02 Agosto 2022
"Essa pergunta faz tremer a nossa fé desde os seus alicerces: como é possível que aqueles que são cristãos batizados e se dizem 'consagrados a Cristo' ao mesmo tempo desprezem, persigam e matem uma criança indefesa confiada aos seus cuidados? Pascal já havia constatado que os homens nunca fazem o mal com tanta determinação e maldade quanto os homens religiosos o fazem por razões que imputam a Deus", escreve Enzo Bianchi, monge italiano e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado por La Repubblica, 01-08-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Cinquenta anos atrás, na Igreja Católica, começava um novo caminho: o da assunção de culpas e responsabilidades, da confissão dos pecados gravíssimos cometidos na história e, portanto, do pedido de perdão.
Foi Paulo VI quem interveio pela primeira vez nesse sentido, mas somente com João Paulo II e em meio a muitas oposições e polêmicas foi possível confessar publicamente muitos pecados cometidos pelos "filhos da Igreja", ou seja, por seus membros: papas, bispos, presbíteros e fiéis.
E assim os pedidos de perdão foram dirigidos primeiro aos judeus, objetos de desprezo, hostilidade e perseguição por parte da Igreja, e depois pedidos de perdão por uma defesa da verdade perseguida com a violência e até mesmo a morte, pedidos de perdão por abusos e prepotências.
Muitos se perguntaram se fazia sentido pedir perdão no lugar de outros, mas a Igreja, na consciência de ser um corpo solidário que atravessa os séculos, respondeu que poderia realizar esse ato e, aliás, sentia que era um dever para com as vítimas e Deus.
Certamente é um dever, mas não deixa de ser verdade que um certo ritualismo cerimonial corre o risco de exorcizar o sentido de culpa. Por isso o Papa Francisco, em sua viagem penitencial ao Canadá, continuou a dizer e repetir com força: "Expresso vergonha e dor e renovo meu pedido de perdão pelo mal cometido por tantos cristãos." A cada encontro com as diversas comunidades indígenas, Francisco, visivelmente entristecido, assumia a vergonha sem atenuação e reconhecia o mal feito pelos católicos, partícipes de um genocídio.
Esses crimes perpetrados contra populações inermes e indefesas não ocorreram em séculos distantes, mas somente poucas décadas atrás e em um país, o Canadá, que faz parte do Ocidente cristão. Como isso foi possível? Mas aqui entre nós cristãos surge uma pergunta ainda mais radical do fundo do coração: como é possível que esses crimes tenham tido como protagonistas eclesiásticos, padres, missionários, freiras, pessoas que diziam ter dado a vida pelo Evangelho, mas ao serviço de quem?
Essa pergunta faz tremer a nossa fé desde os seus alicerces: como é possível que aqueles que são cristãos batizados e se dizem “consagrados a Cristo” ao mesmo tempo desprezem, persigam e matem uma criança indefesa confiada aos seus cuidados? Pascal já havia constatado que os homens nunca fazem o mal com tanta determinação e maldade quanto os homens religiosos o fazem por razões que imputam a Deus. Mas então o Evangelho é tão inerme que pode ser lido, assumido, abraçado e ao mesmo tempo desmentido e pisoteado?
Sim, muitos cristãos viveram e podem viver se inspirando no Evangelho a ponto de "fazer o bem" dedicando, dando a vida, mas outros podem ser cristãos militantes e empenhados, padres e eclesiásticos, e ser apenas algozes: é dramático, mas é assim!
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Até a Igreja conhece o mal. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU