22 Março 2022
"É preciso passar da visão societária tradicional, estruturada hierarquicamente, para a comunitária, baseada no pertencimento comum, na ministerialidade de seus membros e na valorização de seus carismas. É a comunidade paroquial, como um todo, que possui uma subjetividade jurídica, e não apenas o pároco, e ela é representada colegialmente por um conselho pastoral, eleito pelos próprios membros da comunidade", escreve Cesare Baldi, presbítero da diocese de Novara, Itália, que colabora com a Caritas diocesana de Novara, e é autor do livro “Riunire i dispersi. Lineamenti di pastorale missionaria” (edições tab, Roma 2021. p. 562), em artigo publicado por Viandanti, 18-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
O ar de "atualização" que sopra na Igreja Católica, investida pela vontade do papa de iniciar um processo sinodal em todos os níveis, desde o universal ao diocesano e paroquial, parece evocar a tensão que existia no alvorecer do Concílio Vaticano II. As expectativas são muitas, também porque a crise que está sacudindo a comunidade católica é profunda e sistêmica. Uma sombra perigosa, porém, domina esse envolvimento geral do "povo de Deus": a desilusão. Após as desilusões decorrentes de um processo de atualização conciliar que ficou inacabado, suscitar novas expectativas corre o risco de provocar, se não atendidas, a amarga constatação de que a instituição eclesiástica é refratária a qualquer renovação.
De fato, as várias reformas iniciadas pelo Concílio no sentido de uma eclesiologia de comunhão foram extintas no nascimento devido a um "refinado dispositivo de bloqueio"[1] posto em prática para as desarmar. Vamos dar alguns exemplos: a reforma missionária, que no início do Concílio previa inclusive o desmantelamento da Propaganda fide, segundo a proposta apresentada por vários Bispos das ex-colônias africanas, não terminou em nada, continuando o referido dicastério impertérrito a publicar um "Guia das missões católicas", entendidas como territórios sob sua jurisdição, sem levar em conta a nova noção de missão surgida do debate conciliar.
A reforma litúrgica, talvez a mais avançada das reformas, correu o risco de ser bloqueada em 2007 com o motu proprio Summorum Pontificum do Papa Ratzinger, sobre o uso da liturgia romana anterior à reforma conciliar, felizmente superado no ano passado pelo motu proprio Traditionis custodes do Papa Francisco.
A reforma da catequese, com a proliferação de publicações, desde o documento base em 1970 até a carta da CEI “Annuncio e catechesi” em 2010, parece levar, mais do que uma renovação, à extinção dos usuários, principalmente os jovens. Quanto à caridade, nem sequer está na ordem do dia uma possível reforma, porque se faz muita caridade na Igreja, mas pouco se estuda, e mais ainda se faz precipitadamente coincidir com a Caritas que, desde a renovação dos seus estatutos em 2012, o Vaticano progressivamente submeteu às suas próprias instâncias internas e as conferências episcopais parecem chamadas a fazer o mesmo.
Resta então o que poderíamos definir como a "mãe de todas as reformas", aquela da Cúria Romana, de que se fala desde os anos do Concílio, quando no decreto Christus Dominus os padres expressam o desejo de que os dicastérios "sejam reorganizados de uma forma nova e de acordo com as necessidades dos tempos” (n. 9). Mas mesmo neste caso o pavio foi desativado já em 1988 com a constituição Pastor bonus do Papa Wojtyla, que acentua a primazia petrina em detrimento das conferências episcopais. Por outro lado, esta reforma ainda está na agenda do Papa Francisco e a aguardamos com confiança.
O que, no entanto, é mais suscetível de causar decepção, parece-me o âmbito eclesial local, aquele da base, da vivência paroquial comum, onde se sente a necessidade e a urgência de superar aquela espécie de estranheza latente entre os diferentes componentes da realidade eclesial.
É neste nível que, a meu ver, é necessário desencadear um efetivo processo sinérgico, sob pena de desilusão do povo de Deus em relação à instituição eclesiástica: sem a recuperação de uma sinodalidade eclesial de base, a deriva classista, corporativa e desagregadora da comunidade eclesial será irreversível.
O que quero dizer exatamente? Penso em primeiro lugar na relação entre o pároco e a sua comunidade paroquial, tal como atualmente previsto pelo código de direito canônico: a estrutura atual não é de forma alguma sinodal, mas depende muito do que a Comissão Teológica Internacional (CTI) define “deriva hierarcológica”, em um documento sobre a sinodalidade de 2018, a respeito das repercussões na Igreja Católica da reforma protestante[2].
Apesar da declaração do direito canônico de que a paróquia é uma "comunidade de fiéis" (cân. 515), o código estabelece que o único representante de tal comunidade seja o pároco (cân. 532), excluindo qualquer órgão representativo ou processo de aquisição de tal representatividade, que lhe foi atribuída de fato pela nomeação episcopal e adquirida no momento da "tomada de posse" da paróquia (cân. 527).
Em suma, no estado atual do direito eclesiástico latino, o pároco representa todos os habitantes (batizados) do território paroquial, queiram ou não, simplesmente pelo desempenho do papel de pároco. É, portanto, inevitável que a relação que se estabelece entre ele e os seus paroquianos seja uma relação de força, hierárquica e assimétrica: na lógica consumista, a que estamos cada vez mais habituados, os fiéis são os usufruidores do serviço pastoral e o pároco o fornecedor.
Esta lógica é tudo menos sinodal, é a lógica da prestação de serviço, endossá-la sem debate significa avalizar a figura de uma empresa-paróquia, na qual o pároco, voluntariamente ou não, é obrigado a exercer a função gerencial de administrador delegado, sem ter as competências específicas, aliás, com uma formação centrada nos conteúdos das verdades a transmitir e no espírito com que as testemunhar, mais do que nos métodos e nas formas com que gerir a empresa.
Atualmente, portanto, a estrutura eclesial de base configura-se como um binômio assimétrico pároco-fiéis mais que como uma comunidade. A forma comunitária, embora sancionada pelo código, tem dificuldade em se reconhecer, não se concretiza, a não ser pela mediação voluntária e meritória de párocos e fiéis, que tentam de alguma forma compensar as carências do código, promovendo formas e organismos participativos eficazes, para além das indicações canônicas, na medida do possível.
De fato, os órgãos participativos previstos pelo código, chamados a encarnar aquela vocação sinodal própria da realidade eclesial, são irrelevantes, porque são expressão da lógica bipolar e têm função simplesmente consultiva (cân. 536, §2).
Enquanto o critério da sinodalidade não afetar a estrutura eclesial de base, dando à comunidade de fiéis uma subjetividade jurídica própria, que atualmente não possui, não poderemos falar de uma igreja verdadeiramente sinodal.
Ora, o que comporta dar subjetividade jurídica à comunidade dos fiéis? Em primeiro lugar, desarmar a deriva hierarcológica sublinhada pela CTI, aquela que o Papa Francisco em várias ocasiões define com o termo mais genérico de "clericalismo", mas que não é apenas uma atitude interior de clero e leigos: isto é, é necessário desconstruir o binômio em que se baseia a atual visão clerical da realidade paroquial.
Em outras palavras, é preciso passar da visão societária tradicional, estruturada hierarquicamente, para a comunitária, baseada no pertencimento comum, na ministerialidade de seus membros e na valorização de seus carismas.
É a comunidade paroquial, como um todo, que possui uma subjetividade jurídica, e não apenas o pároco, e ela é representada colegialmente por um conselho pastoral, eleito pelos próprios membros da comunidade.
Para expressar sua responsabilidade civil, o cidadão é chamado a exercê-la pelo voto (e também ao fazer as compras); que formas assume para um fiel católico o exercício da responsabilidade eclesial? Se queremos levar a bom termo o processo desencadeado pela eclesiologia de comunhão, é necessário dar espaço efetivo ao exercício da responsabilidade eclesial de cada fiel.
Dessa forma, será possível reafirmar a consciência de pertencer a uma única coletividade, sem a necessidade de se distinguir e desagregar-se em uma comunidade de escolha[3]. Desenvolver uma sinodalidade eclesial de base significará, portanto, afirmar que a comunidade eclesial "é detentora de direito, aliás, é o verdadeiro sujeito, ao qual todo o resto deve ser posto em relação" (Ratzinger 1970)[4].
[1] Cf. A. Grillo, “Un’agenda per il futuro”, em Esodo 4/2021, p. 22.
[2] Cf. CTI, La sinodalità nella vita è nella missione della chiesa, Roma 2018, n. 35.
[3] Cf. F.G. Brambilla, “La parrocchia del futuro. Istantanee di una transizione”, in Il Regno-attualità 16 (2001),
[4] J. Ratzinger, La democrazia nella chiesa, Queriniana, Brescia 2005, p. 44.
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Por uma sinodalidade eclesial de base - Instituto Humanitas Unisinos - IHU