Relatório da Repórter Brasil revela 157 ocasiões em que retroescavadeiras foram apreendidas pelo Ibama em áreas de mineração ilegal e mostra como os fabricantes de maquinário agrícola fecham os olhos para o uso criminoso de seus equipamentos.
A reportagem é de Naira Hofmeister, publicada por Repórter Brasil e republicada por Portal Amazônia, 04-08-2022.
Na balada mais disputada de um sábado à noite em Itaituba, no Pará – uma festa em um salão na orla do rio Tapajós – os convidados são recepcionados por um imenso painel, pintado à mão, que mostra uma escavadeira da marca Hyundai abrindo uma enorme clareira no meio da Amazônia, ao lado de um pequeno avião. É a representação de um garimpo.
Do outro lado da avenida, no calçadão da orla, barraquinhas de bebidas alcoólicas e lanches dividem espaço com um camelô que vende lembranças da cidade – entre elas, miniaturas de pás carregadeiras e tratores feitos à mão, em madeira. “Pessoal gosta muito, mas não é todo mundo que leva porque acham caro pagar 50 reais”, explica o vendedor.
Situada às margens do Tapajós, Itaituba, no Pará, é conhecida como “cidade-pepita” em razão das atividades de extração de ouro. (Fotos: Marcos Weiske | Repórter Brasil)
Por uma máquina dessas verdadeira, entretanto, não há preço que assuste. Em Itaituba, escavadeiras zero quilômetro estão à venda em grandes revendas de marcas internacionais como Hyundai, Caterpillar e John Deere – em Santarém, a capital simbólica da porção oeste do Pará, cidade três vezes maior, não há nenhuma loja como esta. Não saem por menos de R$ 800 mil, mas dependendo do modelo passam de R$ 1 milhão cada. Apesar do custo, é difícil conseguir pronta-entrega, tamanha a procura.
As oficinas mecânicas estão cheias desses equipamentos sendo consertados, caminhões levam e trazem esses gigantes que podem passar várias toneladas pelo atoleiro do trecho local da Transamazônica. Nem os ferro-velhos escapam: nestes pátios de descarte há centenas de cabines, pás, todo o tipo de peça desses equipamentos, e alguns inteiros também. “Uma máquina queimada pelo Ibama, mas que pode ser recuperada, vale R$ 200 mil”, chuta um taxista.
A procura tem razão de ser: com esses equipamentos, o trabalho de abrir uma cratera para buscar metal, antes feito ao longo de um mês com equipamentos manuais ou maquinário simples, é concluído em uma semana, segundo fontes que trabalham com esta atividade. Por isso, se popularizaram nos últimos anos em garimpos ilegais, onde é preciso correr para obter do subsolo o maior volume de rendimentos no menor espaço de tempo, fugindo da fiscalização.
Um relatório inédito publicado pela Repórter Brasil nesta quinta-feira (4 de agosto) aponta o elo entre a destruição da floresta e grandes fabricantes de maquinário tanto da chamada linha-amarela (tratores de esteira, retroescavadeiras, pás-carregadeiras, escavadeiras hidráulicas, motoniveladoras, rolos compactadores, mini-carregadeiras e manipuladores telescópicos) como equipamentos agrícolas.
Intitulado “A Arma do Crime: Como equipamentos agrícolas e de construção civil estão contribuindo para o desmatamento ilegal da Amazônia”, traz dados que mostram o tamanho do problema.
Via Lei de Acesso à Informação, a Repórter Brasil encontrou 157 ocasiões em que equipes de fiscalização apreenderam ou destruíram máquinas de 19 marcas em garimpos ilegais abertos em terras indígenas ou unidades de conservação, nos últimos cinco anos. É um dado conservador, pois as planilhas fornecidas trazem centenas de outros registros de queima de maquinário – para o relatório só foram contabilizados aqueles que dizem explicitamente que a atividade ocorria em áreas protegidas.
(Foto: Julia Lima | Repórter Brasil)
Das 19 marcas de máquinas encontradas em garimpos ilegais dentro de Terras Indígenas ou em Unidades de Conservação, só seis responderam aos questionamentos da reportagem. A CNH Industrial Brasil, detentora das marcas Case Construction e New Holland, disse que não iria se manifestar. Caterpillar, Hitachi, Hyundai, JCB, LiuGong, Lonking, Sany e XCMG nunca responderam. Fiatallis e Valmet não fabricam mais este tipo de equipamento.
A importância das máquinas para o garimpo ilegal gera um forte lobby para evitar medidas que coíbam o seu uso em áreas protegidas. O próprio presidente Jair Bolsonaro já se manifestou sobre o tema, prometendo mudar as regras que permitem a queima de maquinário ilegal apreendido em ações de fiscalização.
Mas existem outros mecanismos que poderiam impedir que esse maquinário fosse utilizado na destruição da floresta, como o software livre Código da Consciência, capaz de desligar equipamentos que cruzam perímetros de áreas protegidas. Porém não há adesão da indústria à ferramenta, que é gratuita.
O relatório da Repórter Brasil também elenca outras soluções para reduzir o problema, como uma checagem mais rigorosa do comprador e da atividade mineradora, antes de fechar negócio. “É necessário um pacote mínimo de transparência. Consultas como essas não demoram dez minutos, é uma verificação muito fácil de ser feita”, diz a especialista em Conservação do WWF, Deborah Goldemberg.
Mas não é apenas no garimpo que as máquinas pesadas estão presentes. Elas têm um papel central no ciclo do desmatamento da floresta. Um dos principais métodos para desmatar grandes áreas rapidamente é o chamado “correntão”. Uma corrente muito grossa é estendida entre dois tratores de esteira, que avançam sobre a mata derrubando tudo que estiver pela frente.
Nas lavouras, a falta de controle sobre compradores de máquinas agrícolas deixa brechas para que fazendeiros desmatadores tomem empréstimos públicos para adquirir esses equipamentos. Embora haja normas vedando o financiamento de tratores, colheitadeiras e outros maquinários para uso em áreas embargadas na Amazônia, a Repórter Brasil descobriu que produtores rurais com embargos em suas propriedades compraram equipamentos com recursos do BNDES – verbas intermediadas por subsidiárias de bancos internacionais, como Santander e Rabobank, ou instituições ligadas aos fabricantes, caso do banco John Deere, braço financeiro da marca de tratores.
O Manual de Crédito Rural do Banco Central é explícito ao determinar que embargos por desmate ilegal devem impedir empréstimos ou suspender contratos em andamento até a regularização ambiental do imóvel.
Porém, a Repórter Brasil descobriu casos que trazem dúvidas sobre o cumprimento dessa regra. Um exemplo é o de Adenir Rodrigues Augusto, beneficiado em 2020 pelo programa Moderfrota do BNDES, linha de crédito para compra de maquinário. Ele possui três embargos do Ibama, registrados entre 2013 e 2016. Os crimes flagrados incluem o desmatamento ilegal de uma área de 119 hectares na Fazenda Pirâmide, em Tabaporã (MG), no bioma Amazônico. Mesmo com o embargo total da propriedade, o plantio de soja na fazenda prosseguiu. Imagens de satélite consultadas pela Repórter Brasil e analisadas por um especialista mostram que ele cultivou a terra depois dos embargos, entre 2014 e 2022.
Adenir também foi alvo de processo sobre supostas fraudes envolvendo a Sema-MT para viabilizar extração ilegal de madeira. Ele chegou a ser preso na Operação Jurupari, em 2010.
O fazendeiro não respondeu às mensagens enviadas pela Repórter Brasil. Por telefone, disse que “não tinha nada a explicar” e, em seguida, desligou.
Embora o dinheiro seja do BNDES, a instituição responsável por fazer a checagem da conformidade ambiental do contrato era o banco Santander, parceiro do banco de desenvolvimento nacional nesta modalidade de empréstimos, chamada ‘indireta automática”.
O BNDES disse que exige a assinatura de declarações que atestem “a inexistência de infrações de natureza socioambiental” e que é responsabilidade dos bancos parceiros “a verificação do atendimento de tais exigências”. O banco Santander não comentou o caso específico, mas disse que possui procedimentos e políticas que estabelecem critérios de avaliação de risco socioambiental para operações do agronegócio, e investe no aperfeiçoamento constante de suas práticas.
Entretanto, os controles parecem ser fracos ou estarem falhando, na opinião de especialistas. “Se o banco sofresse responsabilidade criminal ou civil por qualquer falha que fizesse no controle socioambiental dos empréstimos concedidos, então o incentivo para reduzir a negligência, intencional ou não, seria forte, pois eles sabem que seriam responsabilizados em caso de falha”, diz Chris Moye, pesquisador da Global Witness.