16 Mai 2022
Há alguns anos, Enrique Leff, pesquisador do Instituto de Pesquisas Sociais da UNAM, do México, considerava que o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) poderia ser uma referência importante para continuar suas pesquisas sobre a questão ambiental. Foi assim que, após um árduo trabalho de pesquisa e reflexão, escreveu o livro El fuego de la vida. Heidegger ante la questión ambiental (Siglo XXI Editores, 2018).
A reportagem é de Roberto Gutiérrez Alcalá e publicada por El Universal, 13-05-2022. A tradução é do Cepat.
A preocupação e o interesse de Leff por Heidegger surgiram de suas primeiras leituras desse filósofo, que se refletiram um tanto marginalmente em seus livros anteriores a El fuego de la vida. Mas conforme foi abordando a questão ambiental a partir da economia, da sociologia, da antropologia e da ecologia, sabia que o enigma da crise ambiental tinha que ser questionado a partir da filosofia, no âmbito da história da metafísica, e que o pensamento de Heiddeger poderia ajudá-lo nesta tarefa.
Este enigma, segundo Leff, pode ser enunciado da seguinte forma: como é que o Homo sapiens sapiens, este ser racional que pela razão pensou compreender seu mundo e suas condições de existência, prejudicou as condições de sustentabilidade da vida, nesta etapa da história, gerando uma crise ambiental tão profunda quanto a que estamos vivendo.
“E como esse enigma não é resolvido por nenhuma das ciências, nem pela conjunção de todas elas, foi necessário investigar o pensamento filosófico, ou seja, o berço dos modos de raciocínio da mente humana que levaram ao estabelecimento do regime da racionalidade da modernidade que desencadeou os processos de degradação da natureza”.
O que há no pensamento de Heidegger que se conecta com a irrupção do pensamento propriamente ecológico, primeiro, e do ecologismo radical, depois?
“Em primeiro lugar, deve-se destacar o fato fundamental pelo qual Heidegger é reconhecido: sua ruptura com o idealismo transcendental que vai de Kant a Husserl, o que implica um profundo questionamento dos limites do conhecimento científico e daquilo que é socialmente construído a partir da legitimidade do pensamento científico, entendido como a forma superior de compreender o mundo e a condição humana. Assim, a ontologia existencial de Heidegger, que questiona o saber e a compreensão das coisas do mundo a partir da condição existencial do ser humano, aparece como um eixo fundamental da crítica profunda do ambientalismo à história da metafísica e ao entendimento propriamente científico da crise ecológica que estamos sofrendo. Ou seja, era inevitável passar por Heidegger”, indica Leff.
Na obra de Heidegger, destaca-se especificamente o texto da conferência A questão da técnica (proferida na Academia Bávara de Belas Artes em 18 de novembro de 1953), a partir da qual se desprende uma conexão com o que, nos últimos 60 anos, foi se construindo como pensamento crítico ambiental.
“O que, em suma, Heidegger diz nesse texto é que toda a história da metafísica, ou a história da humanidade dominada pelo pensamento filosófico do Ocidente, desembocou, na modernidade, na configuração da era da imagem do mundo, em que se estruturou um mundo objetivado em um marco de compreensão. A Gestell, que caracteriza o mundo moderno, é uma estrutura de localização, ordenamento, arranjo e domínio de todos os entes. Neste momento da história da civilização humana, da compreensão das coisas do mundo, da produção dos acontecimentos e da dinâmica do mundo, assim como a busca da sua verdade objetiva, verificável pelos procedimentos de falsificação da ciência, inscrevem-se no molde da racionalidade do ser humano configurado pelo pensamento ontológico, aquele que privilegiou a pergunta pelo ser em detrimento da pergunta pela vida. Esta configuração da mente humana acabou por objetivar o mundo, transformando-o em um mundo em que a totalidade dos entes foi disposta, diz Heidegger, para ser apropriada por meio do cálculo e da planificação. Esse modo de compreensão ao qual a humanidade chegou através do domínio da ordem ontológica da racionalidade tecnoeconômica —que não é o das civilizações e culturas dos povos originários—, foi construído a partir do domínio do Logos, da Ratio, do Ego cogito e do princípio da razão suficiente ao longo da história da metafísica”.
Na opinião do economista e sociólogo ambiental, além de afirmar o que Heidegger poderia ter pensado sobre a questão ambiental assim como é pensada a partir do pensamento ambiental crítico, o importante é reconhecer que abriu o pensamento para a compreensão da questão ambiental a partir de suas condições ontológicas, “e assim, por um lado, saber que estamos vivendo em um mundo objetivado, construído a partir dos modos de produção de conhecimentos e de verdades científicas que desarticularam a estrutura ecológica da biosfera e que não são suficientes para compreender a questão ambiental ou resolver a crise ambiental; e, por outro, reconhecer outros modos de entendimento que não são regidos pela razão pura, mas que se configuram nos modos de significância da factibilidade da vida e nos imaginários sociais que mobilizam a ação das pessoas a partir de outros impulsos e sentidos de vida”.
Leff assinala que Heidegger não conseguiu desenvolver plenamente os princípios de sua crítica da modernidade sobre a degradação da natureza em A questão da técnica.
“É verdade que ele cunhou frases em que afirma que o mundo da técnica, da representação das coisas do mundo, desencadeia a destruição do planeta, mas nos perguntamos até que ponto os filósofos estão pensando nos significados e consequências daquilo que dizem quando escrevem esse tipo de frases aforísticas, às vezes um pouco enigmáticas. Quando Nietzsche diz: O deserto cresce, está pensando na desertificação dos territórios, no aquecimento global, no desmoronamento dos ciclos ecológicos do planeta, ou é uma metáfora do niilismo da razão, da desertificação da alma humana? Quando Heidegger se refere ao modo dominante de compreender o mundo disposto a ser apropriado pela técnica, questiona-se até onde vai essa compreensão em termos do peso que a racionalidade científica e a racionalidade econômica têm no desencadeamento da degradação ecológica do planeta. Heidegger não desenvolve as consequências ecológicas do mundo objetivado. Deixa solta essa frase que agora podemos retrabalhá-la na perspectiva da crise ambiental. Mas primeiro é preciso passar por Marx e entender não apenas como o mundo está disposto a ser apropriado por meio do cálculo e da planificação, mas também como o modo de produção capitalista incide sobre o desarranjo ecológico do planeta através do processo econômico que em sua dinâmica acumulativa gera o consumo destrutivo da natureza”.
Assim, segundo Leff, Heidegger não é o fundador do ambientalismo. Tampouco outros grandes filósofos que o seguiram criticamente, como Derrida, cuja grande obra se desenrolou justamente quando eclodiu a crise ambiental planetária nas décadas de 1960 e 1970.
“É também o que acontece com Marx. Hoje, mais de um pensador busca resgatar um suposto ecologismo em Marx, verificando até que ponto o modo de produção capitalista tem sido o motor da destruição do planeta. Obviamente, mais do que em Heidegger, em Marx estão os elementos para entender como a racionalidade econômica, associada à ciência e à tecnologia, desencadeou essa crise ambiental. Mas isso não implica em afirmar que Marx tenha sido propriamente um ambientalista ou um precursor do ecologismo, porque não desenvolveu as relações entre a produção da mais-valia na acumulação de capital e a degradação do tecido da vida na biosfera. Sem dúvida, a crítica de Heidegger ao pensamento metafísico fornece elementos para fundamentar o pensamento ecológico. Mas a questão ambiental tem sido pensada radicalmente a partir de uma ontologia da vida, do pensamento emancipatório decolonial, das condições ecológicas e culturais do Sul”, conclui.
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Heidegger e a degradação do meio ambiente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU