22 Fevereiro 2022
Na edição de fevereiro de "Donne Chiesa Mondo", o suplemento mensal de L'Osservatore Romano traz a entrevista com a professora e escritora argentina, nomeada ontem pelo Papa como secretária do Pontifício Comissão para a América Latina, função em que trabalhará ao lado do professor Rodrigo Guerra López.
A entrevista com Emilce Cuda é de Lucia Capuzzi, publicada por Donne Chiesa Mondo, fevereiro de 2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Não nos deixemos disciplinar. Nunca. Continuemos a ser apaixonadas, sedutoras, a falar com a linguagem da palavra e do corpo. Sigamos a encantar. Agora mais do que nunca é necessário voltar a encantar o mundo. Claro, correremos o risco de ser chamadas de loucas, como fizeram com as beguinas séculos atrás. Mas vale a pena. Por isso repito: não nos deixemos disciplinar”. Este é o sonho para as mulheres, dentro e fora da Igreja, de Emilce Cuda, a "teóloga que sabe ler o Papa Francisco". É assim que a chamam agora. “Culpa” de uma resenha de seu livro Ler Francisco, publicado na Itália pela Bollati Boringhieri. "Foi Austen Ivereigh, jornalista, amigo e profundo conhecedor dos acontecimentos do Vaticano, que me definiu assim, brincando com as palavras do título...", sorri, sacudindo os cabelos pretíssimos soltos sobre os ombros, a chefe do escritório da Pontifícia Comissão para a América Latina, designada em julho passado pelo Papa junto com o novo secretário, o mexicano Rodrigo Guerra. Ela é a primeira mulher a ocupar tal posição. “Um cargo de forte valor simbólico, independentemente da sua real função e da capacidade operacional. Isso confirma a atitude do Papa em relação ao mundo feminino”.
Francisco e as mulheres, uma questão que vem sendo debatida desde o início do Pontificado.
Alguns o acusam de não ser claro ou de imobilismo, outros de aberturas excessivas e perigosas. “O Santo Padre inicia processos. Isso é o que conta para ele”, afirma a teóloga “que o sabe ler”. "Nunca tive nem tenho a pretensão de ‘interpretar’ o Papa. Com o ensaio e minhas intervenções sobre o tema, apenas tento explicar aos leitores, especialmente aos não especialistas, o contexto social, cultural, eclesial e político da Argentina onde Jorge Mario Bergoglio foi formado. Uma espécie de tradução cultural não linguística para que a opinião pública possa compreender em profundidade as suas palavras”. Quase um dever moral para uma portenha - isto é, nascida em Buenos Aires - doc. E não uma portenha qualquer: Emilce Cuda é uma das maiores especialistas em Teologia do povo, peronismo, populismo, movimentos populares e articulações sindicais. Uma vastidão de interesses alinhados com seu currículo acadêmico, bastante peculiar: a nova chefe do escritório da Pcal estudou Teologia e Filosofia paralelamente para depois se dedicar em tempo integral à primeira.
E obter - fato inédito para uma mulher naquela época - doutorado em Teologia moral na Pontifícia Universidade Católica Argentina (UCA). "Moral social", explica Emilce Cuda. “A moral católica é muitas vezes circunscrita à bioética. Na realidade, esta é apenas um dos dois setores. O outro é a moral social. Dedicar-se a ele implica o estudo da política, da economia, da sociedade, para depois se pronunciar, do ponto de vista da doutrina católica, sobre tais questões. Quando fazemos isso, principalmente se falamos em defesa dos excluídos, porém, muitas vezes somos acusados de “fazer política”. Na realidade, estamos apenas fazendo o que nos compete: os teólogos da moral social. Eu me especializei nisso”. O título de Emilce Cuda, além disso, é assinado pelo Cardeal Bergoglio, na época Grão-Chanceler da UCA de Buenos Aires. Um dos muitos fios vermelhos que unem a "teóloga atípica" e o primeiro papa argentino da catolicidade, junto com o amor por Buenos Aires, o tango, a frequência de ambientes populares e da Igreja neles encarnada. Foram as religiosas da Divina Pastora que ensinaram à futura acadêmica a ler a doutrina social da Igreja. “E isso marcou a minha vida - destaca – Eu sempre tive o desejo de disponibilizar os meus conhecimentos para aliviar os sofrimentos das pessoas mais desfavorecidas. Eu mesma venho de uma família humilde, então conheço bem os sacrifícios do povo trabalhador para sobreviver dia após dia”.
Não preciso que me digam o que significa trabalhar com as mãos, já fiz isso. Eu sei o que significa quando o corpo dói e você não pode parar. É algo diferente do trabalho intelectual. Agora estou envolvida de segunda a segunda, mas não é comparável”, diz Emilce Cuda que, antes de ser uma conceituada professora e pesquisadora, foi costureira e estilista, como atestam a sua elegância impecável e o gosto por vestidos sóbrios e originais. No entanto, ela não chegou ao estudo da teologia apenas pela fé, mas por uma "inquietação disciplinar-científica". “Sempre distingo os âmbitos: por um lado, está o credo, o trabalho pastoral e missionário, pelo outro, o estudo”.
Para ter acesso à faculdade de Filosofia, pública e gratuita da prestigiosa Universidade de Buenos Aires (UBA), era necessário passar por um teste extremamente seletivo. Feito sob medida para ex-alunos de colégios públicos e privados reservados aos filhos da elite e não para aqueles que, como Emilce Cuda, frequentaram as escolas católicas da periferia. A alternativa era optar pelos estudos de teologia na UCA. "Mas era privada e eu não podia pagar." O beco sem saída, inesperadamente, se transformou em uma dupla possibilidade. "Sabia, quase ao mesmo tempo, que havia passado na prova de admissão da UBA e que havia recebido, graças à intervenção de Lucio Gera, pilar da Teologia do Povo, uma bolsa de estudos para a UCA". Em vez de escolher, Emilce Cuda decidiu duplicar, frequentando as duas faculdades. “Isso me deu uma enorme vantagem. Eu tinha duas bibliotecas disponíveis. Aquela “canônica” de Católica e aquela secular de Uba”. Só no final deste duplo percurso chegou a opção definitiva pela Teologia e o longo aprendizado com mestres do calibre de Ernesto Laclau na Northwestern e Juan Carlos Scannone no Colégio Máximo em San Miguel. "Por isso eu só poderia tratar de moral social." Uma área que a levou a se confrontar com universos considerados "masculinos", como os movimentos políticos e os sindicatos. Além de lutar para recortar para si um espaço nas estruturas eclesiásticas, que na época eram pouco inclusivas para as mulheres. “No mundo secular, eles não me levaram a sério como teóloga. Quando apresentei meu projeto sobre a Teologia do povo ao principal instituto de pesquisa argentino, eles o rejeitaram na hora, chamando-o de ‘programa de autoajuda’ mais que de investigação científica”. Um dos primeiros artigos sobre a figura de Jorge Mario Bergoglio, após a eleição, foi elaborado a partir daquele estudo. Apesar das dificuldades, Emilce Cuda acredita que a aliança entre os gêneros seja a chave para um desenvolvimento harmonioso da sociedade. E da Igreja. “Esta última partilha os mesmos problemas da sociedade num contexto de globalização”.
A raiz da exclusão feminina é a mesma da exclusão dos pobres, afirma a teóloga. E, como para eles, a primeira forma de descarte é torna-las invisíveis. “Vamos pegar o trabalho informal, uma categoria que engloba dois bilhões de pessoas. Seu trabalho, realizado em regime diário para sobreviver, dá uma contribuição fundamental para a economia, mas não é contabilizado. Nas estatísticas oficiais, eles não existem. Pela mesma razão, muitas vezes se diz que não há mulheres na Igreja. Às vezes, as próprias mulheres dizem isso, reforçando essa narrativa de invisibilidade. Depende do que entendemos por Igreja. Se for apenas a hierarquia, isso é verdade. Mas se, como afirma o Concílio Vaticano II, é o Povo de Deus, então há mulheres, e muitas. São elas os responsáveis por transmitir a fé e também sustentar materialmente a Igreja. Aos que objetam que a ausência diz respeito a cargos decisórios, respondo que há uma questão prévia a ser abordada: reconhecer as muitas trabalhadoras já presentes, muitas vezes sem salário. Por que as funções humildes sempre acabam sendo feitas por mulheres?”.
Como os pobres, porém, para Emilce Cuda as mulheres têm a virtude teologal da esperança. Esta é o motor que as “coloca em movimento”, a força que lhes permite “curar e reciclar a vida”. “Elas não apenas a reproduzem, como a mantêm viva entre o nascimento e a morte. Para isso, sonho que as mulheres nunca deixem de ser mulheres. Sua capacidade de seduzir e encantar é importante para a redenção, na política, na Igreja, na sociedade. Temos que nos apaixonar novamente por um projeto comum. Quem pode nos fazer apaixonar novamente se não as mulheres?”.
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Emilce Cuda, a teóloga "atípica" que parte do povo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU