhar mais voltado a esta causa e às populações que se enquadram no perfil, para efetivamente se implantar programas. E precisamos de um orçamento adequado para dar uma assistência mais equânime”, explicou Gomes.

 

Leia aqui a entrevista com Gabriel Gomes e conheça mais sobre Enfermagem Intercultural.

 

A entrevista é publicada por Outras Palavras, 10-10-2022.

 

Eis a entrevista.

 

O que você pode contar do 1° Encontro de Enfermagem Intercultural realizado em Caruaru na semana passada? O que seria uma “enfermagem intercultural”?

 

Foi iniciativa da Câmara Técnica de Enfermagem Intercultural e atenção a populações em situação de vulnerabilidade do Coren-PE. A enfermagem cultural se debruça sobre o diálogo em diversas culturas, trabalhando ao princípio da equidade. Nosso tema central foi a interculturalidade, diversidade, equidade e cuidado na práxis da enfermagem, para colocar em pauta como essas questões estão situadas dentro do trabalho de enfermagem em seus diversos cenários de atuação.

 

Queremos promover diálogo e trabalhar na perspectiva de atenção, para diminuir as diferenças na atenção à saúde, de acordo com o perfil de cada população. Trouxemos conferências e discussões que se alicerçaram no contexto da saúde indígena, população LGBTQIA+, negros(as), com perspectiva de combate ao racismo.

 

A pandemia e todas as sequelas sociais, econômicas e, claro, sanitárias, foram um fator importante na construção do evento e do conceito em si?

 

Somos uma câmara técnica voltada a este setor, mas existe uma comissão nacional do Conselho Federal de Enfermagem. Para além do que a pandemia colocou, há um resgate da ancestralidade, ao próprio processo de formação social. Temos a marca das diferenças sociais na construção dos conceitos de saúde e acesso aos bens e serviços do SUS.

 

Pensar no conceito e no contexto do exercício profissional de enfermagem, de forma holística e integral, requer olhar para a questão da interculturalidade e sua interferência na atenção e assistência à saúde.

 

A pandemia, claro, evidencia outras questões para além da saúde epidemiológica e percebemos que alguns segmentos dessas populações acabaram se expondo mais, porque o acesso ao SUS é mais generalista e não conseguimos trabalhar a particularidade e a individualidade. Refletimos o contexto do país, mas pensamos no cenário pós-pandêmico também.

 

Quais fatores levaram à criação deste conceito? Ele já vinha sendo levado em conta no SUS?

 

Sim. No SUS já vinha sendo tratado em algumas políticas, em especial na Saúde Indígena. Mas precisamos ampliar a questão, para não acabarmos trazendo uma proposta transversal, aplicando técnica para uma área sem reconhecer na integração os diferentes saberes e culturas, que podem ser usados para fortalecer políticas públicas.

 

O entendimento que se tem é o de que temos de avançar na efetivação desses conceitos e chegar cada vez mais próximos da essência da interculturalidade. A partir da ruptura de alguns paradigmas que vamos avançar com essas políticas públicas de saúde, fortalecer o SUS e ressignificar a política de imunização, dentro do contexto da saúde pública em seu todo. Precisamos subsidiar práticas mais equânimes no serviço de saúde pública dentro da garantia do princípio da equidade de tratar o diferente de forma diferente dentro de suas necessidades em saúde.

 

Há uma relação com saúde mental?

 

Sim, a proposta da saúde intercultural passa pela saúde mental. Não tem como trabalhar a saúde, como proposto pela OMS – completo bem estar físico, mental e cultural, não só ausência de doença – sem reconhecer a saúde intercultural como algo que passa pela saúde mental.

 

À medida que garantimos política de inclusão conseguimos chegar em populações vulneráveis e trabalhamos efetivamente neste sentido, reconhecendo todos os fatores determinantes do processo de saúde-adoecimento. Passa por questões de gênero, sociais, econômicas e culturais. Não obstante, a saúde mental considera que a vulnerabilidade social influencia nesse aspecto e favorece o adoecimento.

 

Como o orçamento de 2023 e o próprio grupo político atualmente no comando do país afetam as pautas debatidas por vocês no encontro? Uma enfermagem intercultural não precisaria de um programa de alocação de recursos específico?

 

O orçamento impacta diretamente nos serviços prestados à população como todo. No contexto da interculturalidade não seria diferente. Percebemos que no âmbito do SUS precisamos de um olhar mais voltado a esta causa e as populações que se enquadram no perfil, para efetivamente se implantar programas. E precisamos de um orçamento adequado para dar uma assistência mais equânime.

 

Se o gestor de saúde não tem essa sensibilidade, teremos cada vez mais distanciamento entre o que está posto, do ponto de vista do SUS enquanto proposta de saúde, e aquilo que de fato chegará na ponta, ao usuário. Afeta-se o entendimento que se tem de o tema seja de fato levado às mesas de discussão com maior frequência. Senão, acaba-se trabalhando de maneira muito transversal, salvaguardadas ou direcionadas a própria conduta de cada profissional dentro das linhas gerais de sua categoria, sem incentivo a algo mais específico.

 

Em Pernambuco há uma ampliação de tais discussões, estimuladas nas discussões de políticas de saúde, mas precisamos avançar mais para garantir o acesso à saúde a toda a população, em especial as mais vulneráveis. É importante sim um olhar específico bem definido.

 

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