29 Março 2022
Aramco, a companhia petrolífera da família real saudita, ocupa o primeiro lugar do pódio das empresas mais poluentes do mundo, muito à frente de outras mais conhecidas como Chevron, Exxon Mobil e BP. A rede de gasodutos russos construída pela Gazprom poderia dar a volta ao mundo quatro vezes. As empresas de carvão chinesas emitiram 14,5% de todos os gases do efeito estufa, desde 1988, e a campeã de todas é a China Energy. Três empresas geridas com mão de ferro por três regimes autoritários que, no cúmulo do cinismo, são signatários do Acordo de Paris.
Mickaël Correia (Tourcoing, França, 1983), jornalista do Mediapart, especialista em movimentos sociais e questões climáticas, em seu ensaio Criminels climatiques (La Découverte) analisa essas três multinacionais energéticas.
Se Aramco, Gazprom e China Energy fossem um país, seriam o terceiro país mais poluente do planeta, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. Seus tentáculos em forma de lobby, corrupção, greenwashing e neocolonialismo se estendem por todo o mundo. Não há centro de poder, por mais exclusivo que seja, ao qual não tenham acesso. Não há campos de petróleo, gás ou carvão que não almejem explorar. E não possuem qualquer intenção de parar, independente do que dizem ou assinam.
A entrevista é de Manuel Ligero, publicada por La Marea-Climática, 29-03-2022. A tradução é do Cepat.
Na Espanha, temos a Repsol. Na França, seu equivalente seria a Total. De fora, conhecemos Exxon, Shell, BP... Mas por que não conhecemos os três maiores poluidores do planeta?
Não sei como deve ser na Espanha, mas na França o grande público não conhece essas empresas porque triunfou a ideia de que são os consumidores que estão por trás desse crime, de que o aquecimento climático é uma questão de responsabilidade individual e que pode ser interrompido só com a disciplina pessoal: comer como um mendigo, não pegar aviões, etc. Ouvimos isso há 30 anos. E a mensagem não pegou só entre os políticos, mas também entre muitos militantes ambientalistas.
A empresa que popularizou o conceito de “pegada de carbono” foi a British Petroleum, no início dos anos 2000. Foi uma grande operação de desvio por meio do marketing. E campanha após campanha, essas empresas não só apontam os consumidores como culpados. Vão além e dizem: “Ei, não se enganem. Nós não somos o problema. Somos a solução”.
Em seu livro, você fala de “criminosos”, de “coveiros do clima”, de “poluidores climaticidas”... O vocabulário sempre está relacionado ao mundo do crime. Por que usou essa linguagem tão frontal?
Justamente porque muitas vezes temos um vocabulário muito passivo. A palavra resiliência é um bom exemplo. E outra seria extinção. O que a biodiversidade sofre agora não é uma extinção como as ocorridas há milhões de anos, é um extermínio ativo pelo capitalismo. Outra palavra com essas características é transição, para falar de transição energética ou climática. A verdade é que não temos tempo para uma transição. A data limite para atingir o aumento máximo de temperatura de 1,5 grau é 2030. Não há tempo para uma grande ruptura, para uma mudança radical.
Efetivamente, para mim, são criminosos no sentido de que, desde 2015, sabemos que devemos manter aproximadamente 80% das energias fósseis no subsolo. E reduzir a produção de petróleo e gás em 40% e de carvão em 11% até 2030. Mas essas empresas não têm entre seus planos reduzir a produção, nem mesmo estabilizá-la. Na verdade, é o contrário: nesse prazo, planejam aumentá-la em 20%. A Total, para citar um exemplo francês, prevê aumentar sua produção de gás fóssil em 30%. É criminoso fazer isso quando a ciência vem emitindo alertas no sentido contrário todos os dias.
E não são novos. Os alertas são antigos.
Agora, começamos a saber que essas empresas sabiam há muito tempo que suas atividades eram prejudiciais para o clima. A Total sabe disso desde 1971. E as empresas estadunidenses desde antes de 1965 [data do relatório que redigiram para o presidente Lyndon Johnson].
Em 2020, a Agência Internacional de Energia, que está muito longe de ser uma organização ambientalista, disse que seria necessário parar todos os novos projetos de produção de energias fósseis. E apesar de tudo, essas multinacionais foram extremamente ativas na hora de implantar suas estratégias para nos tornar, utilizando o vocabulário da droga, viciados em energias fósseis.
Com consequências catastróficas, como sabemos.
Na Europa Ocidental, desde o último verão, tivemos muitos incêndios e inundações. Na Alemanha e na Bélgica, houve várias dezenas de mortos. Na América do Norte, houve incêndios gigantescos. E essas catástrofes climáticas não são novas: nos países do sul acontecem há pelo menos 15 anos. Em Bangladesh, 700.000 pessoas se veem forçadas a abandonar suas casas, todos os anos, pelo aumento das águas.
Não devemos esquecer o que os países do sul disseram na COP26 de Glasgow: “Vocês falam em um aumento de 1,5 grau, mas um aumento de 1,2 grau provoca furacões monstruosos em nossos territórios”. Significa o desaparecimento de várias ilhas do Pacífico. Ocorre um impacto real sobre essas populações, que são as mais vulneráveis.
Hoje, ninguém mais pode negar a mudança climática. Acredita, portanto, que deixou de ser um assunto científico para se tornar um problema puramente político?
Sim, e acredito que o grande problema é de imaginação. Temos dificuldades em imaginar outro mundo mais ecológico e sustentável. E é lógico, porque o desafio é extremamente complicado. O petróleo, o gás e o carvão são a base de nossa civilização industrial desde o século XIX. Destruir ou desconstruir esse imaginário é muito difícil. O carro, por exemplo, tanto na América como na Europa, é um símbolo de liberdade, inclusive de virilidade para alguns homens. Como você desmonta isso de um dia para o outro?
A história do ambientalismo, aliás, é muito recente. Chega ao debate público nos anos 1970. O movimento operário, por exemplo, passa 150 anos forjando um ideal de igualdade, de emancipação, de utopia. O ambientalismo ainda precisa forjar esse grande imaginário com o qual as massas possam se identificar.
E deve fazer isso, para completar, enfrentando o imenso poder do capitalismo fóssil, que através do lobby emprega suas estratégias de corrupção, de greenwashing, de colonialismo para perpetuar suas atividades. Politicamente falando, o difícil não é mais apenas criar o imaginário, mas que ele seja capaz de revirar essa relação de forças.
Os dirigentes da Aramco, China Energy e Gazprom, muitas vezes, fazem discursos grotescos sobre o seu compromisso climático. Por que existem presidentes em todo o mundo que seguem sua corrente e não dizem nada? Por que ninguém diz que o imperador está nu?
Efetivamente, há um cinismo incrível por parte dessas empresas. O presidente da Aramco [Amin Nasser], por exemplo, zombou publicamente do carro elétrico. Chegou a dizer que o petróleo é a solução para o aquecimento global! Por que os dirigentes políticos não dizem nada? Porque estão intimamente vinculados a elas.
A Aramco tem um laboratório a 10 km de Paris que trabalha com uma grande instituição científica francesa para perpetuar o motor de combustão. E Paris é a capital europeia onde mais morrem pessoas por causa da poluição dos automóveis! A China Energy e a EDF, a grande companhia francesa de eletricidade, que pertence majoritariamente ao Estado, possuem um acordo para criar um grande parque eólico no mar da China. Assinaram na presença do próprio presidente Macron. É que a EDF possui usinas a carvão altamente poluentes na China, desde os anos 1990.
A Gazprom fornece gás para mais de 15.000 empresas francesas e para várias instituições, como a Universidade de Estrasburgo e o Ministério da Defesa. Há laços muito estreitos entre os Estados europeus e essas grandes companhias energéticas. [Outro exemplo: o ex-primeiro-ministro francês François Fillon e seu homólogo italiano Matteo Renzi trabalharam como conselheiros da Gazprom até Putin ordenar a invasão da Ucrânia; o ex-chanceler alemão Gerhard Schröder ainda está na folha de pagamento hoje].
Se prestarmos atenção ao discurso oficial da China, seus dirigentes dizem que querem parar o desenvolvimento de projetos fósseis..., mas a China Energy não permite. Isto é possível?
É surpreendente, sem dúvida, porque podemos abraçar estereótipos em torno do governo autoritário chinês, vê-lo como algo extremamente vertical e pensar que qualquer coisa que diga se traduz automaticamente no terreno. A China assinou o Acordo de Paris de 2015. Xi Jinping fala reiteradamente em seus discursos de “civilização ecológica”. Nos últimos anos, a China anunciou seu objetivo de alcançar a neutralidade de carbono em 2060 e proibiu a construção de novas usinas a carvão em seu território.
O terrível é constatar que mesmo em um país como a China, o poder de lobby de uma empresa como a China Energy é gigantesco. Sua pressão é tão grande que até impediu a criação de um Ministério da Energia no país. Apesar de todos os seus anúncios, vemos como a China, de forma muito discreta, está construindo toda uma rede de usinas a carvão no estrangeiro.
Em termos de capacidade elétrica, essa rede equivaleria a todas as usinas a carvão dos Estados Unidos. E se todas elas, as que estão sendo construídas e as que estão projetadas, entrarem em funcionamento, será nefasto para o clima porque, sozinhas, podem fazer o Acordo de Paris fracassar.
Recentemente, a Comissão Europeia aprovou uma nova taxonomia para classificar o gás e a energia nuclear como “energias verdes”. E Macron relançou a construção de reatores nucleares na França. Deveríamos estar preocupados?
É claro que sim. E por muitos motivos. A nova taxonomia é uma coisa muito louca. Macron almeja relançar a energia nuclear e para isso negociou com os países da Europa Central, especialmente com governos ultranacionalistas e de extrema direita, como o de Viktor Orbán, na Hungria, e o da Polônia, e trocou figurinhas com eles: “Vocês me apoiam para que a energia nuclear seja classificada como verde e eu apoio vocês com o gás fóssil”. A Polônia, aliás, almeja continuar desenvolvendo projetos baseados no carvão. A aliança é mortífera.
E Macron decidiu tudo isso sozinho, sem abrir qualquer debate, o que afeta a nossa qualidade democrática. Além disso, ao apoiar o gás, esquece que as emissões do efeito estufa não se restringem ao CO2. E ao apostar na nuclear, uma solução tecno-otimista para o clima, por outro lado, esconde um detalhe essencial: não resta tempo para construir todas essas usinas [seis], colocá-las em ação e cumprir os seus objetivos climáticos antes de 2030, que é a data limite.
Sem esquecer que a instalação de usinas obriga à militarização de grandes extensões do território e produz uma quantidade monstruosa de resíduos que são radiativos por centenas de milhares de anos. Para mim, é uma política perigosa do ponto de vista da segurança. Nisso sim, aqui, há muito dinheiro em circulação: o investimento para a construção dessas usinas se multiplicou por seis e chega a 20 bilhões de euros.
Em seu livro, você diz que todos os países europeus são dependentes do gás russo.
Do gás que se consome na União Europeia, 40% vem da Gazprom, uma empresa que, não esqueçamos, pertence ao clã de Putin e é diretamente gerida pelo Kremlin. Em um contexto de aumento dos preços da energia é um instrumento geopolítico de enorme importância, e está nas mãos de Moscou. Isso faz com que a relação de forças seja uma loucura.
Tradicionalmente, o gás russo chegava à Alemanha através da Ucrânia, que cobrava pelo direito de passagem. Mas, no início dos anos 2000, começaram a projetar e construir gasodutos que levavam o gás russo de forma direta, primeiro para a Alemanha e depois para o resto da Europa. E o dinheiro que a Ucrânia deveria receber diminuiu consideravelmente.
Nas atuais circunstâncias, Putin pode dizer: “Ok, fecho a torneira e acabou”. Isso afetaria não só milhões de lares, mas toda a indústria. Esse gás, que é muito poluente, também torna a Europa refém de um regime autoritário. A companhia francesa Total investiu milhares de milhões na exploração de campos de gás na Sibéria e as sanções econômicas que pesam sobre a Rússia afetarão enormemente suas finanças. Macron, no momento, não as apoia, mas isto nos ajuda a ver até que ponto estamos amarrados pela Rússia na questão energética.
Efetivamente, tem todas as características de um sequestro.
E o dia da libertação, por assim dizer, não está próximo. Os novos campos da Gazprom e Total na Sibéria são explorações que podem durar até o ano 2100, até mais. Quanto à China Energy, as usinas a carvão que está construindo na Ásia e na África possuem uma vida média de 40 anos. E o novo projeto da Aramco para revalorizar o petróleo, caso diminua a demanda por gasolina, passa pela fabricação de plásticos.
Com os efeitos letais que têm no meio ambiente e na biodiversidade...
Exatamente. A cada dois segundos, despeja-se uma tonelada de plástico no mar. Então, isso vai aumentar graças à Aramco, que desenvolveu uma tecnologia petroquímica para dobrar a rentabilidade do barril de petróleo. Essas empresas nos manterão reféns nos próximos 50 ou 100 anos. Então, podemos dizer, sem medo de errar, que existe algo de criminoso em tudo isso.
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O cinismo das companhias petrolíferas: lobby, corrupção, ‘greenwashing’ e neocolonialismo. Entrevista com Mickaël Correia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU