19 Mai 2022
A historiadora estadunidense Mary Elise Sarotte explica em seu livro Not one inch: America, Russia, and the Making of Post-Cold War Stalemate [Nem mais uma polegada: América, Rússia e a criação do impasse pós-Guerra Fria] como os EUA promoveram a expansão permanente da OTAN para fechar as portas à mudança na ordem mundial após a queda do Muro de Berlim.
A reportagem é de Andy Robinson, publicada por La Vanguardia, 12-05-2022. A tradução é do Cepat.
A queda do Muro de Berlim em 1989-90 e dos regimes autoritários na Europa Oriental foi “um momento com muitas possíveis linhas de tempo e diferentes opções para determinar o futuro”, diz Mary E. Sarotte, historiadora e autora de Not one inch (Yale, 2021), que documenta a queda da União Soviética e a ampliação da OTAN na década de 1990.
Mas esse momento fecundo foi desperdiçado, com resultados trágicos para a paz e a liberdade. Isso não era inevitável. Naquela época, “as pessoas no poder deram algumas voltas à catraca para fechar as portas à mudança”, disse Sarotte em entrevista parcialmente publicada na semana passada no La Vanguardia. “Uso a metáfora da catraca porque, uma vez feito o giro, não há como voltar atrás”, acrescentou em comentários ainda inéditos.
As portas para a mudança começaram a se fechar já no final de 1990, e o golpe final ocorreu nos anos seguintes. Os sucessivos governos de Bush pai e Clinton, em vez de buscar uma fórmula para estabelecer uma paz duradoura com a Rússia, optaram por estimular a ampliação da OTAN para consolidar sua vitória na Guerra Fria. Desde 1990, quatorze países aderiram à OTAN, incluindo a Polônia, Hungria, Tchecoslováquia e Estados Bálticos. Logo será a vez da Finlândia e da Suécia.
Sarotte – professora da conservadora Universidade Johns Hopkins e distante de uma tradição intelectual de esquerda – não se opõe à expansão da OTAN em si. Mas lamenta que tenha sido feita sem tomar as medidas necessárias para que a Rússia não se sentisse ameaçada e humilhada. “O degelo após a Guerra Fria foi um momento precioso, mas foi desperdiçado”, disse ela na entrevista.
A primeira volta da catraca foi dada pelo presidente dos EUA, George H. W. Bush.
Em 1990, vários políticos europeus queriam aproveitar a queda do Muro de Berlim e o colapso da União Soviética para desmantelar tanto a OTAN como o Pacto de Varsóvia. Isso daria vida a uma nova Europa independente dos EUA. Hans Martin Genscher, chefe de Relações Exteriores do governo de Helmut Kohl na Alemanha, por exemplo, defendia a criação de um pacto pan-europeu de defesa que incluiria a Rússia, mas não os EUA.
Por sua vez, Vaclav Havel, o líder da luta pela democracia na Tchecoslováquia e futuro presidente da República Tcheca, propôs o desmantelamento das duas alianças militares que considerava anacrônicas no novo mundo pós-soviético. Mas “esse cenário não era possível no governo de George H. W. Bush... Para Bush, a OTAN não só precisava ser mantida, mas também sua capacidade de expansão precisava ser mantida”, disse Sarotte na entrevista. “Os EUA haviam vencido a Guerra Fria, de modo que Bush se perguntava: por que vamos fazer concessões?
James Baker, secretário de Estado de Bush, aproximou-se da posição de Genscher por algumas semanas em 1990. Daí a famosa oferta feita em uma reunião com Mikhail Gorbachev, em fevereiro de 1990, de não expandir a OTAN “nem mais uma polegada” – título do livro de Sarotte – em troca do apoio de Gorbachev à reunificação alemã.
Mas, como explica Sarotte na entrevista ao La Vanguardia, foi uma oferta improvisada do impulsivo secretário de Estado sem o apoio do presidente. Bush forçou Baker a mudar de ideia. A OTAN permaneceria e se expandiria. Na verdade, “não é de admirar que a OTAN tenha sido mantida”, diz Sarotte. “Quando você tem uma instituição tão grande como a OTAN, é sempre difícil desmantelá-la”.
Bush anunciou com grande alarde uma “nova ordem mundial” após a queda da URSS. Mas, na realidade, sustenta Sarotte, a decisão de expandir a OTAN foi tomada justamente para garantir a permanência da velha ordem mundial. A do domínio estadunidense. “É estranho que Bush tenha chamado isso de nova ordem mundial. Porque não era”. Os EUA dominaram nos anos da Guerra Fria e dominariam ainda mais na nova era sem a URSS, mas com a ajuda da OTAN. “A OTAN venceu a Guerra Fria. Os EUA eram a potência dominante na OTAN, então a ordem mundial existente era ótima para os EUA”, disse Sarotte.
Cabe lembrar que Bush pai foi encorajado em sua ânsia de expandir a OTAN pelo jovem Dick Cheney, arquiteto das guerras no Afeganistão (sob a bandeira da OTAN) e no Iraque, uma década depois, durante o governo de George Bush filho.
Daí a ingenuidade de libertários anti-soviéticos como Havel, que acreditavam que a queda da URSS tornaria a OTAN desnecessária. “Havel e outros, pessoas que lutaram contra a repressão da URSS, queriam criar uma Europa sem armas, sem a OTAN e sem o Pacto de Varsóvia. Esta teria sido uma nova ordem mundial”, diz Sarotte. “Bush tinha que parar com tudo isso”. Logo Havel se juntaria à causa tornando-se um dos defensores mais ideológicos da OTAN e da hegemonia de Washington.
Conforme explicado no livro de Sarotte, um prodigioso trabalho de documentação com 1.800 notas de rodapé referentes a centenas de fontes de informação desclassificada, todos os líderes em Moscou se sentiram enganados após as primeiras ofertas de não expandir a aliança atlântica. Primeiro Gorbachev, depois Yeltsin e, finalmente, Putin. A ampliação da OTAN gerou uma preocupação – real ou imaginária, não importa – na Rússia por sua própria segurança interna dada a proximidade da aliança militar ocidental com suas fronteiras. Isso desencadeou uma dinâmica perigosa que é muito evidente agora. A OTAN insiste que sua expansão e aumento da presença militar é uma resposta preventiva à militarização russa. E a Rússia responde na mesma moeda.
O segundo giro da catraca que fechou definitivamente a possibilidade de um futuro melhor foi dado por Bill Clinton. “Quando Clinton se tornou presidente em 1992, o debate não era se a OTAN seria expandida. Isso já era um fato consumado. A questão era como”.
Clinton, a princípio, apoiava um processo gradual para que a Rússia não sofresse humilhações. “Foi escolhido não dar um tapa na cara da Rússia. Procurava-se um meio-termo, e este era a Parceria para a Paz em que foram levantadas opções para aderir à OTAN sem o artigo 5º (que garante as intervenções dos restantes membros da aliança em caso de agressão a um deles). Isso, especialmente para países geograficamente próximos à Rússia, parecia uma provocação em Moscou, e os idealizadores da Parceria para a Paz, como William Perry, secretário de Defesa de Clinton, atenderam a esses temores. “Foi escolhida uma fórmula ao estilo da Noruega, que, sendo um país fronteiriço, queria reduzir a impressão de agressividade ao rejeitar as bases estadunidenses e armas nucleares”.
Clinton entendeu na época a importância de buscar uma fórmula para o alargamento da OTAN aceitável para a Rússia. Mas em 1994, sob pressões dos neoconservadores republicanos de Newt Gingrich no Congresso, o presidente democrata mudou de postura, um exemplo típico da política clintoniana de triangulação já visível novamente no governo Biden. “Clinton, em um momento chave, mudou de ideia e traçou um plano de expansão já com o artigo 5º, um processo sem fim com a porta sempre aberta”. Perry renunciou em protesto contra a nova política de Clinton que – segundo entendia o secretário de Defesa – forçaria a Rússia a defender sua segurança interna.
Queira ou não, tudo isso está na raiz da atual guerra na Ucrânia e do grave perigo de escalada militar, inclusive nuclear. Putin é responsável pela agressão contra a Ucrânia. Mas o pano de fundo é a insistência de Bush, Clinton e de todos os presidentes dos Estados Unidos em consolidar o poder da superpotência por meio de uma aliança concebida desde o início – embora essa não seja a perspectiva de Sarotte – para camuflar suas próprias agressões.
E ao manter e expandir a OTAN, longe de proteger o direito à autodeterminação das nações que se afastaram da órbita soviética, tornou-se impossível o pleno exercício de sua soberania. Com a crescente expansão da OTAN nas fronteiras da Rússia, a preocupação de Moscou com sua segurança justificaria reações violentas contra os novos – e velhos – nacionalismos.
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Por que a OTAN cresce sem parar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU