02 Setembro 2022
No dia 3 de setembro, o Martirológio Romano recorda duas figuras de santos que foram importantes para o desenvolvimento histórico do cristianismo. Apenas um dos dois, porém, goza do reconhecimento que um santo merece: São Gregório Magno. O outro caso, de Santa Febe, é desconhecido da grande maioria.
Quem era Febe? Por que ela foi importante na história do cristianismo? E por que não a recordamos?
Phyllis Zagano, escritora e renomada estudiosa da história da Igreja, explica-nos isso ilustrando os acontecimentos desses dois diáconos da Igreja antiga, um elevado ao pontificado, a outra, destinado quase ao esquecimento... talvez por ser mulher. Para aprofundar o tema do diaconato feminino, remetemos também ao excelente estudo editado por Serena Noceti, intitulado “Diacone. Quale ministero per quale chiesa?” [Diáconas. Qual ministério para qual Igreja?] (Ed. Queriniana 2017).
O artigo foi publicado em Teologi@Internet, 01-09-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Para o Papa Francisco foi bastante fácil elevar o nível da celebração litúrgica do dia 22 de julho, dedicada a Santa Maria Madalena, apóstola dos apóstolos. Mas o pontífice encontraria dificuldades se tentasse honrar Santa Febe em igual medida, no dia 3 de setembro. Ora, o dia 22 de julho é um dia de grande festa para a Igreja Católica, enquanto Febe nem sequer tem um formulário litúrgico próprio.
Febe – é preciso lembrar – é aquela que levou a carta de Paulo aos fiéis da Urbe (Romanos 16,1-2). Talvez pelo fato de Paulo apresentar Febe como diácona, o trecho não está presente em alguns dos lecionários atualmente em uso na liturgia católica.
De fato, a sua festa não é celebrada no catolicismo romano, embora Febe esteja inserida desde sempre entre os santos dos quais se faz memória no dia 3 de setembro. Ela permanece indicada na edição mais recente do Martirológio Romano, em que o status litúrgico da data não é nem de festa nem de memória, mas de simples “comemoração”.
Ícone de Santa Febe (Foto: Wikimedia Commons)
As esperanças de Febe de ser reconhecida desapareceram em 1969, quando a Igreja de rito latino transferiu a memória do Papa Gregório Magno do dia 12 de março, data da sua morte ocorrida em 604, para o dia 3 de setembro, precisamente, dia em que, em 590, Gregório – ele também diácono – foi “eleito para a Sé Romana”.
Isso certamente não foi um afago para as mulheres, que ainda esperam um maior respeito na Igreja. Desde então, no dia 3 de setembro, recorda-se de modo obrigatório precisamente aquele papa que, aliás, sancionou que Maria Madalena, anunciadora da ressurreição, era uma prostituta.
De fato, em setembro do ano 592, na basílica romana de São Clemente, o Papa Gregório falou dos sete demônios que o Senhor havia expulsado de Maria de Magdala, como lemos em Marcos 16,9. Na homilia, centrada em Lucas 7,36-70, Gregório fundiu a Maria penitente daquele evangelho com a seguidora de Jesus, Maria de Magdala.
Como demonstrado hoje por vários estudiosos, embora Maria Madalena possa ter sofrido devido aos sete demônios, ela não é a mesma mulher que lavou os pés de Jesus com as próprias lágrimas e os ungiu com unguento.
Sete, naturalmente, é símbolo de completude. Os “demônios” que atormentavam Madalena são mais provavelmente um índice de problemas físicos ou talvez espirituais, como ocorre em outras partes das Escrituras, mas não de pecados morais. É mais provável que Maria de Magdala sofresse de depressão, talvez devida à menopausa, ou talvez à perda do marido ou de um filho, ou – quem sabe – a um revés nos negócios.
Portanto, a expressão “expulsou sete demônios” pode se referir a uma cura física ou espiritual realizada por Jesus, como em outros casos, que nada tinha a ver com os chamados sete pecados capitais.
Gregório, no entanto, estava certo da natureza pecaminosa de Maria de Magdala. “E o que são esses sete demônios”, perguntou, “senão a universalidade de todos os vícios? Maria estava possuída por sete demônios, porque estava repleta de vícios.”
Com isso, ele consolidou a reputação de Madalena como “pecadora”, e, durante séculos, ela foi representada nas vestes de uma meretriz ruiva. Essa maledicência provavelmente já era conhecida, mas, depois da homilia 33 de Gregório, ela foi aceita como verdadeira.
Por isso, a Igreja festeja o Papa Gregório, que desqualificou aquela que viu por primeiro o Senhor ressuscitado e faz memória dele precisamente no dia em que se recorda Santa Febe, outra mulher portadora de anúncios mencionados nas Escrituras.
De fato, o dia 3 de setembro seria o dia do seu “renascimento” – da sua morte e nascimento para a nova vida. As Igrejas ortodoxas celebram a liturgia divina em honra de Febe no dia 3 de setembro, mantendo – assim como as Igrejas católicas de rito oriental, os anglicanos e os luteranos – a memória de São Gregório no dia 12 de março. O catolicismo romano, em vez disso, deixa Febe no esquecimento.
Ícones de Dorcas, Lídia e Febe (Foto: Reprodução Facebook Teologia Lutrerana)
A explicação que comumente é dada é que, no rastro do Concílio Vaticano II, houve muita pressão para deslocar as memórias obrigatórias para fora do tempo da Quaresma, já que o período litúrgico as superava automaticamente, tornando-as facultativas. Temia-se que a memória de Gregório, muito conhecido e venerado em Roma, se perdesse.
Em 1969, com o motu proprio Mysterii paschalis, Paulo VI aprovou as normas gerais para o ano litúrgico e o novo calendário romano, afirmando que os santos de importância verdadeiramente universal fossem celebrados obrigatoriamente em toda a Igreja. A celebração de outros santos, embora inserida no calendário, é opcional, e “são dadas a faculdade e a liberdade de recuperar convenientemente nas respectivas regiões a memória e o culto de santos particulares”. Como Gregório era considerado de importância universal, ele “rebaixou” Febe.
Parece que Febe, se é que alguma vez foi lembrada, estava no calendário litúrgico local da já suprimida Arquidiocese de Corinto, mais precisamente em Cencreia (no original, Kenchris), a cidade portuária a leste de Corinto, de onde ela provinha e da qual hoje resta apenas um modesto assentamento costeiro de 238 habitantes.
No entanto, assim como Maria de Magdala, Febe de Cencreia era uma mulher rica e de grande importância, com um papel de destaque entre os seguidores de Cristo. Paulo a apresenta como “nossa irmã”, membro fiel da Igreja de Cencreia. Era uma prostatis, isto é, uma patrona ou benfeitora. Esses títulos indicam um membro muito respeitado da comunidade local, que Paulo recomenda em sua carta à nascente comunidade romana.
Podemos supor que o seu padroado sustentava os esforços da Igreja que estava se desenvolvendo. Ela não só foi escolhida para levar a carta de Paulo a Roma, mas também é provável que ela tivesse que lê-la e interpretá-la, assim que chegasse ao seu destino.
O fato de Febe ser o único personagem nas Escrituras a ter o título de diácono (diakonos) dentro de uma comunidade eclesial é um ponto importante na batalha em curso pelo restabelecimento das mulheres ao diaconato. Embora em muitas das traduções ela apareça como “ministra” ou “diaconisa”, Paulo se referiu a ela com o termo neutro [no grego] de “diácono”, ligando-a a uma comunidade real.
Certamente, havia outras figuras na Igreja primitiva que realizaram tarefas semelhantes. Muitos estudiosos indicam Santo Estêvão, um dos sete escolhidos pelos apóstolos para servir à Igreja. Mas nem ele nem nenhum dos outros seis é chamado de diácono, como Febe.
Poderíamos imaginar Febe mais como Maria de Magdala. Na Antiguidade, permitia-se que os patronos, tanto homens quanto mulheres, desempenhassem funções de liderança na sociedade e na Igreja. Sabemos, naturalmente, que, nos primeiros 250 anos, a maioria das assembleias e das celebrações litúrgicas ocorriam nas moradias, muitas vezes em casas de famílias lideradas por mulheres.
O fato de Paulo definir Febe como “diácona” a vincula a outras figuras que o apóstolo menciona nas suas cartas (cf. 1Timóteo 4,6 e 2Coríntios 6,4). Hoje, estamos acostumados a ouvir o papa ser definido como “servo dos servos de Deus”; ironicamente, foi o Papa Gregório quem usou essa expressão para se referir a si mesmo, e vem daí a associação automática com a figura do pontífice.
Em 14 anos de pontificado, o diácono que se tornou papa conseguiu difamar a primeira testemunha da ressurreição, defender a importância primordial do seu serviço na Igreja e depois, séculos após a sua morte, deixar completamente de lado a celebração do primeiro diácono (uma mulher) que se conhece.
O que dizer? Que a Igreja – o povo de Deus – possa recordar Santa Febe no dia 3 de setembro, mesmo que os documentos oficiais se recusem a fazer isso como conviria.
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A história de dois santos, um papa e uma diácona. Artigo de Phyllis Zagano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU