Considerada uma das mais influentes mulheres no Vaticano, Nathalie Becquart é otimista sobre a igualdade de gênero na instituição.
Em meio às tentativas de reforma das estruturas hierárquicas que tem definido a Igreja Católica Romana por séculos – estruturas que tem, de muitas formas, limitado a influência de leigos e especialmente mulheres – poucos tem tido uma fala tão decisiva sobre a modelagem do futuro da instituição como a irmã Nathalie Becquart, religiosa da Congregação das Xaverianas.
Em fevereiro, o Papa Francisco a nomeou subsecretária do Secretariado Geral do Sínodo dos Bispos, uma cúpula de líderes da Igreja no Vaticano estabelecida para tratar dos mais fortes temas que a instituição enfrenta.
Becquart exerceu um papel importante no Sínodo da Juventude, no qual se entendeu as demandas, anseios e esperanças das novas gerações. Em 2019, ela foi nomeada consultora para o Sínodo Pan-Amazônico, que enfrentou os desafios do Novo Regime Climático e promoveu o respeito e o cuidado pela Criação e os mais vulneráveis.
Quando Becquart se tornou a número 02 da pasta sinodal, ela também se tornou a primeira mulher com direito a voto durante a assembleia de bispos. Em 2023, os bispos estarão congregados no Vaticano para um sínodo com o tema: “Para uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão”, o qual tem o potencial de remodelar as dinâmicas de poder na instituição enfatizando a escuta a todos os fiéis.
Mas para Becquart, ter direito a voto no procedimento é apenas um pedacinho do iceberg.
“A coisa mais importante é ter mulheres que começam envolvidas no processo, trazendo suas visões, tomando parte no discernimento, escrevendo os textos”, disse ao Religion News Service, em uma longa entrevista concedida em 28 de outubro, desde o escritório do Sínodo no Vaticano.
Na entrevista transcrita abaixo, Becquart discute o papel da mulher na Igreja e como isso mudou no papado de Francisco, seus pensamentos sobre a ordenação de mulheres, suas esperanças e aspirações para uma nova forma de ser Igreja e quais mulheres a inspiram para entrar no mais antigo clubinho de meninos da Europa.
Devido à extensão, a entrevista a seguir foi editada para maior clareza.
A entrevista é de Claire Giangravé, publicada por Religion News Service, 08-12-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O pontificado do Papa Francisco se destacou por colocar ênfase nos pobres e marginalizados, incluindo as mulheres. Como o papel das mulheres na Igreja mudou desde sua eleição em 2013?
Quando penso em 12 anos atrás, o tema das mulheres e, especificamente, das mulheres na Igreja era principalmente, ou apenas, um problema de ou trazido por mulheres. Hoje em dia é cada vez mais um assunto levantado também por homens, incluindo padres, bispos e cardeais. Até o Papa. O Papa está falando muito sobre a importância do papel da mulher.
Há cada vez mais mulheres nomeadas no Vaticano para cargos de liderança, como a irmã Alessandra Smerilli como secretária – ou seja, a número 2 – no Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral.
Existem muitos casos em que há cada vez mais mulheres trabalhando como funcionárias no Vaticano. É possível ver uma mudança. Existem exemplos de novos papéis, não apenas em posições de liderança, mas também no fato de que as mulheres têm voz agora no Vaticano. Durante as reuniões oficiais no Vaticano, elas podem fazer comentários ou meditações sobre o Evangelho. Há dez anos, nunca, nunca vi isso.
Os debates sobre as mulheres na Igreja Católica muitas vezes param na questão da ordenação feminina. Qual é a sua opinião sobre a ordenação feminina e esta questão desempenha um grande papel nas discussões sinodais?
Durante muitos anos e séculos, o governo da Igreja esteve vinculado à ordenação. Os bispos e padres tinham posições de liderança. Agora podemos ver mais e mais – e essa é a linha que o Papa Francisco está tomando – a desconexão entre o exercício da liderança e a ordenação. Eu sou um exemplo disso. O subsecretário do Secretariado do Sínodo dos Bispos foi sempre bispo. Agora sou eu, uma mulher religiosa não ordenada, que ocupa o mesmo papel.
As empresas comerciais bem-sucedidas geralmente têm mulheres em cargos de liderança, não porque sejam mulheres, mas porque agregam diferença e diversidade. Essa é a chave. Se você tem apenas o mesmo tipo de homem, o mesmo tipo de treinamento, o mesmo tipo de mentalidade para entender este mundo tão complexo, você tem uma visão muito limitada.
É sempre mais fecundo o trabalho em equipe com a diversidade, homens e mulheres, diferentes vocações, jovens e idosos.
Acho que a mudança está acontecendo com uma nova aceleração. Você pode ver que muitos bispos mais jovens disseram durante o Sínodo da Juventude e o Sínodo Pan-Amazônico que as mulheres têm desempenhado um papel importante. Eles foram reconhecidos. Muitos bispos disseram que trabalharemos melhor juntos se não formos apenas bispos e homens. Agora, com todas as crises, os abusos e os problemas que surgem, os bispos sentem e expressam mais que precisam dos outros, precisam colaborar com os leigos, as mulheres.
Quais mulheres você admira no Vaticano e que foram suas inspirações em termos de liderança feminina na Igreja?
Todas nós precisamos, especialmente as jovens, de modelos de comportamento. Para as mulheres pioneiras, nem sempre existiu esse modelo. Mas eu me beneficiei de um bom número.
Antes de vir para cá, passei um ano na América do Norte estudando eclesiologia. Primeiro em Chicago e depois no Boston College, recebi muito empoderamento de mulheres em posições de liderança ou na teologia nos Estados Unidos, especialmente de irmãs religiosas. Lá há mais mulheres nesses espaços. Na França fui a primeira mulher a ser nomeada diretora do escritório nacional para a juventude e vocação. Muitas vezes não havia tantas mulheres como eu, então conhecer algumas outras nos Estados Unidos foi muito útil.
Estive no Sínodo da Juventude com outras seis religiosas. Isso também foi muito útil porque você pode compartilhar sua experiência sobre o que estamos lidando. O Sínodo foi para mim, mas também para outras mulheres, um lugar de empoderamento.
Você acha que o diaconato feminino oferece uma alternativa à ordenação feminina? Este tópico é discutido no processo sinodal?
Ainda está em discernimento. Verdadeiramente, o propósito deste sínodo é escutarmos uns aos outros, toda a diversidade da Igreja, e discernir juntos. O Papa Francisco então decidirá como o Espírito Santo está chamando a Igreja para ser hoje e amanhã. Muitas coisas evoluíram na história da Igreja, então agora está bastante claro que durante a Igreja primitiva tivemos a experiência do diaconato feminino. Não está muito claro qual era o seu papel ou que tipo de ordenação eles receberam exatamente.
O que é muito óbvio hoje é que não podem ser apenas os homens que podem estar no ministério – mas existem muitas maneiras diferentes de estar no ministério.
A questão é discernir se a maneira de conseguir isso é ter mulheres diáconas ou outro tipo de ministério… Agora temos mulheres que podem ser catequistas, conferencistas, acólitas. Também precisamos de alguma criatividade para pensar sobre o ministério.
Quais são os principais desafios em sua opinião para a promoção de mulheres em posições de poder na Igreja?
É o clericalismo. Mas as mulheres também precisam ter a possibilidade de se formar em teologia, de trazer seus dons. Em muitos lugares, é possível; em outros lugares é mais difícil. Como mulheres ocidentais, podemos facilmente acessar o ensino superior, mas quando se olha para a situação das mulheres no mundo, em muitos países muitas mulheres ainda são casadas com menos de 16 anos. Essa é a realidade. Em muitos países como aquele, a Igreja está trabalhando pela promoção das mulheres, pela educação. Precisamos ter isso em mente quando olhamos para a Igreja global.
No Vaticano e durante as discussões sinodais, quais são as principais preocupações da Cúria e dos bispos quando se trata de aumentar a liderança feminina?
Tenho uma experiência bastante boa de discussão e colaboração. Alguns padres, bispos ou cardeais estiveram no seminário menor desde a adolescência, entraram no seminário e depois trabalharam na Cúria ou trabalharam principalmente com padres ou em um ambiente predominantemente masculino. Se eles têm que trabalhar com mulheres, é algo muito novo. Alguns se adaptam muito bem, mesmo quando são velhos. Para outros, sim, pode ser mais difícil. Outros padres que entraram no seminário mais tarde ou trabalharam no mundo profissional com mulheres antes, muitas vezes se dão muito bem.
Muitos acreditam que a Igreja Católica foi e continua sendo uma instituição hostil às mulheres, porque elas não têm permissão para expressar suas opiniões e tomar decisões. O que você diria a esses críticos?
Eu vou dizer que a Igreja Católica é muito diversa em muitas culturas e países diferentes. Há muitos lugares onde existem relacionamentos muito bons entre homens e mulheres. Minha congregação é inaciana, então na França colaboramos muito com os jesuítas. Estudei com os jesuítas, exercemos o ministério juntos, trabalhamos com os jovens juntos. Tenho amizade com muitos deles.
Se ainda tivermos a mentalidade de ver a Igreja apenas por meio da instituição de padres, bispos e paróquias, essa é apenas uma parte da Igreja; mas a Igreja é também a Caritas, as escolas católicas, as universidades católicas e tantos movimentos leigos. Agora se tem muito mais mulheres presidentes e reitoras de universidades católicas, o que não acontecia antes.
Não quero minimizar o fato de que em alguns lugares há alguns problemas, há mulheres que não são reconhecidas ou ouvidas pelo pároco, etc. Acontece, não vou negar. Também quero sublinhar que existem muitos lugares onde as mulheres já podem realmente se expressar. Em muitas faculdades de teologia, se tem homens e mulheres. É uma evolução. Eu vi que a primeira geração de mulheres teólogas eram principalmente irmãs religiosas que fizeram doutorado em teologia ou estudos bíblicos. Elas foram as primeiras e sentiram que deviam fazer teologia como homens. Porque foi isso que eles disseram. Agora se tem uma segunda geração e, com a nova geração, as coisas estão mudando.
Quando os bispos se reunirem para votar no processo sinodal no Vaticano em 2023, você será a única mulher com direito de voto. O que isso significa para você e quão importante é para você que as mulheres tenham uma palavra a dizer neste fórum exclusivamente masculino?
Para mim o mais importante é não ter uma mulher ou um homem que possa votar no final. Um processo sinodal é um processo de escuta e discernimento para chegar a um consenso.
O mais importante é não ter mulheres que no final consigam votar. O mais importante é envolver as mulheres no processo desde o início, trazendo suas opiniões, participando do discernimento, escrevendo o texto.
Eu entendo, em nossa sociedade é muito simbólico. Mas se você apenas votar no final e não fizer parte do processo, não é o que importa. É importante estar envolvido e trazer suas ideias, sua voz e para moldar e contribuir, colaborar desde o início em todo o processo. É por isso que é muito importante ter mulheres em todos os estágios.
Por exemplo, recomendamos fortemente – e estou muito feliz em ver – que pedimos a cada diocese que tenha um membro de referência sinodal, uma pessoa de contato e de preferência uma equipe. Recomendamos um modelo de liderança compartilhada com mulheres. Agora, em muitas dioceses, a pessoa responsável pelas consultas sinodais é uma mulher que trabalha com os bispos na mesa de conferência. Esse é um lugar-chave. É muito importante ter mulheres que contribuam para liderar o processo, para envolver outras mulheres.