Paul Farmer, um parceiro na saúde a serviço dos pobres

Foto: Isaac Hernandez | Direct Relief | Flickr CC

07 Março 2022

 

"Farmer contribuiu na expansão da perspectiva libertadora na saúde e a levou por onde passou, com sua voz profética e seu serviço aos pobres junto com parceiros na saúde (Partners in Health)", escreve Alexandre A. Martins, professor de bioética e ética social na Marquette University em Wisconsin, nos EUA.

 

Eis o artigo.

 

No dia 21 de fevereiro de 2022, o médico antropólogo Paul Farmer morreu enquanto dormia, com 62 anos. Ele estava em Ruanda, em um dos projetos da ONG Partners in Health, uma organização voltada ao mundo da saúde, fundada por ele, que tem como missão uma opção preferencial pelos pobres na assistência à saúde. Inspirado pela teologia da libertação depois de ler os livros de Gustavo Gutiérrez e Leonardo Boff na década de 1980, o então jovem médico decidiu que sua vida seria dedicada a levar cuidados de saúde aos pobres ao redor do mundo.

 

Ele começou seu trabalho no Haiti e no Peru, e com colegas fundou a Partners in Health, hoje presente em doze países. Farmer acreditava que assistência à saúde é um direito humano e que os pobres devem ser os primeiros a receber essa assistência com o melhor que a medicina moderna tem para oferecer. Fundamentando-se na perspectiva da teologia da libertação sobre violência institucionalizada e estudos biossociais, antropológicos e econômicos, Farmer desenvolveu o conceito de violência estrutural contextualizado na área da saúde pública e global. Para ele, forças estruturais econômicas e sociais, como racismo e o empobrecimento de populações, são mecanismos responsáveis por injustiças na saúde que vão de epidemias até cardiopatias, afetando principalmente os pobres, em um círculo pobreza – doença – falta de assistência médica, que muito frequentemente leva à morte prematura, ou como ele costumava dizer: “mortes estúpidas”, pois poderiam ser evitadas.

 

 

Paul Farmer foi incansável na sua missão de levar cuidados de saúde aos pobres e na luta contra a violência estrutural. Era um professor que inspirava seus alunos em Harvard, onde exerceu sua carreira acadêmica, na Universidade de Saúde Global que ajudou a fundar em Ruanda e por onde passava dando palestras e aulas como convidado. Foi um escritor profícuo, como inúmeros livros e dezenas de artigos. E foi amigo de muitos, com um bom humor que contagiava. Tive a graça de conhecê-lo quando foi estudar nos EUA e nos tornamos amigos, partilhando sonhos e projetos.

 

Muito conhecido nos EUA, tanto no mundo acadêmico – em diversas áreas, como teologia e antropologia – quanto no contexto médico e na comunidade dos direitos humanos, Paul Farmer não gozava o mesmo status no Brasil. Ele mesmo nunca visitou o Brasil, nem a Partners in Health estabeleceu algum trabalho em terras brasileiras. Em nossos encontros, sempre dizia que eu teria de ajudá-lo a chegar ao Brasil. E demos um primeiro passo com a tradução e publicação de um dos seus principais livros Patologias do Poder: Saúde, Direitos Humanos e a Nova Guerra Contra os Pobres, publicado em 2018 pela editora Paulus.

 

Capa do livro "Patologias do Poder: Saúde, Direitos
Humanos e a Nova Guerra Contra os Pobres",
de Paul Farmer (Foto: Editora Paulus)

 

Antes de escrever esse texto, fiz uma pesquisa em bancos de dados acadêmicos, como SciElo e Periódicos da CAPES, para descobrir se Farmer era conhecido por acadêmicos brasileiros, particularmente nas disciplinas de antropologia médica, bioética, medicina, saúde pública e teologia. Constatei o que já percebia: Farmer é praticamente desconhecido no Brasil. Encontrei alguns artigos em antropologia médica que fazem referência a alguns dos seus primeiros trabalhos, um texto traduzido e publicado como capítulo de livro em uma obra da editora Fiocruz e dois textos em ética teológica com citações de trabalhos dele. Pode ser que haja mais, minha pesquisa foi bem rápida. Contudo, uma conclusão que pode ser feita é o desconhecimento da obra social e intelectual do Paul Farmer no Brasil, mesmo com a publicação em português de um dos seus livros.

 

Me alegrou ver que o IHU traduziu e publicou, logo após o seu falecimento, um texto de 1995, no qual Farmer fala da relação entre teologia da libertação e medicina partir da sua experiência. Paul Farmer não foi o primeiro a utilizar uma perspectiva libertadora na saúde. Isso já ocorria antes dele, por exemplo, no Brasil. Apenas para citar alguns, recordo-me dos sacerdotes e médicos Raul Matte e Adolfo Serripiero que dedicaram suas vidas servindo aos pobres nas margens do rio amazonas e nas favelas de Fortaleza, respectivamente. Eles se inspiravam muito na teologia e práxis de Dom Helder Camara, embora não fossem escritores acadêmicos como o Farmer. Os bioeticistas Marcio Fabri dos Anjos e Christian de Paul de Barchifontaine escreveram exaustivamente sobre libertação e saúde. Porém, Farmer foi pioneiro em trazer essa perspectiva libertadora no contexto da saúde para os EUA, onde a assistência médica é dominada por uma visão de saúde como commodity (mercadoria de consumo) dentro de um mercado livre, que marginaliza aqueles sem recursos econômicos para comprar tal mercadoria.

 

 

Farmer contribuiu na expansão da perspectiva libertadora na saúde e a levou por onde passou, com sua voz profética e seu serviço aos pobres junto com parceiros na saúde (Partners in Health). Perdemos um grande homem, que ainda tinha muito para oferecer. Todavia, o seu legado e sonho de justiça na assistência à saúde que se inicia com uma opção preferencial pelos pobres na saúde não estão mortos e serão levados a frente por muitos parceiros nesse sonho. Obrigado, Paul, pela a vida que viveu como parceiro dos pobres.

 

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