14 Março 2022
Hoje, novamente em tempos de guerra, quantas crianças, mulheres, homens morrerão? A História é ainda e sempre “um escândalo que dura dez mil anos” e que não dá sinais de parar.
A opinião é do crítico cinematográfico, literário e teatral italiano Goffredo Fofi, em artigo publicado em Avvenire, 11-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Vimos os filmes de Satyajit Ray, um dos maiores diretores da história do cinema, na segunda metade dos anos 1950, descobrindo o cinema indiano depois de descobrir o grande cinema japonês graças a Rashomon e Kurosawa.
A “Trilogia de Apu” são três filmes sobre a infância, adolescência e maturidade de um jovem que, da sua terra natal interiorana, se tornava cidadão e enfrentava um destino (muito comum) de alegrias e dores com uma comovente pureza de sentimentos.
Satyajit Ray, o diretor, era bengali e burguês, havia frequentado a escola Tagore e tivera a sorte de ser assistente de direção de Jean Renoir em “O rio sagrado” (um filme belíssimo, baseado em um romance inglês, que falava dos ingleses, dos ocupantes).
Tínhamos lido Gandhi e conhecido há pouco tempo o seu magistério, e os filmes de Ray nos iluminaram sobre a sua história, a vida no interior e a cultura daquele imenso país. Muitos anos depois, tive a sorte, enviado com outros ao encontro de Laura Betti para apresentar uma retrospectiva de Pasolini no Festival de Calcutá, de falar precisamente na sala em que Ray proferiu as suas lições de cinema a uma geração de jovens cineastas e cinéfilos (que ficaram entusiasmados com Pasolini e o acharam, me disseram, muito próximo da cultura e da sensibilidade deles).
Juro que, falando de Pasolini e a partir da cátedra de Ray, minhas pernas tremiam... Mas é um filme específico de Ray, quase desconhecido na Itália, que eu quero lembrar: “Trovão distante”, de 1973 [veja trechos abaixo], inédito na Itália, que se baseava em um romance do mesmo Banerjee de onde vinha a “Trilogia de Apu”.
O “trovão distante” era o dos aviões da Segunda Guerra Mundial, ouvidos a partir das profundezas do interior de Bengala que não sofreram os confrontos armados e os bombardeios da guerra, mas algo igualmente letal.
Compreendendo como militar que o terreno do confronto com o Japão estaria voltado à China e ao Sudeste Asiático, Churchill ordenou que o cultivo maciço de arroz se deslocasse da grande colônia do Império mais para leste, para alimentar os seus soldados... mas condenando Bengala, que vivia de arroz, à fome.
O filme de Ray narra a história da família de um médico e professor diante dessa história de fome e de morte, e uma legenda final informa ao espectador não indiano que, naquela carestia, pereceram dois milhões de pessoas. Estou falando de dois milhões de homens, mulheres, crianças.
Hoje, novamente em tempos de guerra e, desta vez, nos campos de trigo e não nos arrozais, se Putin não for parado, quantas crianças, mulheres, homens morrerão? A História é ainda e sempre aquela que Morante definiu como “um escândalo que dura dez mil anos” e que não dá sinais de parar.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Guerras, fome e carestia: o escândalo continua - Instituto Humanitas Unisinos - IHU