08 Novembro 2021
"Repito uma convicção várias vezes afirmada: no Ocidente, os únicos que, desde os primórdios do capitalismo e da burguesia, compreenderam evangelicamente a tragédia escondida na escolha da transformação e do progresso, foram Francisco, Clara e os primeiros militantes do movimento nascido em Assis", escreve Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em artigo publicado por Settimana News, 05-11-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Li recentemente um artigo de Jean-Luc Nancy[1] sobre o conflito entre a Europa e o Islã e fiquei fortemente impressionado com a identificação da raiz desse conflito.
Por um lado, está a Europa, que, a partir do século XII, inaugura “uma máquina potente cujo motor é a transformação da subsistência em produção e inovação”. Surgem o capitalismo e a burguesia. Só recentemente, no Ocidente, percebeu-se que essa máquina tritura subsistências e povos, culturas e espiritualidade em um processo cada vez mais irracional e trágico. Uma máquina colonizadora que começa no Mediterrâneo e continua na Ásia, África, América Latina. Uma máquina impiedosa e sedutora que atropela e oprime mundos e interpretações do mundo.
Por outro lado, há o Islã, que, ao contrário da Europa, se apresenta como "um cumprimento", uma revelação que sintetiza definitivamente as tradições judaicas e cristãs.
Nancy acrescenta: "Não paro aqui sobre as enormes complexidades que essas fórmulas escondem. Estou ciente apenas disto: seja por acaso, acidente ou fantasia da história, em determinado momento a transformação continuou e se ampliou, enquanto o cumprimento se dobrava sobre o seu segredo”.
Essa leitura provoca uma reflexão mais aprofundada, provavelmente mais do que questionável pela sua superficialidade e presunção. No entanto, vou me explicar: essa tensão entre o progresso indefinido e irracional e o cumprimento seguro e reconfortante da tradição me parece uma dialética muito presente na atualidade do Ocidente.
Podemos observar essa dinâmica no embate frontal entre uma geral interpretação fundamentalista do cristianismo, com a reafirmação das tradições litúrgicas e doutrinárias pré-conciliares e o processo de atualização e revisão hermenêutica decorrente do Concílio Ecumênico Vaticano II. Parece-me evidente, entretanto, que essa dialética entre lefebvrianos e "modernistas" não fica confinada apenas dentro do catolicismo, mas aparece fortemente - misturada ou não com a religião – no âmbito cultural e político.
Em suma, muitos de nós ficam apavorados com a percepção de que "tudo o que é sólido desmancha-se no ar" - como Karl Marx já profetizava em 1843 - e buscam refúgio na suposta solidez das tradições autoritárias, patriarcais, heterossexuais, familiares e teocráticas, que por muitos séculos tiveram a cristandade como elemento coagulante e justificador.
Aqueles que abraçam essa posição também estabelecem uma inimizade radical contra qualquer atividade crítica, qualquer esforço interpretativo, e consideram todos aqueles que pensam e acreditam que é certo lutar para mudar a realidade injusta e violenta como inimigos da verdade e comunistas.
Mesmo os seguidores da mudança, no entanto, não estão hoje numa posição mais confortável. Se não estão completamente alienados, percebem a crise mortal da civilização ocidental, que nasce justamente da aposta, já presente nos tempos germinais, de uma superação contínua e indefinida da subsistência, de um progresso cego e sem finalidade, que não só nos levou a ameaçar de morte a Vida, mas também à absoluta incerteza de definir o que nos caracteriza como espécie, como seres humanos. Eles se encontram navegando entre Cila e Caríbdis de irracionalidades suicidas, a absolutização do passado e a aceitação acrítica de um presente sem futuro. E nos perguntamos: o que e como pensar, então? O que fazer?
Repito uma convicção várias vezes afirmada: no Ocidente, os únicos que, desde os primórdios do capitalismo e da burguesia, compreenderam evangelicamente a tragédia escondida na escolha da transformação e do progresso, foram Francisco, Clara e os primeiros militantes do movimento nascido em Assis.
Não escolheram, como depois aconteceu quase inevitavelmente, por atualizar o Evangelho, traduzindo-o na nova mentalidade urbana e tornando-o novamente prisioneiro do direito canônico, mas também não choraram pelo passado feudal.
Escolheram estar do lado dos pobres e se opuseram radicalmente às lógicas do mercado e do direito, encontrando na pobreza o caminho do encontro com Jesus de Nazaré. E descobriram a solução teológica e política de que hoje urgentemente necessitamos: a Criação não é uma coisa, é um Tu. E a irmandade e sororidade de todos os seres vivos é o segredo que devemos revelar e viver.
[1] Jean-Luc Nancy, Islam misconosciuto? Rileggiamo la storia, em Rivista Vita e Pensiero, setembro de 2021.
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Ocidente. Artigo de Flavio Lazzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU