Cena do filme A Dupla Vida de Véronique
"A personagem Véronique é um exemplo de alguém que busca incansavelmente o Mistério, onde o rosto explícito de Deus não é manifesto, mas os sinais conduzem a Ele e mostram as inúmeras formas como Ele responde a cada busca particular, sem jamais ficar em silêncio".
O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.
"O cinema pode ser lugar de expressão do Mistério só se quem faz cinema é alguém que busca o Mistério, honestamente e cheio de desejo, se o Mistério o inquieta, se arde dentro dele sem deixá-lo em paz", disse o teólogo italiano Massimo Pampaloni, quando esteve no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, em 2011, ministrando o minicurso Semânticas do Mistério no cinema, dentro da programação do XIII Simpósio Internacional IHU Igreja, cultura e sociedade. A semântica do Mistério da Igreja no contexto das novas gramáticas da civilização tecnocientífica.
Talvez, o mesmo possa ser dito em relação ao espectador que, em sua busca incansável pelo Mistério, tenta compreendê-lo em todas as manifestações da vida, inclusive na arte. Foram esses olhos que me foram abertos quando assisti A Dupla Vida de Véronique, do diretor polonês Krzysztof Kieślowski, naquela época em que meu ser espiritual estava completamente sufocado pelo natural. Mas a cena final do retorno de Véronique à casa do pai, depois de uma saga em busca de si mesma e do Amor, foi suficiente para o Mistério passar a arder também dentro de mim.
A personagem Véronique é um exemplo de alguém que busca incansavelmente o Mistério, onde o rosto explícito de Deus não é manifesto, mas os sinais conduzem a Ele e mostram as inúmeras formas como Ele responde a cada busca particular, sem jamais ficar em silêncio.
As obras cinematográficas mais aclamadas, embora nem sempre totalmente compreendidas, tratam exatamente desta dimensão que transcende nossa compreensão e nos deixam estupefatos, porque falam diretamente e mais profundamente ao coração e não à razão.
Em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU à época, Pampaloni disse que "pouquíssimos compreenderam o dado fundamental deste filme (e, no entanto, completamente explícito no título!): é a história de uma só Verônica, não são duas! Porém todo o mundo se põe a escrever sobre o 'tema do dublê', da misteriosa sintonia de duas mulheres etc. Significa fixar-se na 'coisa representada' e não compreender a 'representação da coisa' como teria dito Taddei. É óbvia a dimensão universalizante do enredo representado".
O filme, explica, "é, em realidade, uma estupenda representação da morte aparente da dimensão espiritual do homem (Weronica). O homem contemporâneo (Véronique), concreto, mas puramente unidimensional, está desorientado. Mas o Mistério o busca, manda-lhe sinais. Se os segue, chegará a reencontrar-se com esta sua dimensão, alcançando a plenitude da compreensão de sua vida. Aqui temos um Mistério que é descrito só como transcendência, sem uma determinação concreta ou confessional. Mas permanece um fortíssimo chamado a não vivermos amputados da dimensão invisível, a reconciliar-nos com aquela nossa parte espiritual que de fato não está morta".
A trilha sonora escolhida pelo diretor corrobora a interpretação do teólogo: Van den Budenmayer Concerto en Mi Mineur, de Zbigniew Preisner, compositor polonês que compôs as trilhas sonoras dos filmes de Kieslowski, cuja letra é o início do Canto II do Paraíso, da Divina Comédia, de Dante.
"Ó você que está em um pequeno barco
Ansioso para ouvir, seguido
Atrás da minha madeira que atravessa cantando
Não se coloque no mar, porque talvez
Se você me perder, você estará perdido".
Os primeiros 30 minutos do filme giram em torno da vida de Weronica, completamente entregue às suas paixões, embora ela sinta, assim como Véronique, a sensação estranha de não estar sozinha neste mundo. A transição entre o reflorescimento do ser espiritual e a morte do ser natural é representada pelo diretor em dois momentos: quando Weronica percebe Véronique e inicia-se o seu processo de morte e quando uma busca nova inicia na vida de Véronique.
Se, de um lado, Weronica morre, de outro, Véronique, em sua desorientação aparente - porque ela sempre corresponde aos sinais do espírito, mesmo sem compreendê-los -, atenta incansavelmente a todos os sinais que lhe são enviados, corresponde aos chamados de um homem desconhecido e corre em direção ao Amor, representado pela relação que a personagem constrói com o Alexandre Fabbri, um marionetista e escritor.
Na escola onde trabalha, Véronique conhece Alexandre Fabbri. Ela não se apaixona exatamente por ele em um primeiro momento, mas por algo até então inominável, que ela percebe mover o seu agir. Há nele a manifestação do Mistério que transcende e, nela, a desejo de corresponder ao que parece inexplicável, mas completamente real, o que a conduz.
Ele a conquista deixando pistas de suas obras literárias, num jogo que a conduz a uma busca cega por Aquele que a chama. A ela, só basta correr, não mais para todo e qualquer lugar, mas para o Amor.