04 Abril 2022
Fragilidade, audácia profética, santidade: estas são as palavras-chave da reflexão proposta pelo cardeal português José Tolentino de Mendonça, teólogo, poeta, arquivista e bibliotecário da Santa Igreja Romana desde 2018. Nascido no Funchal (Ilha da Madeira | Portugal) em 1965, foi vice-reitor e docente da Universidade Católica de Lisboa. Suas publicações recentes incluem O poder da esperança e Uma gramática simples do humano.
A entrevista é de Cristina Uguccioni, publicada por Catt.ch, 30-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Você afirmou que este infeliz tempo de pandemia representa também uma oportunidade de reaprender muitas coisas. Quais? Desde que a guerra na Ucrânia começou, cabe se perguntar: a família humana está realmente reaprendendo?
Em primeiro lugar, é preciso dizer que a devastadora pandemia e agora esta terrível guerra desconstroem o mito da segurança, do poder e do progresso que caracterizaram o consciente e o inconsciente das nossas sociedades, pelo menos no Ocidente. De repente nos redescobrimos muito mais frágeis e indefesos do que pensávamos. E acertar as contas com a própria fragilidade não é fácil: por um lado, obriga-nos a uma revisão crítica das falsas certezas em que nos baseávamos. Por outro lado, convoca-nos à audácia profética de empreender caminhos novos. Este, que nos parece um tempo de fechamento assustador, é, ao contrário, o tempo de audácia profética.
Estou pensando, por exemplo, nas mensagens sobre as quais o Papa Francisco insiste: precisamos entender melhor o que significa "ninguém se salva sozinho" e "somos todos irmãos". Se este momento tão duro não nos levar a um repensamento, teremos perdido o encontro com a história. Também porque - não nos iludamos - se não requalificarmos eticamente nossas relações com o mundo e com o nosso semelhante afundaremos cada vez mais dando razão ao mais pesado pessimismo. É preciso escolher o caminho da esperança.
Que momento o catolicismo está passando atualmente?
O catolicismo também é chamado a tomar consciência de sua própria fragilidade. Acreditávamos estar em uma fortaleza protegida do mal, isenta das culpas que atribuímos apenas ao mundo, e agora vemos dolorosamente que não é bem assim. Devemos olhar profeticamente para dentro de nós mesmos, ver nossas fragilidades, com aquele olhar crítico, decisivo e esperançoso que encontramos no Evangelho. Nesse sentido, somos colocados diante do desafio de uma requalificação espiritual - na linha indicada pelo estilo de Jesus - de muitas de nossas formas de agir e de nossas formas de organização. Francisco não tem medo de usar a palavra crise. Para o catolicismo esta é realmente uma hora de crise, mas também de tantos sinais emergentes que são premonitórios da primavera.
No Ocidente dominado pelo ditame da eficiência e da otimização dos recursos, corre-se o risco de viver uma existência em que se fazem muitas coisas, até mesmo boas e necessárias, mas em que se perde a capacidade de se espantar e de contemplar. Como evitar perder essa indispensável habilidade?
Nós nos definimos como Homo faber: o artesão, o artífice, o homem que se realiza na ação. E esquecemos que a ação é incompleta quando se esgota no mero ativismo, no puro fazer. A pior coisa que pode acontecer é investir em uma vida altamente produtiva que perdeu a capacidade de se espantar, a capacidade de se deliciar. O espanto surge em nós quando não interrompemos a vida, quando pegamos um de seus fios, seja ele qual for, e sabemos conduzi-lo criativamente ao seu ápice. Bem-aventurados os que passam pela vida disponíveis e extáticos: compreenderam a natureza do milagre em que estamos inscritos. Talvez seja necessário reaprender o que escreveu o poeta Fernando Pessoa: "A espantosa realidade das coisas / é a minha descoberta de todos os dias".
Nossa vida – você escreve - é "uma paisagem na qual Deus se vê". Como se aprende a ver?
Sabemos bem que não basta ter olhos para ver. A própria Sagrada Escritura nos lembra disso quando fala daqueles que "têm olhos, mas não veem". Muitas vezes nos encontramos nessa situação. Precisamos de uma pedagogia do ver. Os evangelistas descrevem Jesus apresentando-se também como um terapeuta, alguém que cura. Ora, uma das "especializações" que Jesus mais exerceu como terapeuta é a oftalmologia. De fato, ele curou muitos cegos e ofereceu a seus discípulos vários ensinamentos sobre os olhos. Afinal, Jesus é o mestre da arte de ver: é ele quem recria e amplia nossa visão, fazendo-nos passar de nossos estreitos horizontes para o horizonte de Deus. Não esqueçamos que a experiência cristã se expressa em uma nova visão da vida.
Muitos pensam na santidade como algo extraordinário, inatingível. Mas na tradição cristã é outra coisa.
Assim como o pecado é a banalidade do mal, a santidade se manifesta quando o bem se torna uma coisa normal, ordinária, habitual. A santidade é a banalidade do bem. Considerá-la desta forma requer uma mudança de mentalidade que ainda temos de implementar. Embora a Lumen gentium (Concílio Vaticano II) fale da santidade como vocação estendida a todos, uma vocação universal, ainda a consideramos um caminho de vida privilegiado, a condição de mulheres e homens extraordinários. O Papa Francisco empenhou-se bastante nessa transformação de mentalidade, como se pode entender, por exemplo, pela bela expressão que ele gosta muito de usar: o santo da porta ao lado. Devemos ser, uns para os outros, o santo da porta ao lado.
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A escolha da esperança, hoje mais do que nunca, é decisiva. Entrevista com José Tolentino de Mendonça - Instituto Humanitas Unisinos - IHU