18 Abril 2022
Celebrar a Páscoa é uma coisa bem diferente do status quo em que todos nos encontramos enredados nesta chamada “ordem mundial”. Ela é alteridade radical em relação a esta; de fato, o Ressuscitado está além de tudo isso e representa um início novo que anuncia o novum de Deus, a sua novidade recriadora das pessoas com o seu envolvimento responsável em relação à única história comum.
A opinião é de Cosimo Scordato, teólogo e padre da Arquidiocese de Palermo, na Itália. O artigo foi publicado em Come Se Non, 17-04-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Como cantar os cânticos do Senhor em terra estrangeira?” (Sl 137,4), interroga-se o salmista enquanto o povo judeu se encontra deportado, alienado na Babilônia.
Tal pergunta ecoa no nosso coração nesta atmosfera de alienação, que estamos vivendo no enésimo dia de guerra na Ucrânia. Não que tenham faltado guerras nos últimos anos; talvez não tenhamos nos dado conta delas ou, talvez, tenhamos preferido não pensar nelas; mas agora somos interpelados cada vez mais de perto.
A pergunta é reproposta com toda a sua dramaticidade: qual é o sentido de celebrar a Páscoa da Ressurreição, ou seja, a vitória da vida sobre a morte, se os cristãos estão combatendo uns contra os outros?
Ao dizer “cristãos” não nos referimos apenas aos soldados ou aos beligerantes, mas também aos respectivos chefes das superpotências e aos representantes dos Estados europeus, todos os quais já entraram em uma lógica cada vez mais rigorosa de ter de aumentar as apostas nas armas.
Sabemos (e os debates cotidianos confirmam isto) que, a partir de qualquer ponto de vista que olharmos para esta guerra para encontrar uma justificativa para as escolhas que são feitas, tocamos com a mão o fato de que se tomou uma direção errada; quer as armas sejam enviadas para apoiar a Ucrânia ou não, percebemos que nem uma nem outra coisa faz sentido, porque, no fundo, estamos simplesmente procurando o mal menor; é como se tivéssemos entrado em um curto-circuito, que, façamos o que fizermos, nos leva de volta à interrupção da energia e, portanto, à evidência de que o circuito tem algo de errado.
Na verdade, no horizonte de uma guerra tudo se torna absurdo, e, mesmo que se vise ao mal menor, como se faz para identificá-lo? De fato, sobre o prato da balança contrapõem-se valores éticos e morais como a liberdade, a justiça, a autodeterminação de um povo, a democracia; e valores que poderíamos chamar de “naturais”, como a vida, a segurança, o bem-estar; mas tal contraposição inevitavelmente envolve perdas, seja em uma direção ou em outra.
Precisamente essa sensação de curto-circuito nos coloca diante da necessidade de repensar as nossas modalidades de convivência do modo como as desenvolvemos nas últimas décadas. Não conseguimos dar respostas como se fossem receitas; na verdade, as situações se deterioraram cada vez mais até se degradarem e exporem as ambiguidades que já existiam desde antes e que agora estão vêm à tona; se algumas ambiguidades podem ser atribuídas a aspectos sociais e culturais, no plano ético elas devem ser atribuídas sobretudo à sensação de inimizade...
Pois bem, celebrar a Páscoa é uma coisa bem diferente do status quo em que todos nos encontramos enredados nesta chamada “ordem mundial”. Ela é alteridade radical em relação a esta; de fato, o Ressuscitado está além de tudo isso e representa um início novo que anuncia o novum de Deus, a sua novidade recriadora das pessoas com o seu envolvimento responsável em relação à única história comum.
A ressurreição de Jesus não é fruto da paixão sofrida e dos atos daqueles que a infligiram; ela brota do Amor, que ele encarnou e que não se deixou ser sugado pelas falsificações da vida e dos sistemas existentes; Amor capaz de olhar para além deles, aceitando também o risco da morte; talvez, o verdadeiro escândalo da Cruz esteja em sofrer o mal em vez de fazê-lo; sofrer não no sentido de aceitá-lo, mas de não condescender de modo algum com a sua lógica, propondo uma resposta descontínua a ele: dar a vida, dar a própria vida.
Como traduzir o fato de “dar a vida” em política não é simples e envolve uma grande determinação a explorar caminhos antigos e novos; trata-se de repensar radicalmente as escolhas no sentido da promoção das pessoas, da qualidade de vida própria e alheia por meio de processos de libertação de todas as formas de violência e por meio da construção de condições que predisponham estruturalmente a uma paz permanente; esta, porém, deve ser entendida não apenas como ausência de guerras, mas como busca da realização de toda a pessoa e de todas as pessoas; a paz, portanto, promove o bem-estar comum e compartilhado, a cooperação permanente, a acolhida das diversidades das cores dos continentes e faz delas motivo de festa.
Enquanto nos focarmos nos exércitos e nas armas, ainda estaremos no tempo da paixão, ou seja, naquelas condições que mais cedo ou mais tarde promovem violência, execuções capitais, morte. Celebrar a Páscoa torna-se então um ato arriscado, na medida em que se entra em uma lógica totalmente alternativa àquela que alimenta o sofrimento dos seres humanos e pisoteia a sua dignidade; nesse sentido, a alteridade e a ulterioridade do Ressuscitado ainda devem ser totalmente experimentadas, em primeiro lugar pelos próprios cristãos, os quais por muitos séculos o fizeram conviver com a sua negação, isto é, por meio de guerras, perseguições, subjugação das consciências, na ilusão de poder celebrá-lo em meio ao perfume do incenso, mas deixando a humanidade perecer.
Para celebrar a Páscoa... é preciso a coragem verdadeira da ruptura com o passado tumular!
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Ousar a Páscoa? Artigo de Cosimo Scordato - Instituto Humanitas Unisinos - IHU