20 Junho 2022
O aborto volta a dividir as sociedades ocidentais. Dos Estados Unidos, onde a Suprema Corte parece inclinada a derrubar a sua posição abortista, à União Europeia, onde o Parlamento retoma e relança o problema, na intenção de transformar a descriminalização do gesto abortivo em um direito absoluto ao aborto.
A reportagem é de Lorenzo Prezzi, publicada em Settimana News, 18-06-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No arco de poucos meses, o Parlamento europeu aprovou uma série de relatórios que, embora não tenham nenhuma dimensão vinculante para os Estados membros, constroem a plataforma de consenso para eventuais modificações à lei.
Em 24 de junho de 2021, ele votou o relatório Matić (político croata Predrag Fred Matić) sobre a “situação da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos na União Europeia, no âmbito da saúde das mulheres”. O presidente francês interveio na assembleia em 19 de janeiro de 2022, defendendo o reconhecimento do aborto como direito.
Em 3 de maio de 2022, os parlamentares aprovaram uma resolução sobre o tema das perseguições, na qual retorna a mesma afirmação.
Finalmente, em 9 de junho de 2022, foi aprovada a resolução sobre “Ameaças ao direito ao aborto no mundo: a possível revogação do direito ao aborto nos Estados Unidos pela Suprema Corte”.
O relatório Matić, aprovado com 378 votos (255 contra, 42 abstenções) em 24 de junho de 2021, “vai além do seu mandato ao abordar questões como a saúde, a educação sexual e a reprodução, assim como o aborto e a instrução, que se referem aos poderes legislativos próprios dos Estados membros” (M. de la Pisa e J. Wiśniewska, contrárias à resolução).
“Ele trata o aborto como um suposto direito humano que não existe no direito internacional. Trata-se de uma violação da Declaração Universal dos Direitos Humanos e dos principais tratados vinculantes, além da jurisprudência do Tribunal Europeu e do Tribunal de Justiça da União Europeia”. “Um massacre jurídico. Um homicídio pode se tornar um direito?”, questiona T. Brandi, presidente da Pro Vita.
Emmanuel Macron, presidente francês, falando na assembleia europeia de início do semestre da presidência francesa (19 de janeiro de 2022), sobre o Estado de direito, afirmou: “Gostaria que reforçássemos os nossos valores europeus, que são a nossa unidade, o nosso orgulho e a nossa força. Vinte após a proclamação da nossa Carta dos Direitos Fundamentais, que consagrou em particular a abolição da pena de morte em toda a União, gostaria que essa Carta fosse atualizada, especialmente para ser mais explícita sobre a proteção do ambiente e o reconhecimento do direito a abortar”.
“Não existe um direito ao aborto no direito europeu ou internacional”, respondem os bispos da Comece (Comissão Episcopal dos Bispos da União). “Tentar mudar nesse sentido não só vai contra as convicções e os valores europeus fundamentais, mas também seria uma lei injusta, sem fundamento ético e destinada a ser motivo de conflito perpétuo entre os cidadãos da União Europeia.”
A resolução do Parlamento “sobre a perseguição das minorias por motivos de convicção ou religião”, aprovada em 3 de maio do ano passado, é mais complexa. O relatório evidencia muitos elementos totalmente compartilháveis sobre o tema do direito à liberdade de pensamento, consciência e religião.
Testada por ser minoria, pelos comportamentos estatais na pandemia, pelo fato de ser uma pessoa frágil (crianças, mulheres, idosos), por não ter representação política, pela impunidade dos agressores etc., a liberdade religiosa e de consciência deve ser defendida diante das crescentes perseguições. Mas também neste contexto de atenção positiva, aliás muito tardia em relação aos fenômenos persecutórios que explodiram nos primeiros anos do século, em particular contra os cristãos, introduz-se a questão dos direitos sexuais e reprodutivos, incluindo o aborto (n. 22). Direitos estes que se situam acima dos primeiros.
Assim reage a secretaria geral da Comece: “Qualquer tentativa de minar o direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião e o direito à vida, recorrendo a interpretações abusivas que restringem indevidamente o seu âmbito de legitimidade ou os sujeitam aos chamados ‘direitos’ de nova criação e não consensuais, incluindo o aborto, é uma grave violação do direito internacional. Operação que desacredita a União Europeia perante a comunidade internacional e perante milhões de cidadãos europeus”.
“Ameaças ao direito ao aborto no mundo: possível revogação do direito ao aborto nos Estados Unidos pela Suprema Corte” é o título da resolução aprovada pelo Parlamento em 9 de junho.
Diante da probabilidade de que a Suprema Corte estadunidense revogue e anule a sentença Roe versus Wade que, em 1973, abriu à descriminalização do aborto nos Estados Unidos, os parlamentares europeus afirmam com veemência a legitimidade e a oportunidade de uma legislação favorável aborto, temendo que a eventual restrição jurídica se traduza em sofrimento para as mulheres estadunidenses (uma lei do Texas já está em vigor nessa linha, outros 12 Estados estão prontos para seguir essa direção, e 13 Estados têm leis “de encaixe” em sua gaveta para serem aprovadas na eventualidade), mas, acima de tudo, inicie um contágio em muitos outros Estados. Também na União. Em particular, confirmando a política restritiva polonesa e as dificuldades diversificadas em relação ao aborto em Malta, Eslováquia, Hungria e Itália (pelo peso da objeção de consciência dos médicos).
Por outro lado, há 60 países que nas últimas décadas ampliaram as malhas jurídicas nesse sentido. Entre os mais recentes: Argentina, México, Equador, Colômbia, Chile, Angola, Índia, Quênia, Nova Zelândia, Irlanda do Norte, Coreia do Sul, Tailândia.
Mas a assembleia parlamentar europeia não escapa à força orientadora da jurisprudência estadunidense. No aparato argumentativo ressurge o pedido de que o direito ao aborto entre na Carta Europeia, que seja limitado o espaço da objeção de consciência do pessoal médico, que as instituições de saúde não possam excluir o serviço abortivo. Elementos fortemente criticados pela Comece, que chama a atenção para a inaceitável ingerência em decisões jurisdicionais de Estados democráticos soberanos, aliás, não membros da União. Ela lembra que o aborto não é um direito positivo e que a sua absolutização contradiz direitos reconhecidos desde sempre, como o direito à objeção de consciência.
Em todos os casos assinalados, parece ter desaparecido não só a afirmação dos direitos do nascituro, mas também um cuidado efetivo pela família e pelo acompanhamento à decisão para as mulheres que o solicitam. A responsabilidade, o papel e a decisão das mulheres devem ser centrais nesse âmbito.
Sobre esses temas, não é possível ignorar o problema demográfico e o que isso implica para os Estados da União.
Nos textos citados, não se esclarece a relação entre os “direitos fundamentais”, aqueles fixados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, e os “novos direitos subjetivos” que foram se impondo a partir dos anos 1990.
Os “novos direitos”, que dizem respeito ao aborto, à identidade sexual, à coabitação homossexual e à mudança de identidade sexual etc. recebem a sua compartilhável legitimação do princípio da não discriminação e, no que se refere ao aborto, da possibilidade de discernimento dos casos em que o direito da mãe prevalece sobre o direito do nascituro.
No entanto, algumas contradições de fundo não são reconhecidas: por que os “novos direitos” têm uma pretensão absoluta, enquanto os direitos fundamentais (valor intangível da pessoa, liberdade de consciência, de expressão, de pensamento, de exercício da fé etc.) são todos de algum modo reguláveis pelo interesse público?
Por que os “direitos fundadores” são alinhados e compatíveis, enquanto os “novos direitos” às vezes se sobrepõem e penalizam os “direitos fundadores”?
Por que, em sociedades que não compreendem os “novos direitos”, eles devem ser impostos com o resultado de serem percebidos como uma nova servidão ideológica? É possível “obrigar” alguém a ser livre?
Por que transformar a “não discriminação” de uma condição prévia a ser honrada a direito positivo?
Questões em aberto para o debate público em que as Igrejas têm espaço de palavra em busca de um consenso o mais compartilhado possível. Assim se expressava Bento XVI na ONU em 2008: “A experiência nos ensina que a legalidade muitas vezes prevalece sobre a justiça, quando a insistência nos direitos humanos os faz parecer como o resultado exclusivo de procedimentos legislativos ou de decisões normativas tomadas pelas várias agências de quem está no poder. Quando são apresentados simplesmente em termos de legalidade, os direitos correm o risco de se tornar proposições frágeis, desvinculadas da dimensão ética e racional, que é o seu fundamento e escopo”.
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União Europeia-EUA: o aborto em questão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU